Imagine que a proposta do Governo para a reposição do IVA dos espetáculos culturais para a taxa mínima (6%) é aprovada na especialidade sem alteração. Imagine, depois, que um promotor anuncia que a estrela pop Beyoncé atua em Portugal em julho do próximo ano. Se o concerto for na Altice Arena (antigo Pavilhão Atlântico), quem quiser ir paga paga 6% de IVA no bilhete. Se o concerto for num festival como o NOS Alive ou Rock in Rio ou num espaço improvisado como o Estádio da Luz (onde atuará o cantor Ed Sheeran, em junho) ou, imagine-se, no Estádio Municipal de Coimbra, o IVA é maior: 13%.
A diferença resulta da peculiaridade da proposta de descida do IVA nos espetáculos culturais para 6%, proposta pelo Governo. Além dos festivais de rock e do cinema, todos os espetáculos de “canto, dança, música, teatro e circo” que não aconteçam em “recintos fixos de espetáculo de natureza artística ou em circos ambulantes” estão fora da proposta de redução de IVA do governo.
Álvaro Covões, diretor da promotora de espetáculos Everything is New, que, entre outros, organiza o Nos Alive, afirma ao Observador que a descida do IVA, como está proposta, não abrange “uns 70% ou 80% dos espetáculos culturais em Portugal”. “Acho que é brincar com os portugueses, acho inadmissível apresentarem uma medida [de descida do IVA] que depois não é bem assim. É uma vergonha para Portugal, batemos no fundo. Andam a usar a cultura como bandeira para depois brincarmos com ela. Será que a ideia é criar ghettos de cultura, regiões e salas privilegiadas?”, questiona-se.
A descida do IVA de atividades culturais para 6% foi anunciada pelo Bloco de Esquerda e foi uma das matérias que constou das negociações para o Orçamento do Estado de 2019.
IVA sobre os espetáculos culturais vai descer de 13% para 6%
Só quando foi conhecida a proposta de lei é que se começou a perceber o alcance desta descida das taxas na cultura, menor do que a prevista pelo partido que a anunciou. A começar pela data em que se torna efetiva: a redução da taxa intermédia, 13%, para 6%, só entrará em vigor a 1 de julho e não no início do ano. Igualmente discutível é a exclusão de espetáculos culturais que em regra estão associados a maiores receitas, logo resulta em mais IVA cobrado. É o caso do cinema, onde se mantém a taxa intermédia, como confirmaram dois fiscalistas ouvidos pelo Observador, sendo que o OE tem uma autorização legislativa para criar um regime especial para salas que exibam cinema independente.
Mas um dos aspetos que está a deixar mais indignados os representantes do setor é a discriminação feita entre espetáculos consoante o espaço em que se realizam. A proposta de descida abrange apenas espetáculos que decorram em “recintos fixos”. O que parece deixar de fora espetáculos realizados fora desses espaços permanentes, como os festivais de rock. Ao Observador, fonte oficial do Ministério das Finanças confirmou que esta interpretação da proposta orçamental está correta — mas não fez mais comentários. Também todos os espetáculos artísticos apresentados em espaços improvisados, como jardins e espaços públicos alugados para o efeito, ficarão de fora do IVA a 6%.
Álvaro Covões, que integra a APEFE – Associação de Promotores de Espetáculos, Festivais e Eventos, dá exemplos: “Se um espetáculo acontecer numa praça de touros, que está licenciada para espetáculos artísticos, ou no Pavilhão de Gondomar, paga 6% de IVA. Mas se acontecer no jardim da Fundação Serralves, já paga 13% no bilhete. É uma discriminação obtusa”, defende.
Fonte do Bloco adiantou ao Observador que o partido não concorda com estas exceções e que defende a redução do IVA para a taxa mínima em todos os espetáculos, mas excluindo as touradas. E acrescenta que o partido vai apresentar propostas de alteração nesse sentido durante a discussão do OE na especialidade.
Para o fiscalista Afonso Arnaldo, da Deloitte, a forma como está redigida a proposta, em que a taxa reduzida só se aplica a espetáculos realizados “em recintos fixos de espetáculos”, indica que a intenção do legislador seria mesmo a de excluir os festivais de rock, por exemplo, que frequentemente acontecem em espaços ao ar livre que só são usados para concertos nestes eventos.
Já Rogério Fernandes Ferreira, da RFF & Associados, defende que a redação proposta para a alteração das taxas não exclui, necessariamente, espetáculos fora desse recintos e remete para o regime legal de funcionamento e instalação de espetáculos de natureza artística. Este regime define recintos fixos de espetáculos como os espaços delimitados, resultantes de construções de carácter permanente, que, independentemente da respetiva designação, tenham como finalidade principal a realização de espetáculos de natureza artística.
Esta delimitação pretende excluir espaços de restauração, de hotelaria, ou de diversão noturna. Por isso, não vê razão “à partida, para que um festival de rock não possa vir a beneficiar da aplicação da referida taxa reduzida, desde que, em conformidade com o regime jurídico aplicável, seja feita a necessária comunicação de início de funcionamento do recinto fixo de espetáculo de natureza artística junto do IGAC (Inspecção-geral das Atividades Culturais).”
Associação diz que proposta é anti-democrática e vai reunir-se com ministra da Cultura
Sandra Faria, da APEFE – Associação de Promotores de Espetáculos, Festivais e Eventos, defende ao Observador que a proposta do Governo não faz sentido. Considera-a mesmo “anti-democrática”. E alerta para a diferença “preocupante” entre o IVA de bilhetes pago para o mesmo espetáculo em função do espaço onde é exibido. Os bilhetes podem até ficar mais baratos em Lisboa e Porto, onde há mais recintos fixos de natureza artística, do que noutros pontos do país, que têm menos salas e recintos fixos de grande dimensão.
Sandra Faria integra a direção da associação de promotores de espetáculos onde estão as principais promotoras nacionais, como a Everything is New, de Álvaro Covões, e a PEV Entertainment, de Jorge Lopes. Ao todo, tem 24 associados.
Quando leu as primeiras notícias de que o IVA dos espetáculos culturais ia baixar para 6%, Sandra Faria considerou-as “animadoras”. Achava que iam “ao encontro das pretensões do setor” e que o protesto da APEFE em abril, que incluiu uma petição para redução do IVA na cultura e uma ação concertada de descida do preço dos bilhetes (em protesto), tinha dado frutos. Agora, percebeu que não.
“O que foi noticiado, o que todos vimos e ouvimos dizer, foi que o IVA iria ser reposto para os 6% [na cultura]. Não é uma baixa, é uma reposição, porque era o valor que se pagava antes da Troika. O que está a acontecer não é bem isso. A maior parte dos espetáculos culturais em grande parte do país, fora das grandes cidades — se calhar em 70% do país — continuarão a pagar 13% de IVA, porque acontecem maioritariamente em recintos improvisados”, refere Sandra Faria.
Para a porta-voz da APEFE, “as pessoas estão muito preocupadas com a questão dos festivais mas muito da cultura do nosso país passa-se fora de Lisboa e do Porto e em recintos improvisados. Há aqui um critério que nós não percebemos como é que foi definido e pensado”. Sandra Faria considera que a taxação diferente dos espetáculos culturais consoante o espaço em que são apresentados “não pode ir para a frente”.
A associação já reuniu com grupos parlamentares e tem já uma reunião com ministra da Cultura marcada para a próxima semana. Mas Sandra Faria não conseguiu perceber se os moldes desta proposta são intencionais ou surgiram por lapso. “É muito fácil ver que há uma discriminação quando o mesmo conteúdo artístico é taxado de maneira diferente consoante o sítio em que é apresentado. Por exemplo, um festival de marionetas que decorra no Centro Cultural de Belém passaria a ser taxado a 6%, mas se acontecesse no Jardim de Serralves pagaria 13% de IVA”, explica.
Para a representante da associação, não se pode ignorar que “há centenas de eventos realizados ao longo do ano pelo país que não são feitos em teatro e salas de espetáculos”. Ou, segundo a terminologia da proposta do Governo, em “recintos fixos”.
Álvaro Covões: “Ou é erro ou malandrice”
O diretor-geral da Everything is New, Álvaro Covões, diz quando viu a formulação da proposta de descida do IVA na cultura, pensou inicialmente que “seria um erro”. A outra opção era menos animadora: “De outro modo é malandrice e, se tiver sido, ainda bem que o ministro da Cultura foi embora”. Porquê malandrice? “Porque isto seria o Ministério da Cultura a fazer uma lei para si próprio. O Estado é o maior proprietário de salas de espetáculos do país. Estaria a querer ter um IVA mais barato nas suas salas do que nos espaços em que outros promotores também organizam espetáculos”, refere.
Covões dá exemplo das consequências que, considera, poderiam “desvirtuar” o setor: “Mesmo não tendo grande orçamento, salas do Estado como o Centro Cultural de Belém, o Teatro Nacional São João e outras no país terão mais receita, mesmo mantendo o preço dos bilhetes”. Se beneficiarem de uma descida IVA que não abrange, por exemplo, os espetáculos ao ar livre, podem atrair mais público.
O diretor da promotora questiona-se, até, se não haverá uma inconstitucionalidade na proposta: “O artigo 76º da Constituição define que o Estado em conjunto com os agentes culturais deve trabalhar no sentido de fazer chegar cultura a todos os portugueses sem exceção”. Com esta proposta, refere, “uma terra, uma cidade, uma vila ou uma aldeia que não tenha um recinto fixo de espetáculos é discriminada no acesso à cultura”.
O artista mais caro do NOS Alive? “É o ministro das Finanças”, diz Álvaro Covões
E dá o exemplo de Oeiras. “É um concelho considerado rico, mas tem como infra-estrutura maior [fixa e para espetáculos artísticos] um espaço para 300 pessoas. Onde é que farão os eventos, se os espetáculos no Passeio Marítimo de Algés, nos jardins do Marquês de Pombal ou no jardim municipal de Oeiras ficarem mais caros? Se calhar os festivais vão ter de transitar para equipamentos fixos para ser mais competitivos no preço”, alerta. Álvaro Covões lembra que montar um espetáculo artístico ao ar livre já é mais caro, “porque tem de se vedar, colocar casas de banho, eletricidade e por aí fora”. Se esses espetáculos forem taxados com mais 7% de IVA do que os concorrentes, “é a morte desses eventos e é concorrência desleal”.
O que pode acontecer quando o IVA descer?
A porta-voz da associação de promotores deixa ainda outro alerta. Há “uma preocupação enorme em discutir a criação. Viu-se isso este ano, na discussão [do financiamento] da DGArtes. Ninguém se preocupa com o acesso à cultura, toda a gente se preocupa com a criação”.
O impacto de uma eventual descida abrangente do IVA na cultura seria positiva, entende Sandra Faria. “Viu-se em Espanha: o IVA baixou e os espetáculos aumentaram as receitas de venda. É normal e é visível no número de espetadores que existem quando há descontos, as vendas são sempre superiores aos dias normais e as pessoas aderem”, refere. Em abril, no dia em que os grandes promotores desceram o preço dos seus bilhetes em protesto contra o IVA a 13%, foram vendidos em média três vezes mais bilhetes do que o normal. Isso mostra que o preço é importante para o público comprar ou não bilhetes. Comprando mais, também há mais receita fiscal para o Estado, compensa [a perda de receita direta de] uma descida do IVA.”
A APEFE não garante contudo que uma descida do IVA pago nos bilhetes dos espetáculos possa ter consequências na descida do preço. Mas Sandra Faria diz que os associados assumiram esse compromisso.
Também Álvaro Covões deixa essa garantia no caso dos espetáculos da sua promotora. “Na Everything is New estávamos preparados para baixar os preços todos. Baixar para o consumidor, que pagaria menos IVA, não para nós.”.
Com o IVA na cultura à taxa intermédia, Portugal é ainda o quinto país europeu com maior taxação dos espetáculos de cultura, dentro da UE. O aumento deu-se em 2011, em altura de intervenção da Troika, que fez subir a taxação do valor mínimo (6%) para um valor intermédio (13%). Em 2016, foram vendidos em Portugal 4,9 milhões de bilhetes para espetáculos ao vivo — um valor que coloca o país na retaguarda na União Europeia na ida a concertos, teatro, ópera e bailado (assim como nos hábitos de leitura dos cidadãos). Para Álvaro Covões, os dados demonstram uma coisa: “As políticas culturais falharam. Não se criaram públicos em Portugal”.