Reportagem em Marselha, França
“Ouviu falar do atentado de ontem?”, pergunta Elies Bellini, 24 anos, assim que vê chegar o imã à mesquita de Khalid Ibn Al Walid. Munir Boumaza apenas responde afirmativamente, com a cabeça. “É grave, é muito grave”, completa o jovem, vestido com uma túnica branca e um colete refletor, que é usado por todos os funcionários da mesquita.
É sexta-feira e isso significa que os quatro andares desta mesquita, num bairro residencial de Marselha, vão encher. A primeira oração, marcada para as 12h30, atrai centenas de pessoas, que chegam aos poucos. Os homens entram pela porta grande. As mulheres por outra, mais pequena e lateral.
Elies nasceu em Paris, numa família italiana do lado do pai e argelina do lado da mãe. Há poucos anos, mudou-se para Marselha, onde arranjou este trabalho como contínuo na mesquita. As sextas-feiras, dia sagrado para os muçulmanos, são invariavelmente os dias mais preenchidos na mesquita — e, por isso, aqueles que dão mais trabalho.
Ainda assim, quando acordou esta sexta-feira, o trabalho não foi a primeira coisa a cruzar-lhe a cabeça. Foi o atentado reivindicado pelo Estado Islâmico em que um homem francês matou um polícia e deixou dois gravemente feridos — tudo isto enquanto os candidatos presidenciais eram entrevistados um a um na televisão pública.
“Tudo o que se passou é horrível e para mim tudo isto é desgastante”, diz. “Mais uma vez, uns tipos que são completamente doentes do cérebro, que têm gravíssimos problemas mentais, usam o Islão como pretexto para matar inocentes.”
Uma lista longa e dolorosa de atentados
Desde o início de 2015, França tem sido alvo de vários ataques terroristas executados maioritariamente por indivíduos que ou juram fidelidade ao autoproclamado Estado Islâmico ou vêem as suas ações ser reivindicadas por aquele grupo.
O primeiro atentado aconteceu a 7 de janeiro de 2015 na redação do jornal satírico Charlie Hebdo, onde dois terroristas mataram 12 pessoas. No dia seguinte, um terceiro terrorista tirou a vida a cinco pessoas, num supermercado judaico. Mais tarde, a 13 de novembro, surgiu o ataque mais mortífero em França desde a Segunda Guerra Mundial: vários atentados, num estádio, em esplanadas e numa sala de espetáculos, o Bataclan, mataram 130 pessoas.
Já em 2016, a 14 de julho, um novo momento chocante: um terrorista conduziu um camião a alta velocidade contra uma multidão em Nice. A data é simbólica e a ocasião também: as vítimas estavam em grande parte à espera do fogo de artifício para celebrar o aniversário da Tomada da Bastilha. Morreram 86 pessoas.
Em 2017, o terrorismo voltou a atacar em França. Apesar de não ter havido nenhum atentado de grande dimensão, há uma tendência clara: atingir agentes da autoridade. Em fevereiro, um homem de nacionalidade egípcia atacou um militar com uma catana à porta do Museu do Louvre, em Paris. Em março, um homem foi morto depois de ter tentado roubar a arma a uma militar no aeroporto de Paris-Orly — no dia anterior, o mesmo homem tinha aberto fogo contra três polícias, ferindo um. A contagem termina, para já, com o atentado desta quinta-feira, 20 de abril, a três dias da primeira volta das eleições. Um homem nascido em França feriu dois polícias e matou outro — Xavier Jugelé tinha 37 anos e era um polícia ativo na defesa dos direitos LGBT.
Esta lista é dolorosa para Elies, enquanto muçulmano, mas também como familiar. No dia 13 de novembro, mataram-lhe uma prima, que estava numa das esplanadas atingidas pelos terroristas.
“Por isso é que nunca me canso de dizer que nós, muçulmanos, não temos nada a ver com o que se passa na cabeça destas pessoas”, garante.
Munir Boumaza, 45 anos, o imã da mesquita Khalid Ibn Al Walid, entra na conversa. “Nem eu nem nenhum bom muçulmano pode admitir que essa gente se diga muçulmana”, sublinha. Ao Observador, garante que, ainda assim, nunca viu nem soube de qualquer incitamento à violência ou ao ódio neste templo. E fala dele próprio e do que diz a quem lhe chega: “A única coisa que digo aos nossos fiéis é para rezarem, nunca lhes digo para irem matar civis ao tiro ou à bomba”.
A porta da mesquita Khalid Ibn Al Walid está aberta a todos. E isso significa uma coisa para o imã: “Eu não posso controlar quem sai ou quem entra, tal como ninguém sabe quem entra ou sai das igrejas ou das sinagogas”. Porém, referindo-se ao que se sabe do perfil dos terroristas que saltaram para as manchetes em França e não só, sublinha que “nenhum deles é religioso”.
“O que eles são é pessoas que têm problemas com a justiça, muitos deles já estiveram presos. Nenhum sabe o Corão, nunca entraram numa mesquita nem nunca quiseram entrar”, garante.
Elies, que está em silêncio ao lado do imã desde que este começou a falar, torna a falar. “Nós não temos nada a ver com o terrorismo, o que se passou ontem não nos representa”, repete. “O problema não é a religião.”
“Para mim, o véu é um sinal de propaganda islamista”
Para Jean Rossignol, o problema é precisamente a religião. Aos 64 anos, este urbanista reformado entretém os seus dias com algumas caminhadas por Marselha, sempre de câmara fotográfica ao peito. Nessas voltas, depara-se sempre com uma realidade que lhe causa comichão: ver mulheres com o véu islâmico.
“Para mim, o véu é um sinal de propaganda islamista”, diz ao Observador, com a sua Nikon repousada sobre a mesa de um bar no Porto Velho, no centro de Marselha.
Jean é militantemente anti-religioso. Laico e ateu, explica que o seu problema não é contra o Islão em si. “É com todas as religiões”, sublinha. “Para que se tenha uma ideia, os meus pais e os meus avós eram protestantes”, explica. “E os antepassados deles foram todos mortos por católicos.”
Hoje em dia, Jean crê que o conflito entre protestantes e católicos já está sanado. Porém, não consegue dizer o mesmo sobre o Islão e aqueles que professam outras religiões ou aqueles que, como ele, são ateus. E é por isso que, quando sai à rua, torce o nariz ou desvia o olhar quando vê um hijab.
Não foram poucas as vezes em que Jean se dirigiu a mulheres vestidas com o véu islâmico. A maior parte das interações acontecem na rua ou nos transportes públicos. Nessas ocasiões, tem por hábito dizer às mulheres: “Você sabe que eu sou homossexual?”. Depois de trocadas as primeiras palavras, pergunta-lhes: “Então e sabia que, segundo a sua religião, eu não tenho direito a viver e devia ser morto imediatamente?”. Geralmente, a reação a esta conversa não é positiva. “Muitas das mulheres vão-se embora”, refere Jean. Algumas, poucas, respondem-lhe.
Das raras vezes em que há uma conversa, Jean insiste em perguntar às mulheres muçulmanas porque é que elas usam o véu islâmico — “Porque é que não o tiram e ganham a vossa liberdade?”. “Em tempos, como homossexual, eu tinha leis que me proibiam de fazer a minha vida. E agora sou livre. Vocês não querem ser livres?”
Jean está longe de ser o único homem (e mulher) em França preocupado com o que as mulheres muçulmanas vestem. No verão de 2016, o país foi atravessado pela polémica do burkini: um fato de banho criado no início do século que tapa a totalidade do corpo da mulher e que muitas mulheres muçulmanas usaram para ir à praia.
Para este reformado de 64 anos, um burkini é tanto um “elemento de propaganda islamista” como é um hijab. “É uma provocação destas pessoas, que escolhem viver sob um conjunto de regras que não é compatível com as leis e os valores francesas”, diz.
A palavra mais importante destas eleições — e que cada um entende como quer
2012 foi há apenas cinco anos, mas de algumas maneiras parece ter sido noutra era. Nas presidenciais, embora tenha obtido 17,9% dos votos, Marine Le Pen não ficou sequer perto de chegar à segunda volta das eleições. Nesse último confronto, entre Nicolas Sarkozy e François Hollande, havia um tema a ser discutido: a austeridade.
Hoje, esta palavra mal surge no léxico político francês. Mas, no seu lugar, aparece outra: laicidade.
A laicidade está longe de ser um valor recente da República Francesa. Em 1905, foi aprovada uma lei que ditava a separação “das Igrejas” e do Estado. Na altura, foi aprovada para “assegurar a liberdade de consciência”. No seu texto, era dito que “a República não reconhece, não apoia nem subvenciona nenhum culto”.
Mas foi só em 1958 que, com a fundação da Quinta República Francesa, foi inscrito na Constituição o valor da laicidade. Não é preciso ir muito longe no texto fundamental para encontrar essa menção: está logo no primeiro artigo, depois do preâmbulo, onde pode ler-se que a República se baseia “no ideal comum da liberdade, da igualdade e da fraternidade”. E diz: “A França é uma República, indivisível, laica, democrática e social”.
Em 2004, com Jacques Chirac como Presidente, foi aprovada uma nova lei para a laicidade, respeitante ao uso de sinais religiosos nas escolas primárias, básicas e secundárias. “Os sinais e pertences que são interditos são aqueles cujo porte remeta imediatamente à sua pertença religiosa, tal como o véu islâmico, qual seja o nome que lhe seja dado, a kippa ou uma cruz de dimensão manifestamente excessiva”, lê-se na lei.
Nestas eleições, todos os cinco candidatos defendem a laicidade. Mas basta ler o que dizem nos seus programas para perceber que embora este seja um valor estimado em França — que, por isso mesmo, nenhum político se atreve a pôr em causa — cada um faz dele a interpretação que deseja.
Na extrema-esquerda, Jean-Luc Mélenchon atira farpas à direita e diz que “a laicidade está sob ataque de todos os lados e é instrumentalizada pelos seus adversários históricos, integralistas religiosos e racistas que vêem também um pretexto para poder marcar os muçulmanos”.
À esquerda, o socialista Benoît Hamon entra em menos detalhe, assegurando apenas que fará “respeitar escrupulosamente a lei de 1905”, garantindo “aplicar sanções com firmeza”.
No centro, Emmanuel Macron garante a aplicação “estrita” da laicidade, através da criação de uma formação universitária sobre o tema, que será dirigida aos líderes de culto, e prevê também “desenvolver o conhecimento das diferentes religiões na escola”. Sobre o véu islâmico diz que a interdição não será estendida às universidades.
À direita, François Fillon diz-se um “ardente defensor do princípio da laicidade” e promete “lutar firmemente contra o totalitarismo islâmico”. Além disso, diz que será “intransigente” com todas as comunidades que “entenderem colocar os seus princípios próprios à frente das leis da República”.
Por fim, na extrema-direita, Marine Le Pen quer que a Constituição passe a dizer que “a República não reconhece nenhuma comunidade” e tenciona ainda restabelecer a laicidade “em todo o lado e estendê-la ao conjunto do espaço público e inscrevê-la no Código do Trabalho”. Sem o dizer diretamente, a candidata da Frente Nacional deixa subentendido que pode querer abolir o uso do véu islâmico nos locais de trabalho e até nas ruas.
Embora com algumas hesitações, Jean concorda com Marine Le Pen neste ponto. “Nós não devemos ouvir a reação do resto do mundo se essa proibição alguma vez for para a frente”, diz. “Temos de ser fiéis aos nossos princípios e fazer cumpri-los.”
“Às vezes, proibir é mesmo a melhor ideia”, acrescenta.
Para Jean, não há nenhum assunto tão importante nestas eleições como a laicidade. Porém, a soma do peso de todas as outras (como a economia, a União Europeia ou os direitos LGBT) não deixa de ser mais pesada. Por isso, vai votar num candidato cuja posição sobre a laicidade não partilha: Emmanuel Macron.
“Vou votar nele porque ele quer continuar a permitir o casamento gay e sem dúvida que é um europeísta”, sublinha. E é por isso mesmo que não vota em Marine Le Pen. E mais: “Ela fala da laicidade, mas usa-a como um pretexto para atacar só os muçulmanos. Ela é o contrário da laicidade, ela é uma fundamentalista cristã”.
Ainda assim, a maior parte das críticas que tem sobre este tema recaem na esquerda. Durante décadas — e até 2012 —, Jean votou praticamente sempre no Partido Socialista. Hoje, faz um trocadilho com a expressão “esquerda progressista” e chama-a antes de “esquerda regressiva”.
“Antigamente, Marx dizia que a religião era o ópio do povo”, refere. “Mas agora parece que há uma contra-revolução na esquerda.” De seguida, Jean fala como se fosse ele próprio um desses políticos de esquerda que critica. “Ah, há gente que anda a dizer para matar em nome de Deus? Não faz mal, não faz mal…”, diz, pleno de ironia.
“A esquerda enche a boca com a laicidade, mas há muito tempo que não sabe o que ela significa nem a respeita”, explica. “Acordámos todos muito tarde.”
Quando uma cruz de Cristo é apenas bijuteria e um véu é um “símbolo religioso”
Para o imã Munir, da mesquita de Khalid Ibn Al Walid, “a laicidade tem muitas falhas”. Enquanto falamos, os fiéis continuam a entrar na mesquita, homens pela porta grande, mulheres pela pequena. Ainda assim, o imã assegura que “as regras do Islão não são incompatíveis com os valores da República francesa”. “Antes de ser o país da laicidade, a França é o país da liberdade”, explica. “E nós devemos ter a liberdade de assegurar as nossas tradições, a nossa religião, sobretudo quando o fazemos de forma pacífica e sem levantar ondas.”
O imã ri-se, também ele pleno de ironia, quando fala da “laicidade”. E refere o caso das escolas. “Alguém duvida de que a lei de 2004 foi feita para discriminar os muçulmanos?”, lança.
Ao lado, tem Elies, que frequentava a escola básica aquando da aprovação da lei que baniu o uso de sinais religiosos dentro dos recintos escolares. “Foi feito contra nós, claro que foi. Eu tinha uma colega que levava todos os dias um colar com uma cruz”, recorda. “Eu ia ter com a professora e queixava-me. E ela dizia que não havia problema, que não era um símbolo religioso. Era bijuteria.”
A minutos do início da primeira oração do dia, o imã tem ainda outra história para partilhar. Diz que ocorreu “em 2010 ou 2011”, numa altura em que a Associação Francesa do Sangue fez um apelo para que fosse doado sangue. “Liguei-lhes e disse que a nossa comunidade podia ajudar”, recorda. Na altura, diz que propôs à associação que deslocasse os meios até à mesquita, os fiéis, após um apelo do próprio imã, apareceriam depois para contribuir.
Não aconteceu. “Na altura disseram-me que não podia ser, porque é um local de culto”, queixa-se. “E as pessoas todas que precisavam de uma transfusão ficaram sem sangue por causa de quê? Da laicidade?”