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Fomos à procura de livros na praia: encontrámos poucos, mas descobrimos novas posições para ler

Atravessámos o areal, chegámos à terceira praia e esperávamos mais: mais leituras e mais em português. Apesar disso, encontrámos compromisso e arrojo físico no exercício literário balnear.

Movido pelo amor de jovens atletas a desportos que durante quatro anos nos parecem quase extintos, como o hóquei em campo, a esgrima ou o pancrácio, decido seguir para a Linha em busca de intrépidos leitores balneares. Chegado à Praia da Ribeira, respiro fundo ao ver a praia cheia, com pessoas a jogar raquetes, a vender pulseirinhas, a trocar passes com uma bola ou a fazer radialismo amador. No meio de tanta gente, por mais anunciada que seja a morte dos livros, não será difícil encontrar oito pessoas com um livro junto a si. Desço a rampa cheio de uma confiança burra, ignorando a bandeira amarela há tanto tempo içada contra o céu nublado pelos índices de leitura do Instituto de Ciências Sociais.

Entre as centenas de pessoas àquela hora na praia deitadas, na praia estendidas, vejo talvez dez livros, mas após as duas primeiras entrevistas a uma francesa e um inglês, decido restringir as entrevistas a leitores portugueses (ou pelo menos de literatura em português). E é aí que a coisa complica: excluindo estrangeiros a ler livros em estrangeiro, restam duas mulheres (a Mariana e a Cláudia), que acedem simpaticamente a ser entrevistadas.

A minha resiliência não me permite participar em triatlos olímpicos, mas ainda assim deixa-me sondar outra praia mais pequena, a da Rainha, cujos banhistas têm a vantagem de serem quase exclusivamente portugueses e a desvantagem, para este exercício específico, de terem mais do que fazer do que andarem com um livro para trás e para diante. É aí que encontro a Cláudia.

Não estando disposto a desistir para já, sigo para as praias da Ribeira de Cascais e da Duquesa, cujo areal terá talvez o triplo da área das duas anteriores. Passarei então a hora seguinte à procura de três pessoas que me permitam concluir uma tarefa que à saída de Lisboa imaginava tão simples. Acreditem ou não, encontrei uma única leitora balnear. A Cláudia. Foi isto que me foi possível apurar:

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Viviane

OCUPAÇÃO: Estudante de Enfermagem
LIVRO: “The Hunger Games”, de Suzanne Collins

Viviane é uma parisiense simpática e sorridente, fugida de França devido aos Jogos Olímpicos. Está cá de férias com três amigas, sendo a única que fala inglês, no sotaque sussurrado e hesitante dos franceses, como se lamentassem corromper uma pronúncia elegante com palavras bárbaras, mas ainda assim preferissem isso a ver estrangeiros tingir a sua língua.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Praticante habitual de leitura balnear? Oui, beaucoup.

Critério de Escolha: Viu o filme e gostou muito. Está a reler a saga.

Motivo para o Interesse: É um livro fantastique, pós-apocalíptico. Gosta de imaginar um outro mundo, um mundo futuro, ainda que duvide ligeiramente de que o romance (onde um programa de TV faz competir jovens pobres de bairros diferentes até à morte) seja premonitório do que nos espera. Deus a ouça.

Posição de Leitura: Pétala (pés apontados ao núcleo do grupo de toalhas e barriga deitada no chão).

Vantagens: Evitar distrações com a conversa das amigas.

Desvantagens: As amigas podem falar dela nas costas.

Simon

OCUPAÇÃO: Engenheiro Informático
LIVRO: “Southern Mail/ Night Flight”, Antoine de Saint-Exupéry

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Simon é inglês, mas os óculos de sol com armação laranja, a voz plácida, o cabelo escuro, encaracolado e curto e o fato de banho florido em tons neutros parecem lamentar esse infortúnio. Vive em Barcelona com a namorada, que também vai lendo qualquer coisa no Kindle. Volta e meia, aproveitam para vir passar um fim-de-semana a Lisboa e Cascais, por ser perto, barato e bonito. Nas três praias que visitei, o Simon foi o único homem que vi a praticar leitura balnear.

Praticante habitual de leitura balnear? Exclusivamente.

Critério de Escolha: Este verão leu outro livro do autor (não foi o Principezinho) e gostou muito. As poucas páginas do livro, que o tornam ideal para uma escapadinha romântica, parecem também ter desempenhado um papel.

Motivo para o Interesse: Normalmente lê livros técnicos, mas no verão gosta de se desligar e a ficção afasta-o das preocupações quotidianas. Ajuda-o a desligar, garante.

Posição de Leitura: Cadáver Ressuscitado (barriga para cima, braços estendidos na vertical).

Vantagens: Cria uma ligeira sombra sobre a cabeça e permite-nos tornar claro aos restantes banhistas que, ao contrário deles, que se entretêm a ouvir reggaeton e a jogar raquetes, nós somos da cultura com cê maiúsculo. Cuidado connosco.

Desvantagens: Gera um bronzeado desigual. Posição desadequada para livros volumosos (e.g. Cinquenta Sombras de Grey) ou livros que, por um ou outro motivo, possam causar embaraço (e.g. Cinquenta Sombras de Grey).

Mariana

OCUPAÇÃO: Trabalha em comunicação
LIVRO: “A Breve Vida das Flores”, Valérie Perrin

A Mariana, de fato de banho azul, sozinha na praia, começou a ler durante a pandemia, para combater o tédio. As amigas passaram a recomendar-lhe livros e a descoberta de mundos desconfinados, associada a esta nova forma de convívio silencioso e distante, atraiu-a como um destino para onde seria tão reconfortante migrar.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Praticante habitual de leitura balnear? Ocasional.

Critério de Escolha: Conselho de amiga.

Motivo para o Interesse: É a história de uma rapariga que casou cedo de mais e acabou sozinha a trabalhar num cemitério. Apesar da soturna sinopse, está a achar uma história gira e leve. Também gosta de biografias. A seguir, quer ler A Profeta, da Maria Francisca Gama, porque segue a escritora no Instagram e ficou cativada pela forma como esta fala dos seus livros e da sua escrita. Sente-se inspirada por histórias de sucesso improvável. Gosta de sair da realidade, que descreve como dura. Os livros dão-lhe isso. Isso e companhia.

Posição de Leitura: Tobogã (deitada de barriga para baixo, cabeça virada para o mar, braços fletidos junto à cabeça e livro apoiado sobre os restantes objetos pessoais).

Vantagens: A orientação invertida do corpo leva a que mais rapidamente o sangue suba (neste caso, desça) à cabeça, o que cria por meios artificiais as condições ideais para a alucinação que só a grande literatura é capaz de gerar.

Desvantagens: Desmaios, tonturas.

Cláudia

OCUPAÇÃO: Ama
LIVRO: “A Vila dos Tecidos”, Anne Jacobs

Cláudia vive em Kent, no Reino Unido, com o marido inglês, que dorme a sesta. Está cá a aproveitar as férias letivas enquanto as filhas dos patrões viajam. Regressará em breve a Inglaterra, mas não antes de o marido inglês — que agora estremunha e estremece — comprar a tradução inglesa de um romance de José Rodrigues dos Santos. Tem um sorriso tímido, hesitante, que usa quase sempre para se acusar ao descrever a erraticidade do seu método de leitura.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Praticante habitual de leitura balnear? Sim.

Critério de Escolha: Recomendado por uma pessoa que segue no Instagram.

Motivo para o Interesse: Conta a história de uma órfã adotada por uma família alemã em 1913. É o início de uma saga familiar, o tipo de literatura favorito da Cláudia. Além disso, gosta de romances históricos ou de época. Optou pela edição portuguesa em parte para não esquecer a língua, que não parece praticar muito em Inglaterra. Ao mesmo tempo, anda a ler outra saga, sobre uma viajante no tempo, e ainda um romance de espionagem, que tem como protagonista o astrónomo Giordano Bruno, aqui convertido em detetive.

Posição de Leitura: Sentada numa cadeira de praia, à sombra do chapéu de sol.

Vantagens: Conforto.

Desvantagens: O excesso de confiança pode por vezes levar os praticantes desta posição a negligenciarem a evolução da linha de sombra e com isso obter o mais temido dos escaldões: no peito do pé.

Manuela

OCUPAÇÃO: Reformada
LIVRO: “O Que Nos Ensina a Bíblia”

Manuela está sentada, com uma perna pousada em cada toalha, caneta na mão e livro aberto na outra. Dois metros adiante, movida pela vontade de tomar banhos de sol ou pela vergonha que os avós sempre causam nos adolescentes, a neta finge ignorá-la enquanto lê um romance grosso de capa verde. Por timidez e por estar nas primeiras páginas do livro, a rapariga recusa responder às minhas perguntas, mas a avó, orgulhosa por ter sido apanhada a ler o terceiro livro da sua vida, convida-me a que me sente a seu lado e vai falando um pouco de tudo, dos oito filhos que teve e dos cinco que já morreram. Não diz qual o primeiro livro que leu, mas o segundo, O Meu Livro que É o Seu Livro, é uma autobiografia da filha. Se a minha tarde valeu por alguma coisa, valeu pelo sorriso da Manuela.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Praticante habitual de leitura balnear? Não.

Critério de Escolha: Foi-lhe oferecido e, apesar de ser católica, ficou interessada.

Motivo para o Interesse: É uma explicação da Bíblia organizada pelos Testemunhos de Jeová, que oferece uma chave de leitura para o livro sagrado dos cristãos. Com este livro, já bastante sublinhado, aprendeu que passou trinta anos a, nas suas palavras, fazer fornicação com o marido, uma vez que não eram casados. Gostou também de ler que não se deve fumar e que enquanto mulher não há necessidade nenhuma de ir para os cafés beber cerveja sozinha, quando se pode fazer isso bem melhor em casa. Parece um livro altamente específico.

Posição de Leitura: Estrela (sentada, de pernas abertas e braços esticados para a frente).

Vantagens: Maior predisposição corporal para aceitar o que é lido.

Desvantagens: Dores nas cruzes que não são brincadeira.

Sofia

OCUPAÇÃO: Médica Veterinária.
LIVRO: “Os Livros que Devoraram o Meu Pai”, Afonso Cruz

A Sofia define-se como uma pessoa muito visual que, por isso, não adora ler, mas quer contrariar isso e anda a tentar ganhar o vício da literatura, até agora sem grande sucesso, em grande medida porque adormece facilmente assim que avança nas páginas. Tem a mãe ao lado, que enquanto a entrevista dura vai lamentando não ter trazido consigo o livro que anda a ler.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Praticante habitual de leitura balnear? Não

Critério de Escolha: Uma amiga emprestou-lhe o livro há um ano mas só agora o vai ler.

Motivo para o Interesse: Lê-se muito bem, conta a história de um homem que mergulha na literatura à procura do pai, que desaparecera dentro do mundo da leitura. A escolha é também motivada por se tratar de um livro pequeno, suscetível de provocar, no máximo, três a quatro sestas.

Posição de Leitura: Posição fetal lateralizada.

Vantagens: Sombra sobre o livro.

Desvantagens: Exposição ao vento.

Passeio das Virtudes é uma rubrica sobre vidas portuguesas e portugueses nas suas vidas.

 
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