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A vida foi-lhe brevíssima: morreu aos vinte e quatro anos, de meningite. E morreu poucas horas depois de cair, conta-se que tombado pelo sol, enquanto corria a mais importante das maratonas. Mas ao contrário da vida, da morte de Francisco Lázaro muito há que contar. Ainda hoje, mais de um século depois da tragédia de Estocolmo, há o que contar. E é quase sempre pela morte de Lázaro que se começa a história. Mesmo não tendo triunfado em 1912, foi o melhor do seu tempo: um ídolo enquanto vivo, um mito depois da morte.
O adeus: “Ou venço, ou morro”, terá prometido Francisco a Sofia
5 de maio de 1912. Era a primeira participação de Portugal nos Jogos Olímpicos da era moderna. O porta-bandeira, desfilando à frente de todos no estádio Olímpico de Estocolmo durante a cerimónia de abertura, era Lázaro, com tez morena de quem salgou a pele com suor e o sol tratou de escurecer depois, um rapazinho de olhar tímido que o bigode farto fez homem entre homens, que trazia a bandeira do país e trazia sonhos também: Lázaro queria uma medalha de ouro a reluzir-lhe no peito. A Francisco Lázaro, acompanhavam-no outros cinco atletas: do atletismo, Armando Cortesão e António Stromp; da luta, Joaquim Vital e António Pereira; Fernando Correia era, por fim, o representante único na esgrima. Lázaro era o caçula de uma delegação curta. Mas desengane-se quem pensar que foi por causa da idade que o escolheram para ser porta-bandeira; escolheram-no por ser o melhor atleta dos seis, por ser um ídolo em Portugal — talvez o primeiro ídolo desportivo, antes de Eusébio.
A especialidade de Lázaro era a maratona. Sempre foi. Corrê-la-ia nos Jogos Olímpicos a 14 de julho. Madrugou, almoçou cedo nesse dia, um domingo, por volta das 10 horas da manhã, hora e meia antes do tiro de partida. Mas a corrida não começou à hora prevista. A partida só se fez às 13h48. E tudo por causa do calor. A revista portuguesa Tiro & Sport escreveria, a 31 de julho, que se sentia um “calor ardente, quase insuportável, e muito raro” na Suécia. A prova foi sucessivamente adiada. Dos médicos que faziam parte da organização dos Jogos Olímpicos, oito em onze sugeriam que fosse ao final do dia. Não foi. E o calor até aumentou — para lá dos quarenta graus — durante a prova.
Os restantes portugueses da delegação, não sendo maratonistas como Francisco Lázaro, foram-se distribuindo, um a um, pelo percurso, incentivando Lázaro à sua passagem. E a corrida até começou bem. Aos quinze quilómetros, Lázaro era vigésimo sétimo classificado, a quatro minutos do líder Renon Boissière; nunca perdeu o francês de vista. Ao passar Sollentura, o local onde os maratonistas invertiam a marcha de volta ao estádio Olímpico de Estocolmo, Lázaro melhorou: estava em décimo oitavo, com vinte e cinco quilómetros percorridos. Fernando Correia aguardava-o ao quilómetro trinta e cinco. Mas Lázaro nunca chegou. “Ninguém sabia d’elle [Francisco Lázaro]. Regressei e, na estrada, encontrámo-nos com o automóvel do dr. António Feijó [Embaixador de Portugal na Suécia], que, conhecedor da tragédia, procurava-nos. No automóvel seguimos para o hospital. Soubemos que o infeliz campeão tinha sido fulminado com uma insolação ao quilómetro trinta; que o médico o tinha recolhido e, em automóvel, levado ao hospital; que outros três o medicavam com carinho e que, na estrada, lhe tinham aplicado gelo sobre a cabeça”, explicou, então, Fernando Correia à imprensa.
Na colina de Öfver-Järva, Lázaro tombou. Tentou levantar-se e continuar a correr, tombando uma vez mais. De vez. Chegado ao hospital, foi-lhe diagnosticada meningite, causada por uma insolação. Nenhuma injeção, das muitas de água salgada que levou, o salvou. Chegou mesmo a delirar, movendo-se como se ainda corresse a maratona. Morreu na manhã do dia seguinte, às 6h20.
À partida para a maratona apresentaram-se sessenta e oito atletas. Metade desistiu durante a prova. Francisco Lázaro não desistiu. Por causa do calor, não desistiria. E terá mesmo afirmado à imprensa, dias antes da maratona: “O calor não me incomoda. Até folgo que o haja, porque fará afastar alguns concorrentes.” No relatório da organização ao incidente não há qualquer referência ao adiamento da prova proposto pelos médicos. Lê-se apenas: “Um pobre companheiro que havia começado a prova na melhor saúde foi derrubado pelo sol e nunca mais recuperou.”
Lázaro não era casado. Diz-se dele que era, mas nunca foi. Sim, deixou uma mulher “viúva”, Sofia. E deixou-a grávida de cinco meses, despediu-se dela num cais de Lisboa e seguiu depois, de navio, até Estocolmo. Ficou prometido: haveriam de casar na volta da Suécia. Mas ele nunca de lá voltou com vida. Anos mais tarde, em 1968, Sofia recordaria ao jornal Notícias, de Lourenço Marques, o que Francisco lhe disse naquele dia: “À nossa despedida, eu chorei muito, apesar de ele se mostrar muito animado e contente, garantindo-me que ou venceria ou morreria”. Morreu a tentar vencer. Nunca conheceu o filho. Ou melhor, a filha. Lázaro queria uma filha, “pois se saísse rapaz e não gostasse de desporto, seria um desgosto” para ele, contou Sofia. Chamou-lhe Francisca, em homenagem ao pai falecido. E Francisca nunca praticou desporto. “Sabe, foi tamanha a impressão que nunca me deixaram”, contaria em Moçambique, também ao Notícias.
O começo: mais veloz que um elétrico, de Benfica ao Bairro Alto
Nasceu a 21 de janeiro de 1888, no bairro lisboeta de Benfica. Mas não nasceu “Francisco Lázaro”. Filho que era de Lázaro da Silva, foi batizado Francisco da Silva. Mas desde criança que, em correrias pelo bairro, ganhou uma alcunha. Uma alcunha que o cartório faria, anos depois, nome.
— Olha, ali vai o Chico do Lázaro!
O pai era carpinteiro e cedo, muito cedo, Francisco carpinteiro se fez com ele. Mal estudou. Era analfabeto. O primeiro emprego, a receber seis tostões por dia, teve-o no Bairro Alto, na empresa Ferreira & Viegas, da Travessa dos Fiéis de Deus. Era uma fábrica de carroçarias para automóveis — os automóveis eram, à época, mais amadeirados que de metal. Diz-se de Lázaro que raramente sorria no emprego. Apesar de prestável, de humilde, não sorria. Vê-lo sorrir, só mesmo enquanto corria, de casa para o trabalho, do trabalho para casa. Aí, correndo, o corpo que na Ferreira & Viegas era curvado pela timidez, entroncava-se, atlético, altivo — a melhor das altivez.
Mas Francisco Lázaro não era corredor na meninice. E muito menos fazia a maratona. Lázaro começou por ser futebolista, no clube do bairro, o Grupo Sport Benfica. Certo dia, na Junqueira, Lázaro é pontapeado na cabeça durante uma partida, ficando com um corte profundo na cara. E não voltou a jogar. Lázaro não corria por querer. Lázaro corria por ser pobre — e “pobreza” era tudo o que desportistas da época não tinham, sendo quase todos da aristocracia. Não tendo dinheiro para o bilhete do elétrico do Chora, fazia o percurso entre Benfica e o Bairro Alto correndo atrás deste. Desafiava-o. E chegava antes que ele a qualquer “meta”.
Era uma diversão que um acaso tornaria séria. É que num desses elétricos seguia o diretor da revista Tiro & Sport, que surpreendido pela qualidade de Lázaro, desceu, interpelou-o, perguntando-lhe de que clube era, pois nunca o tinha visto antes. Lázaro não corria em clube algum. Surpreendido, o diretor do jornal convidou-o a participar numa prova de maratona inédita no país, a “Maratona Portuguesa”, que a revista organizara a pedido (e patrocínio) do Conde da Penha Longa. Sim, o desporto era realmente ocupação de “condes” endinheirados e não de pobres. Mas Lázaro, o “pobretanas” Lázaro, aceitou participar. Seria a sua primeira prova. Apesar do nome, “Maratona Portuguesa”, o percurso era relativamente curto, tendo apenas vinte e quarto quilómetros – temia-se que os atletas não chegassem ao final dos habituais quarenta e dois da maratona. Lázaro não só chegou ao final, como venceu folgadamente. Estávamos em 1908.
O mistério: do sebo à emborcação, da meningite ao doping
Mas voltemos a Estocolmo. Afinal: de que morreu Francisco Lázaro? De meningite? E porque morreu ele? Por causa do sol, do calor? Talvez sim. Provavelmente não.
À época, não existia qualquer tipo de controlo sobre o que os atletas consumiam antes das provas – nada era verdadeiramente ilícito e doping era um anglicismo longe de ser utilizado. Só a partir da década de 1920 é que o controlo passou a ser mais rigoroso, sendo proibidos alguns estimulantes a quem quisesse competir. Mas uma coisa é proibir; outra coisa, diferente, é confirmar se os atletas cumprem ou não a proibição. Os testes anti-doping só começaram anos mais tarde, décadas mais tarde, nos Jogos Olímpicos de 1968, na Cidade do México.
Em 1912, valia tudo. E era aconselhada aos atletas uma solução para que recuperassem depois das provas e, sobretudo, para que não sentissem tanto o cansaço durante estas. Chamou-se-lhe “emborcação”. E esta, sendo habitualmente administrada por via externa, através da pele, também podia ser consumida por via oral – o que era pouco comum, uma vez que a emborcação tinha substâncias perigosas para o organismo quando ingeridas. Mas afinal, o que é a “emborcação”? Na revista Tiro & Sport de 15 de setembro de 1910, A. Malheiro escrevia sobre esta: “Devemos partir do principio de que é com a emborcação que vamos assegurar a elasticidade e a perfeita maleabilidade dos músculos, (…) tornando-os insensíveis à dor e à fadiga.” A receita era relativamente simples de produzir e mais simples ainda de comprar em drogarias ou farmácias:
— Quatro claras de ovos;
— Uma gema;
— 450 gramas de água destilada;
— 700 gramas de essência de terebinthina retificada;
— 700 gramas de ácido acético.
Mas A. Malheiro também alertava: “Não se julgue que é só com as aplicações de emborcação que se obtém a energia precisa.” Até se poderia estar a referir às sopas e descanso. Mas a verdade é que havia outra substância a ser utilizada pelos atletas (sobretudo maratonistas e ciclistas) para evitar a fadiga: a estricnina. E depois da morte de Francisco Lázaro, muito se explorou na comunicação social o “vício” que este tinha por ela. O Benfica, um dos clubes que o atleta representou, saiu em sua defesa, publicando um desmentido nos jornais. Lia-se: “Escreveu-se que Lázaro abusava da estricnina! (…) A direção do Benfica, clube a que Lázaro pertenceu por muito tempo e onde contava muitas dezenas de amigos, não pode deixar passar em silencio tais absurdas, falsas e tendenciosas afirmações. (…) Não passa de pura e malévola fantasia.”
A estricnina, quando consumida (na bebida, nos alimentos, por inalação ou absorção) em excesso, é fatal. Metabolizada que é pelo fígado, e sendo um dos estimulantes mais poderosos do sistema nervoso central, os efeitos fazem-se sentir entre 15 minutos a uma hora após a ingestão. E os sintomas podem ser ansiedade, tremor, vómitos, febre, convulsões, sendo a morte causada por asfixia e exaustão.
E se é verdade que Lázaro terá sofrido muitos destes sintomas – os “delírios” no hospital, como que correndo, poderiam ser convulsões –, também é verdade que a aplicação de estricnina era prática comum, sem males de maior. O caso mais conhecido no uso de estricnina é talvez o de Dorando Pietri. Italiano, maratonista, pasteleiro na ilha de Capri, Pietri participou nos Jogos Olímpicos de Londres, em 1908. E cortou em primeiro lugar a meta. A custo, mas cortou. Chegou ao estádio coberto de estricnina no corpo, caiu repetidas vezes, esteve perto de desistir, mas acabou por concluir a prova, levado em ombros por juízes. Acabou a maratona em 2h54m46s, mas seria desclassificado, não pelo uso de estricnina, mas por ter sido auxiliado nos últimos metros. O vencedor seria Johnny Hayes, segundo classificado, com 2h55m18s.
Armando Cortesão, que participou com Lázaro nos Jogos Olímpicos, negou então que o maratonista tenha morrido por envenenamento. E aponta as causas da morte: sebo. E calor. “O Lázaro não foi envenenado. Isso é um disparate! O Lázaro morreu por dois motivos: primeiro, porque se untou com sebo. Fui eu e o Fernando Correia, quando ele não aparecia à partida da maratona, que o procurámos no balneário e lá o encontrámos a besuntar-se com sebo. Não faço a menor ideia como Lázaro conseguiu arranjá-lo – ele que mal falava português –; mas conseguiu sebo e estava a untar-se… Eu e o Fernando ainda tentámos que ele tomasse banho, mas não havia tempo. E ele lá foi correr a maratona todo besuntado com sebo, com os poros da pele tapados, o que impedia a transpiração. E outra coisa: só ele e um japonês e que foram de cabeça descoberta àquele sol”, garantiu.
As declarações de Cortesão não são (de todo) verdades absolutas. Se é verdade que Lázaro correu de cabeça a descoberto, também é verdade que as fotografias e vídeos da época (como o de cima) provam que muitos atletas o fizeram, não utilizando qualquer proteção para o sol. Por outro lado, a teoria de que Lázaro se teria besuntado com sebo também é frágil. Desde logo, e tal como Cortesão afirma, Lázaro não teria dinheiro ou meios para adquirir sebo em Estocolmo. Depois, o sebo só era utilizado no inverno, quando as temperaturas eram baixas, sendo colocado nas articulações, para que estas não arrefecessem. Quando colocado a temperaturas mais elevadas — como as que se sentiam naquele trágico dia em Estocolmo –, o sebo derreteria rapidamente e não obstruiria os poros. A única verdade absoluta é a da autópsia: não foi detetado qualquer vestígio de sebo, de emborcação ou de estricnina em Francisco Lázaro. Pelo menos na pele.
A propósito dessa autópsia e da misteriosa morte de Francisco Lázaro, um professor do Instituto Nacional de Educação Física, Pedro Nolasco, escreveu em 1985 o livro “A morte de Francisco Lázaro”. E Nolasco contactou de perto com o caso. Quando foi aluno (anos depois da morte e também em Estocolmo) do curso de Ginástica Médica e de Recuperação no Real Instituto Central de Ginástica, Nolasco teve aulas de Patologia no hospital de Serafina, e teve-as com Folke Henchen, o médico que autopsiou Lázaro. Depois de com ele conversar, não teve dúvidas: a morte foi acidental e causada pelo sol. “Verificando que os participantes daquele tipo de prova suavam muito e esgotavam-se, calculou que a não sudação iria permitir um aumento de resistência ao esforço. (…) Tal procedimento acabou por lhe ser fatal. (…) Não fez uma eliminação fisiológica das toxinas produzidas pelos músculos em esforço, principalmente através dos rins, do fígado, pele e pulmões; entrou em desequilíbrio hidro-eletrolítico irreversível. Assim se explica o estado do seu fígado na autopsia — mirrado, do tamanho de um punho fechado e duro como uma pedra”, escreveu o médico Pedro Nolasco no livro.
Outra teoria há, contada mais recentemente pelo neto de Francisco Lázaro ao jornal A Bola, quase cem anos depois da morte do avô. Lázaro não queria correr, ponto. Daí o seu atraso na chegada à maratona e a preocupação de Correia e Cortesão em encontrá-lo. O neto, Eduardo Lázaro da Silva, filho de Francisca, a filha que o maratonista nunca conheceu, conta que o avô se recusou a correr naquelas condições, debaixo de tanto calor, e que foi convencido a participar, pois “não podia abandonar assim o sonho de uma nação”. Lázaro terá respondido: “Está bem, eu vou. Ou ganho ou morro. Mas como não querem adiar, por revolta não vou usar nada na cabeça; vou sem nada!”
E quanto ao sebo e ao envenenamento por estricnina? “É tudo mentira”, garante o neto. Ainda que para ele, e segundo lhe contou a avó Sofia, a história da morte de Lázaro continua a estar mal contada. Certo dia, já depois da morte de Lázaro, o lutador olímpico António Pereira terá procurado a viúva e desabafado: “Sofia, o melhor é aceitares o destino. Olha que eles [Comité Olímpico de Portugal] são pessoas muito influentes e podem trazer-te problemas. O que te quero dizer é que não, o Chico não passou sebo nenhum no corpo. O que o matou foi o sol e não se ter mudado a maratona para o fim do dia, como os médicos exigiram”, contou Eduardo Lázaro da Silva ao jornal A Bola.
Mas outro episódio houve a ensombrar a morte de Francisco Lázaro. O corpo esteve durante quase dois meses, sessenta dias, numa capela de Estocolmo, pois o Comité Olímpico de Portugal não tinha à época condições financeiras (e a família de Lázaro menos ainda) para trasladar o corpo de volta ao país. Seria o rei sueco, Gustavo V, a ordenar que um navio da marinha sueca trouxesse Lázaro de volta a casa e ao cemitério de Benfica, pagando a Coroa todas as despesas fúnebres. Mais: na Suécia foi realizado um festival desportivo para angariar fundos para a filha de Lázaro, que só nasceu quatro meses depois da morte do pai. Ao todo, foram angariadas 14.040 coroas suecas, qualquer coisa como 3.500 escudos — o equivalente ao que Lázaro ganharia em vinte anos na fábrica do Bairro Alto.
O legado: o melhor de todos, o primeiro dos ídolos
A primeira corrida em que Lázaro participou foi a de 1908, organizada pela Tiro & Sport: a “Maratona Portuguesa”. E venceu, claro. Tal como venceria, nesse mesmo ano e poucos meses depois, outra prova de fundo, agora no circuito de Linda-a-Pastora. No ano seguinte, por causa de uma doença pulmonar grave, não correu, voltando apenas em 1910. E aí voltou a vencer uma maratona – agora sem aspas, pois tinha os quarenta e dois quilómetros habituais. Partiu da Praça Duque de Saldanha, foi a Sacavém, à Póvoa de Santa Iria, passou por Santo Antão do Tojal e Loures, voltando à Praça Duque de Saldanha em 2h57m35s.
Em 1911, e a convite do próprio Cosme Damião, ingressou no Benfica. E foi pelo Benfica que venceu o primeiro corta-mato organizado em Portugal. Um corta-mato só para duros: 4.200 metros nos terrenos do Campo do Lumiar, num percurso que tinha barreiras em madeira com dois metros de altura, muros tão ou mais altos, escadarias com dezenas de degraus, entre outros obstáculos pouco habituais para um maratonista. Foi a 5 de abril de 1911 e Lázaro venceu, tal como venceria nesse ano (e ainda com o Benfica) os famosos “Trinta quilómetros do Sport Clube Progresso”.
No ano seguinte, ano olímpico, deixaria o Benfica para se juntar ao Lisboa Sporting Clube, presidido pelo excêntrico José de Mascarenhas. Mascarenhas prometeu a Lázaro “melhor higiene e melhor alimentação”, para que este chegasse a Estocolmo na melhor forma e trouxesse uma medalha de lá. Não, não era impossível que Lázaro ganhasse uma medalha. Antes pelo contrário. Johnny Hayes venceu a maratona dos Jogos Olímpicos de Londres, em 1908, com um tempo de 2h55m18s. Em 1912, e correndo pelo Lisboa Sporting Clube, Lázaro venceu novamente uma maratona em Portugal, agora com um tempo de 2H52m08s. Hayes percorreu, em Londres, 42.195 quilómetros; em Lisboa, por estradas mais esburacadas que as londrinas, quase nunca empedradas e menos ainda alcatroadas, Lázaro percorreu 42.262 quilómetros, num percurso que terminaria no alto da íngreme Calçada de Carriche. O jornal Os Sports Ilustrados perguntava, em fevereiro desse ano: “O que não faria Francisco Lázaro se tivesse uma preparação cuidada?” E respondia: “Estamos convencidos de que baixaria o recorde a menos de duas horas e trinta minutos.”
“Os resultados deixam-me animado, porque nunca vi fugirem-me os primeiros prémios, e assim, de corrida para corrida, aumenta o meu entusiasmo”, confidenciou Lázaro em Estocolmo. E explicava a sua técnica para a maratona na Suécia: “Habitualmente, deixo-me ficar na retaguarda dos corredores. Duas vantagens eu vejo nisso: não me fatigar inutilmente logo no inicio do percurso, e ter ensejo de apreciar a corrida de todos os meus competidores.”
Um dia houve em que Lázaro não teve competidores para ver correr, nem os das maratonas, nem os elétricos do Chora, nenhum. Foi num treino, em Benfica, quando alguém lhe falou de uns “deliciosos pastéis” que se vendiam perto de Odivelas. Lázaro, naquele mesmo instante, fez-se à estrada, correu até Odivelas e voltou, reza a lenda, pouco tempo depois, “fresco e calmo”. Sim, é uma lenda. Como a vida e a morte de Francisco Lázaro foram: lendárias.