O ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, não dá garantias mas diz que o Governo está a “trabalhar afincadamente” para afastar um Adamastor que está no caminho dos setores mais atingidos pela crise: o fim das moratórias bancárias em setembro. No turismo, na cultura, em “algum comércio” e na restauração os empresários dizem que mesmo no cenário mais otimista para a evolução da pandemia em setembro ainda “tantos ainda vão estar descalços…“, sem capacidade para voltar aos pagamentos à banca. Porque a retoma vai ser lenta. Porque a “época baixa” vai voltar a ser isso mesmo – “baixa”, como há vários anos não o era tanto assim. E porque, ao contrário do que é politicamente propalado, os empresários continuam a ter encargos importantes com o pessoal e com as estruturas. Já os apoios anunciados excluem muitas empresas e tardam, às vezes meses, a chegar ao terreno.
É com “preocupação, muita preocupação” que Pedro Ramos olha para o calendário de 2021 e vê que os meses estão a avançar rapidamente em direção a esse Cabo das Tormentas que é o final de setembro, altura em que se prevê – até indicação em contrário – que empresas e famílias voltem a ter de pagar os créditos à banca que estão sob moratória, com os pagamentos suspensos. A empresa de Pedro Ramos é “O Faia“, uma casa de fados no Bairro Alto, em Lisboa, que foi fundada pelos pais de Carlos do Carmo quando este tinha 7 anos e que foi um dos maiores nomes do fado português, recém-falecido.
“O Faia” será dos melhores exemplos de um negócio que está no centro do furacão: porque é restauração, porque é turismo e porque é cultura – “e essa cultura não se pode perder”, diz Pedro Ramos, ao Observador. “Tenho esperança de que as moratórias sejam prolongadas, estamos muito dependentes do turismo e mesmo que estejamos agora a iniciar um desconfinamento sabemos que noutros países já está tudo novamente a confinar, o que é muito preocupante”, diz o gerente desta casa de fados icónica da cidade de Lisboa. Mesmo que o verão seja “bonzinho” não vai chegar para aguentar a “época baixa” do outono/inverno que começará precisamente quando as moratórias terminam.
O presidente da Caixa Geral de Depósitos, Paulo Macedo, alertou esta semana para a possibilidade de um tsunami de crédito malparado com o fim das moratórias bancárias, caso não haja outros apoios aos setores mais afetados pela crise. A expressão – tsunami – até já tinha sido utilizada há quase um ano por outro banqueiro, Pedro Castro e Almeida, do Santander, também numa referência ao impacto que iriam ter as moratórias quando ainda se previa que elas terminassem em setembro… de 2020.
Após vários adiamentos, a profundidade da crise e o seu arrastar no tempo levam os banqueiros a soar os alarmes apesar de, globalmente, passarem uma mensagem de tranquilidade em relação ao fim das moratórias e o impacto na economia em geral. Ninguém esconde, porém, o Adamastor que ameaça os setores que mais sofreram (e continuam a sofrer) com esta crise.
Moratórias bancárias. Vai ficar (quase) tudo bem, garantem os bancos
Fim das moratórias em setembro? Se assim for, “conheço tantos que vão estar descalços…“, diz o proprietário de um outro negócio, um restaurante à beira da rotunda do Marquês de Pombal que antes da pandemia tinha a casa sempre cheia para os almoços de trabalho. “Felizmente, nós estávamos relativamente bem calçados, é uma casa com muitos anos e nunca entrámos em grandes loucuras – isso tem dado para aguentar um ano inteiro a perder dinheiro todos os dias… e as ajudas do Estado vão dando para tapar algumas despesas, aqui e acolá”, diz este empresário – “mas muita gente está pelos arames e há muitos que não irão reabrir mais“, lamenta este empresário.
“O investimento está feito, se nós cairmos eles também caem”
Ora, se este restaurante no coração de Lisboa beneficiou do facto de ser “uma casa com muitos anos”, aconteceu o inverso com um restaurante de comida italiana que abriu em Oeiras em plena pandemia, o Benini Sapori di Genova. Depois de uma vida de trabalho em África, em 2019 o luso-francês Alain Barreto e mulher Annamaria Benini, italiana, decidiram lançar-se nesta “aventura” que acabaria por abrir pela primeira vez em maio de 2020, quando se iniciou o desconfinamento após a primeira vaga da Covid-19. Pior timing teria sido difícil, mas o negócio tem-se aguentado graças ao take away e entregas, diz ao Observador Alain Barreto, sentado numa mesa com vista para o rio Tejo que deveria ser para refeições de clientes mas que agora está praticamente transformada em escritório.
No intervalo entre a primeira vaga e a segunda foi sendo possível ao negócio mitigar os prejuízos, mas como o novo confinamento, que obrigou a retirar até as mesas da esplanada, não restou alternativa: no mês passado os proprietários tiveram de pedir moratória para o pagamento dos créditos que tinham recebido – metade do investimento tinha sido feito com capitais próprios e a outra metade com financiamento apoiado em fundos europeus, canalizado pela banca. “O investimento está feito, se nós cairmos eles também caem, não é do interesse de ninguém” que se executem os créditos antes de terminar a crise, levando a que o negócio se perca.
Há 46 mil milhões de euros em moratórias, indica (finalmente) o Banco de Portugal
Além do infeliz timing para a abertura, o Benini tem mais dois problemas: como é um restaurante novo não tem histórico de receitas que permitam calcular vários dos apoios disponíveis e, por outro lado, não pode beneficiar do apoio às rendas porque não se trata de uma renda mas, sim, de um contrato de cessão de exploração. Apesar de todas as dificuldades, Alain Barreto diz ter aprendido com o gestor de conta no banco, cá em Portugal, que nesta matéria a estratégia mais acertada é “empurrar para a frente, depois logo se vê”. O empresário espera que as moratórias sejam prolongadas mais algum tempo, mas o que “queria mesmo, mesmo, era poder faturar“, porque “quando o produto é bom, mais tarde ou mais cedo os negócios dão certo, mesmo numa situação como esta”, acrescenta.
No caso do Benini, dois funcionários estão em layoff e houve mais um que saiu para ir estudar. Já na casa de fados O Faia, no Bairro Alto, há 25 funcionários que estão todos efetivos e, portanto, não houve o recurso à não-renovação de contratos que foi expediente muito usado por estas empresas quando a pandemia chegou. Estão em layoff, explica Pedro Ramos, mas a casa de fados continua ter de lhes pagar parte da contribuição para a segurança social, a chamada Taxa Social Única. “É uma despesa importante, sobretudo quando se tem uma casa fechada”, diz o gerente desta casa típica lisboeta, acrescentando que “foi passada a mensagem de que o Estado suportava integralmente os encargos mas não é bem assim”.
O que parece bater certo com a mensagem que é publicamente transmitida pelos bancos é que está, de facto, a existir um acompanhamento muito próximo por parte dos bancos à situação de cada empresa. Sidónio Paes, biólogo marinho e sócio-gerente da SeaEO Tours, uma empresa que proporciona passeios turísticos na zona da capital, diz ter uma “gestora de conta muito simpática que é muito rápida a responder – e isso importa imenso”, porque o sócio-gerente está em layoff e com as dificuldades do negócio é crucial haver respostas rápidas para “conseguirmos ficar um pouco mais descansados” a cada dia.
O que deixaria Sidónio Paes “mais descansado”, também, seria o anúncio de uma extensão das moratórias para mais algum tempo. No verão passado as pessoas revelaram estar “sedentas” de atividades ao ar livre, como as que a SeaEO Tours organiza, e até se notou um aumento do público nacional. Porém, mesmo que este próximo verão seja “um pouco melhor” (“muito melhor não será, certamente”), talvez seja possível fazer o primeiro pagamento trimestral da prestação dos seus créditos, que estão sob moratória – será em outubro. Mas logo a seguir entra o inverno – “e depois?”, pergunta.
Apoios que chegam tarde, a más horas (e excluem muitas empresas)
Além de Pedro Ramos, que a respeito de apoios diz que “já estamos habituados a alguma diferença entre o que é anunciado e aquilo que é concretizado”, o Observador falou, também, com Ana Jacinto, secretária-geral da AHRESP, que também lamentou que os apoios cheguem tarde e, muitas vezes, vêm com condições associadas que fazem com que várias empresas, afinal, não tenham elegibilidade. Um exemplo: “a questão do apoio às rendas, que foi uma medida anunciada a 10 de dezembro, foi disponibilizada em fevereiro e ainda ninguém recebeu um euro desse apoio. Como é que é suposto as pessoas estarem a pagar as rendas?”, pergunta Ana Jacinto.
A AHRESP defendeu, no início deste mês de março, a prorrogação das moratórias bancárias nos setores que representa “até 30 de junho de 2022“, para permitir “a recuperação das empresas” – além disso, defendeu o organismo, devem ser encontrados planos de amortização de médio e longo prazo para todos os empréstimos que se encontram ao abrigo dessas moratórias. Esses planos de amortização seriam, diz a AHRESP, “essenciais, uma vez que após o término dessas moratórias as empresas não terão capacidade para retomar o cumprimento das suas obrigações, na mesma proporção do período pré-pandemia, pelo que os prazos de amortização devem ser prorrogados, no mínimo por mais 10 anos, reduzindo significativamente os encargos das empresas”.
Estas foram as reivindicações da AHRESP na sequência de um inquérito feito junto de quase mil empresas e que revelou, por exemplo, que na área da restauração (e similares) mais de metade (52%) das empresas disseram estar com a atividade totalmente encerrada e cerca de um terço (34%) dizem estar a ponderar o pedido de insolvência porque as receitas realizadas e previstas não permitirão suportar todos os encargos que decorrem do normal funcionamento da atividade. No segmento do alojamento turístico, por outro lado, 27% estão com a atividade suspensa e 16% estão a ponderar avançar para a insolvência.
46 mil milhões de euros sob moratória
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Desde abril do ano passado que milhares de clientes não estão a pagar os créditos aos bancos, ao abrigo de um decreto-lei do Governo que permite moratórias nos empréstimos, criadas como uma ajuda a famílias e empresas penalizadas pela crise económica desencadeada pela pandemia de Covid-19 (além da chamada “moratória privada” que foi promovida pela Associação Portuguesa de Bancos). Quanto à “moratória pública”, o Conselho de Ministros decidiu no final de setembro prolongar por seis meses, até 30 de setembro de 2021, o prazo das moratórias de crédito às famílias e empresas que terminava em 31 de março.
Entretanto, o Banco de Portugal veio em meados de dezembro indicar que havia em setembro 46.000 milhões de euros em créditos sob moratória em Portugal, mais 2.800 milhões do que existiam em junho. Este valor dos 46 mil milhões diz respeito ao valor total dos créditos cujo pagamento de prestações está suspenso, não é uma referência ao valor total que ficou por pagar. Quando se fala, concretamente, nos valores que ficaram por pagar (ou receber, do ponto de vista dos bancos) o Banco de Portugal calcula que até setembro o montante irá aproximar-se de 11 mil milhões de euros em prestações de clientes empresariais (além de dois mil milhões de euros das famílias).
Segundo os mesmos dados do Banco de Portugal, divulgados em dezembro mas relativos a setembro, 32% dos empréstimos a empresas (24,4 mil milhões de euros) e 17% dos empréstimos a particulares estavam em moratória, a proporção mais elevada em toda a União Europeia.
Ainda assim, o Banco de Portugal passou nessa altura uma mensagem de pouca preocupação e esta semana, uma vez mais, Mário Centeno voltou a mostrar-se relativamente tranquilo em relação ao possível impacto do fim das moratórias na banca portuguesa, não antecipando que isso provoque um salto na quantidade de créditos problemáticos. “Não temos sinais de que isso possa acontecer”, afirmou o governador do Banco de Portugal, acrescentando que este “é um processo que depende muito de como a atividade económica for recuperando ao longo do ano”.
O Observador pediu, também, um comentário à Confederação do Turismo de Portugal, que indicou que “o fim das moratórias pode vir a refletir-se num agravamento do risco de crédito, sendo um potencial fator de crescimento do número de insolvências e consequentemente desemprego”.
“Seria importante manter as moratórias para permitir a solvabilidade das empresas até à estabilização da situação do país e retoma económica. A CTP esteve em permanente contacto com o Governo sobre o tema, chamando a atenção para a sua importância. Não existindo prolongamento das moratórias, é importante que as empresas sejam fortemente recapitalizadas, sem o recurso a mais endividamento”, afirmou a instituição liderada por Francisco Calheiros.
“Se nada for feito”, diz Ana Jacinto, “isto vai ser um drama”
O grande Cabo das Tormentas está previsto para setembro, mas já a partir deste mês de março muitas empresas têm de voltar a pagar juros (embora não capital) sobre os seus créditos. O ministro Siza Vieira, na última sexta-feira, desvalorizou esse fator por não serem montantes elevados e as taxas de juro estarem em valores historicamente baixos. Até pode ser assim em alguns casos, diz Ana Jacinto, “mas quando sabemos que mais de metade dos estabelecimentos de restauração estão encerrados, tudo é relevante, porque as empresas faturam zero – e não é a venda em take away ou a venda ao postigo que vai salvar estas empresas porque na maior parte dos casos o take away não paga aquilo que custa manter uma casa a funcionar”.
Avisando que “se nada for feito, isto vai ser um drama”, Ana Jacinto lembra que é preciso capacidade de adequação das medidas de apoio a uma crise que “ninguém esperaria que fosse tão intensa e tão longa”, embora lembre que a AHRESP sempre defendeu que a solução teria, desde sempre, de passar por mais ajudas a fundo perdido (e não mais financiamento bancário, sob moratória) como aconteceu em vários outros países europeus.
A diferença é que outros países não têm os constrangimentos orçamentais que tem Portugal, recorda Raul Martins, presidente da AHP – Associação da Hotelaria de Portugal. Será, provavelmente, devido a esses constrangimentos orçamentais – ou de ordem política – que o Governo lançou linhas de crédito garantidas pelo Estado a uma percentagem de 20%. É pouco, diz Raul Martins, ao Observador, admitindo que o facto de a garantia pública não ser mais generosa poderá fazer com que muitos financiamentos sejam chumbados pelos bancos.
Raul Martins lembra que o ministro das Finanças disse, numa entrevista recente, que “custe o que custar” os apoios a empresas e famílias vão continuar enquanto durar a pandemia. Quanto às moratórias, em particular, João Leão admitiu que elas sejam prolongadas mas de forma “mais seletiva”, conforme os setores de atividade. Ora, se assim é, diz Raul Martins, há que avançar com apoios rapidamente, porque “é ponto assente que muitas empresas não vão conseguir pagar” na segunda metade do ano – “quem chegar ao fim do ano com lucro zero, sem perder nada, vai ficar muito contente”, diz.
O presidente da AHP diz que é necessário encontrar recursos orçamentais para que se cumpra aquilo que disse João Leão quando prometeu apoios “custe o que custar”. “Se não é possível acomodar isso no orçamento, então que se faça um orçamento retificativo“, atira o responsável, lembrando que “os governos servem para governar”.
(Trabalho atualizado com comentário da CTP.)