É uma mudança de abordagem na saúde mental. Chama-se “Diálogo Aberto” (“Open Dialogue”) e foi desenvolvido no oeste da Lapónia, Finlândia, na década de 1980. Centra-se nas pessoas, em diálogos e conversas, e não nos sintomas.
O modelo baseia-se em vários princípios: providenciar ajuda imediata, idealmente em casa do doente e nas primeiras 24 horas depois do contacto com os serviços clínicos; considerar a rede de suporte familiar e social durante o tratamento; aceitar as incertezas. O diálogo, defende Jaakko Seikkula, mentor da ideia, psicólogo clínico e professor catedrático na Universidade de Jyväskylä, é o início e o fim de tudo.
Os estudos entretanto realizados confirmam a redução de hospitalizações, menos recaídas, menos prescrição de medicamentos, menos diagnósticos de esquizofrenia. Ao longo dos anos, este sistema de tratamento e organização dos serviços de saúde mental despertou a atenção em vários continentes e está a ser replicado em mais de 35 países – nomeadamente Portugal…..
O modelo “Diálogo Aberto” coloca o doente no centro da intervenção. Quão importante é esse diálogo para o seu próprio tratamento?
É muito importante. A definição de doente pode variar. A pessoa que está no centro das preocupações, a que podemos chamar doente, pode ser hospitalizada ou estar num modelo de saúde comunitária. Pensar, em primeiro lugar, nos médicos e nos profissionais de saúde, e no que entendem como o doente deve ser seguido e como tratar os seus problemas acaba por ser um descanso para todos. No “Diálogo Aberto” fazemos o oposto. Começamos por ouvir as ideias, sentimentos e experiências das pessoas, o que têm e o que sentem. Os membros da família também devem ser ouvidos.
Estamos a falar do envolvimento da rede familiar e social do doente, mães e pais, maridos e mulheres, mas também de amigos, colegas de trabalho, vizinhos
Exatamente. Todos.
Esse diálogo é essencial para perceber o que aconteceu num transtorno mental grave?
Sim. Suponho que em qualquer crise a família está lá. É sempre sobre a família. Não há uma crise que não afete a rede mais próxima. Em muitos casos é importante incluir, por exemplo, amigos e os colegas, se a crise tem algum efeito no trabalho. E colegas de escola, às vezes, vizinhos, se há algumas questões com eles. E assim por diante. A ideia de rede social é bastante ampla.
O doente nunca está sozinho ou tem consultas individuais?
Há consultas individuais. Organizar ajuda imediata é uma das ideias do modelo “Diálogo Aberto”, bem como incluir sempre a rede social do doente. Um terceiro ponto é ser flexível, usar cada método baseado nas necessidades de cada pessoa.
Há diferentes formas de reunir com os doentes. Uma pessoa pode, por exemplo, ter consultas individuais de psicoterapia e o psicoterapeuta fazer parte das reuniões. Ou pode fazer terapia ocupacional e a terapeuta estar presente nesses encontros.
A ideia é que a reunião seja conjunta com a família e com a sua rede de suporte social, organizada dentro de uma rede que é individual, de cada um, com uma equipa e não apenas com um médico, um psicólogo, um terapeuta. Todos os que estão envolvidos no tratamento estão nesses encontros, o que significa, por exemplo, que o psicoterapeuta faça parte da equipa e que se encontre com a família também. Mas tudo depende da forma como o psicoterapeuta considere mais adequado trabalhar. A consulta individual é uma parte muito importante e fundamental em situações de crise, tal com as reuniões conjuntas.
Trata-se de terapia familiar ou algo semelhante?
É mais do que terapia familiar, porque o objetivo não é tratar a família. O nosso propósito não é fazer mudanças na família, mas tê-la como aliada para ajudar quem está em crise. Olhando para o contexto relacional, entendendo o problema como parte desse sistema relacional. E a família do doente é parte disso também. Mas não é terapia familiar da forma como habitualmente é pensada.
Estamos a falar de doenças como esquizofrenia ou depressão? E que outras patologias?
Estamos a falar de crises mentais graves como esquizofrenia, psicose, depressão severa. Temos pesquisas que mostram que os resultados são muito melhores com esta forma de trabalhar, com este diálogo e encontros com o doente e a sua rede, em comparação com o que é feito no sistema de saúde tradicional.
Esta nova forma de tratar doentes com patologias mentais severas foca-se nas primeiras 24 horas depois de uma crise psicótica. Por que é que este tempo é crucial?
É essencial. Essas 24 horas não são depois da crise, são depois do contacto que as pessoas fazem com os serviços, até porque podem ter estado em situação de crise durante duas semanas ou até mais, antes desse contacto. Ter o diálogo imediatamente aberto é crucial. Quando o contacto é feito, as pessoas estão numa situação emocionalmente delicada. E essas emoções ajudam a abrir questões de que nunca falaram antes. Trata-se de investir nesse tempo para tentar ajudar. E isso é muito importante.
É um tempo para, por exemplo, falar de traumas antigos, dores invisíveis, gatilhos que provocam crises?
Exatamente.
Para falar das emoções, também?
Sim, também, claro. Há um tempo muito curto em que se abre uma janela para falarem das suas experiências, sintomas, ansiedade, das vozes que ouvem, situações deste género. As pessoas estão prontas e disponíveis a falar sobre isso. Dois dias depois, essa janela fecha-se. O profissional de saúde pode verificar que há algo errado, mas ele ou ela já não estão abertos para partilhar as suas experiências como estavam no início. Se isso acontecer, reunimos com a família. Todas as questões que as pessoas falam também são relevantes para as famílias. Poderá até ser a primeira vez que falam sobre um determinado assunto.
O “Diálogo Aberto” também tem equipas móveis que vão a casa das pessoas?
Sim. As famílias podem escolher se querem falar em casa ou no hospital, mas normalmente estão mais disponíveis ao diálogo se estiverem no lugar mais seguro para elas. É sempre importante pensar nas opções para a hospitalização, em casos de crises severas.
No caso de uma depressão, por exemplo, como é que esta intervenção se articula?
A ideia é organizar a conversa, como em qualquer outra situação. O ideal é ter uma equipa de duas ou três pessoas e convidar a família ou outros membros do suporte social da pessoa em depressão.
Tínhamos um projeto direcionado para pessoas com depressão no sentido de introduzir terapia de casal, chamar o marido ou a mulher para apoiar na recuperação. O que aprendemos, e que foi um pouco desafiador, é que a pessoa deprimida diz, muitas vezes, que é um perigo para a própria família, que tem de resolver esse problema consigo, muitas vezes tem uma ideia muito negativa de si mesma, e precisa de um pouco mais de tempo para encontrar motivação. Mas é muito importante que se juntem, que se encontrem. Os membros da família podem ajudar porque estão lá, também podem falar. Se a depressão é muito severa, a pessoa, muitas vezes, não tem palavras para contar e descrever o que se passa. É passo a passo.
Mesmo que o diálogo não comece 24 horas depois do contacto, essa conexão com os membros da família é sempre importante. Se acontecer num curto espaço de tempo, as famílias podem até falar de questões que nunca falaram antes e que aconteceram há muito tempo. Muitas vezes, despontar essas questões é muito útil. É, como disse, passo a passo.
Trata-se de um novo paradigma no sistema de saúde mental, portanto.
É sem dúvida um novo paradigma. Focado em pessoas, não em sintomas. As pessoas são tão importantes que organizamos reuniões abertas em que todos devem ser ouvidos e respeitados.
A “saúde tradicional” foca-se em sintomas, analisa-os, faz diagnósticos, planeia intervenções e como este ou aquele sintoma afeta o doente. Mas nós acreditamos que esse foco nos sintomas é secundário. As reuniões falam sobre a vida e, nos resultados que temos, verificamos que isso é muito mais eficiente para os sintomas também. É um pouco paradoxal: quanto menos nos focamos nos sintomas, melhores resultados temos, como verificamos nos estudos realizados.
A ideia de diálogo é muito diferente das ideias habituais e tradicionais de intervenção para tratar os doentes. Atenuar sintomas ou mudar a família se achamos que há alguma coisa errada no sistema familiar? Queremos ouvir essas vozes com a ideia de que as pessoas têm os seus próprios recursos que queremos mobilizar. Não temos algo melhor para oferecer, temos uma forma para que sintam ouvidos e respeitados.
O impacto tem sido divulgado: redução do número de internamentos, diminuição do tempo de doença não tratada, o uso seletivo de medicação, recuperação de pessoas. Há algum ponto que gostaria de destacar?
Se pensarmos no que aconteceu na psiquiatria nos últimos trinta anos, na Medicina baseada em evidência, na redução dos problemas mentais a problemas do cérebro — e, portanto, só era preciso medicar — concluímos que todos os outros problemas foram esquecidos. Pessoas com graves problemas psicóticos foram abandonadas pelo sistema psiquiátrico, não havia interesse em ouvi-las porque “tinham doenças do cérebro”.
Acho que um dos principais resultados deste modelo é que podemos encontrar-nos com humanos de uma forma humana. E, claro, os resultados são muito bons. Por exemplo, nove em cada dez doentes com crises psicóticas voltaram ao trabalho a tempo inteiro dois anos depois. Quando trabalhamos deste modo, a necessidade de medicação diminui e, dessa forma, menos efeitos nocivos dos medicamentos, sobretudo dos neurolépticos.
Esta abordagem requer a reorganização dos serviços psiquiátricos?
Em parte, sim. Por exemplo, na questão de organizar uma equipa móvel de intervenção em crise que esteja disponível para chegar às pessoas e envolver os restantes profissionais. Um assistente social encontra alguém em crise em casa e, no dia seguinte, reúne a equipa de intervenção. Desta forma, garante-se que as pessoas não ficam sozinhas e abandonadas, mas que se reúnam, que estejam juntas. Esta forma de organização é realmente necessária.
Em termos clínicos, temos equipas específicas de casos, como lhes chamamos. Por exemplo; um psicólogo, um médico, um psiquiatra. Os médicos, normalmente, não podem participar em todos os encontros porque são poucos, comparativamente com outros profissionais. Mas essa equipa cuida de todo o processo, mesmo quando há necessidade de hospitalização. Uma tentativa de suicídio, por exemplo, se o paciente está hospitalizado, a equipa continua a segui-lo com reuniões no hospital. Deste modo, a continuidade do acompanhamento é garantida.
Há alguma história que ficou na sua memória relativamente ao impacto desta abordagem nas famílias? Haverá várias, certamente….
Num artigo que escrevi há 15 anos, com o título O Diálogo como Personificação do Amor, descrevi uma mãe que dizia que depois de oito anos sem contacto com o filho, tinha aprendido a amá-lo de novo. Essa família estava numa situação de conflito bastante complexa. Quando esse amor está ligado, conectado, há uma enorme quantidade de recursos disponíveis para usar.
É um modelo que está a ser replicado em muitos países.
Em mais de 35.
Em Portugal também?
Sim, também. A Fundação Romão de Sousa está a aplicar este modelo em Portugal.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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