O consumo de heroína roubou-lhe os traços da cara e do corpo. Franzino, fios de cabelo grisalho e desalinhado, não quer sequer dizer o nome, aquele que a PSP já registou tantas vezes. Só quando o gravador é desligado, e deixa de haver provas, é que tira as mãos dos bolsos e solta o desabafo. “Eu sou ladrão. Não vale a pena. Fazer carteiras é um vício”. Aos 42 anos, Artur (nome fictício) é um entre dezenas de carteiristas seguidos diariamente por polícias à civil. Um “vício” que nem os períodos de tempo passados na prisão conseguem matar.
Os raios de sol aquecem e os turistas enchem as ruas e os elétricos no centro de Lisboa. Condições favoráveis aos carteiristas. Os dois elementos da Divisão de Segurança a Transportes Públicos da PSP estão vestidos à civil e mesmo que usassem um qualquer disfarce são já reconhecidos à distância pelos carteiristas da capital. Nestes dias, polícias e ladrões cumprimentam-se. A PSP conhece os cafés, ruas e becos onde eles se encontram. Eles conhecem cada um dos agentes e dos carros à civil. Artur chama-lhe o jogo “do gato e do rato”: de um lado os polícias que procuram flagrantes ou prova para investigações, do outro carteiristas que tentam furtar sem ser apanhados.
Segundo a PSP, há dois grupos de carteiristas a atuar em Lisboa: os cidadãos de origem de países de Leste, que perseguem grupos de turistas pelas ruas da cidade, e os grupos de portugueses que atacam nos elétricos. Os primeiros gostam de percorrer as ruas a pé. Preferem grupos de turistas de origem asiática e são mais desorganizados. Chegam a percorrer quilómetros. Os portugueses são mais meticulosos, atacam no interior dos elétricos e selecionam as vítimas. Sempre estrangeiras. Retiram o dinheiro e livram-se das carteiras para não ficarem com a prova do crime nas mãos. Os mais profissionais chegam, mesmo, a devolver as carteiras às vítimas depois do furto.
Uns ou outros, diz a PSP, atuam normalmente em grupo fazendo passar-se por turistas. Usam malas a tiracolo e mapas para poderem esconder as mãos no momento do furto. E, nas palavras do agente da PSP que o Observador acompanhou no terreno, chega a haver “dinastias” entre os carteiristas. Ou seja, famílias inteiras que vivem do furto de carteiras. Artur podia ser um desses casos. O irmão está em prisão preventiva depois de ter sido detido com nove outros suspeitos por dezenas de furtos qualificados. Uma investigação que culminou na acusação de dez arguidos, alguns com laços familiares, e cujo julgamento começa em fevereiro no Campus de Justiça, em Lisboa. O Observador teve acesso às imagens que constam neste processo. As possíveis, já que os carteiristas têm por hábito colar pastilhas ou papéis nas câmaras de videovigilância dos transportes públicos, como pode ver no vídeo.
Artur ainda se cruzou com o irmão na prisão. Já lá tinha estado a cumprir uma pena por tráfico de droga, mas, agora, voltara para cumprir “25 meses por carteira”, conta ao Observador. O irmão chegou à cadeia pelo mesmo crime. Como Artur saiu há cerca de dois meses, as regras dos serviços prisionais ditam que não o pode visitar. Pelo menos até perfazer os seis meses.
Em Braga, onde nasceram estes dois irmãos, ninguém sabe da vida que levam. Nem um dos irmãos, que é militar da GNR. “Não tem acesso à base de dados da PSP”, diz Artur, sem conseguir deixar de sorrir e mostrar os dentes, também eles destruídos pela heroína. “A minha família diz para eu voltar para Braga. Uns têm restaurantes, outros trabalham na construção civil e arranjavam-me trabalho”, diz Artur, pai de dois filhos que vivem no Porto.
“O que é que eu te disse na última vez que te detive?”, pergunta-lhe o agente da PSP. Sempre que é detido, Artur mostra-se arrependido e promete mudar de vida. Diz que caiu nas malhas deste crime depois de cumprida a primeira pena de cadeia. “Não arranjava trabalho em lado algum”. Mas acaba por dizer que, antes “de fazer carteiras”, ainda trabalhou a servir à mesa. Em tribunal o discurso é diferente. Diz sempre que nada fez e nunca assume a autoria de um crime. “Digo que é tudo mentira, que a polícia está a mentir”. O discurso bem-disposto salta depois para os lucros. Na verdade, assume, o assalto em que lucrou mais dinheiro não foi com uma carteira. Mas, também não diz pelo que foi. Sabe-se que o irmão já esteve preso por mais de uma dezena de assaltos a bancos. Será que Artur foi seu cúmplice?
Ainda assim, uma só carteira já lhe valeu sete mil euros. E na semana antes de falar ao Observador fez uma “com mil euros”. Valor que justifica viver alguns dias nas linhas da lei. “Sei que se for detido e for presente ao juiz fico preso. Tenho muitos processos pendentes”. Artur diz que prefere turistas chineses ou alemães. “Têm mais dinheiro”. Os portugueses ficam a salvo. “Já têm muitas coisas para pagar”.
Na esquadra da PSP, o valor mais alto de um furto por carteirista alguma vez registado atingiu os 20 mil euros. Isto se a memória não falha aos polícias que andam no terreno. Estavam guardados num saco de plástico e pertenciam a um cidadão chinês.
“Os turistas têm que ter cuidados extremos. Estamos a falar de pessoas que são profissionais do furto. Conseguem abrir uma mochila, escolher o que está lá dentro para furtar e depois fugir sem a vítima nunca dar por isso”, alerta o subcomissário Tiago Silva, comandante das brigadas de investigação criminal da Divisão de Segurança a Transportes Públicos.
E não é só no elétrico 28. A Divisão de Segurança a Transportes Públicos do Comando de Lisboa foi criada precisamente para os vários meios de transportes. E as equipas de investigação criminal têm trabalho em todos eles (leia-se elétricos, autocarros, comboio e metro). Também há registo deste tipo de furtos à porta dos museus e nas chegadas do aeroporto de Lisboa. Mas é no elétrico 28, que faz o percurso entre Campo de Ourique e a Graça ou o Martim Moniz – passando pelos bairros históricos de Lisboa – que há registo de mais furtos por carteirista. Segue-se o 15, que liga a Praça da Figueira a Belém e que também é muito utilizado pelos turistas. “99% dos furtos por carteirista são feitos a turistas”, diz o subcomissário.
Em 2014, a Divisão de Segurança a Transportes Públicos registou 5511 furtos por carteirismo – uma média de 15 furtos por dia e só na zona de Lisboa. No ano anterior tinham sido registados cerca de metade, 2920 em todo o ano. Os furtos aumentaram e as detenções também: 73 detidos em 2014 e 25 em 2013.
Artur é um entre dezenas de carteiristas com ficha policial bem preenchida. Está parado numa esquina com a Rua da Conceição, na Baixa de Lisboa – um dos locais referenciados pela PSP como ponto de encontro destes suspeitos. Ao lado dele, o rapaz de boné garante ao polícia que a mãe, também ela carteirista, agora mudou de vida. “Trabalha numa caixa de um supermercado”. Não quer mais “fazer carteiras”. Já a tia, detida no âmbito do processo que será julgado em fevereiro, “está muito magra e diz que não volta a esta vida”. O rapaz do boné está com uma pena suspensa por tráfico de droga. “Senhor polícia não me posso meter em mais nada. Eu tenho um filho para criar”.
Chamam-lhe “Aníbal dos Transportes”, tem 77 anos e é, provavelmente, o carteirista mais velho ainda “no ativo” no centro de Lisboa. Naquele dia acabara de apresentar-se na esquadra da PSP da Mouraria quando a polícia o encontrou. Duas ou três perguntas e desfiou o novelo da história da sua vida. De pijama debaixo da roupa, visivelmente mais magro que o habitual, o homem de sobrancelhas negras, mas de cabelo grisalho numa cabeça já calva, contou não ter sido ladrão toda a vida. Nascido na freguesia de Cabreiros, em Arcos de Valdevez, viveu com uma mulher de quem tem uma filha. E até foi empresário.
Em Lisboa chegou a ter dois negócios abertos: uma tabacaria e uma peixaria. Mas o vício do jogo fê-lo perder tudo. Até a mulher. Dedicou-se à “montada” (ato de fazer o furto). E agora também lhe chama um vício. A PSP, que lida de perto com estes casos, reconhece que normalmente há um vício associado a este tipo de crime. Seja o vício do jogo, do álcool ou mesmo da droga.
Pela experiência do psicólogo Pedro Hubert, especialista em adições, o vício do jogo está normalmente associado a crimes de “colarinho branco”, como a fraude, a corrupção ou mesmo o não pagamento de créditos. No entanto, admite ao Observador, para o carteirismo são necessários “sangue frio e um controlo muitas vezes conseguidos após o consumo de álcool ou droga”. Por outro lado, Pedro Hubert acredita que a “adrenalina, a euforia, a sensação forte” podem, de facto, tornar-se numa adição em pessoas com predisposição para tal. Na perspetiva do psicólogo criminal Carlos Poiares, “há carteiristas por vício, por adição, mas também há pessoas que gostam do desafio e do risco. Pode haver ainda pessoas com traços de psicopatia”. Há ainda os que furtam por uma necessidade momentânea e, no extremo oposto, que fazem disso um estilo de vida. Como o “Aníbal dos Transportes”.
Um dos episódios, que ainda hoje faz a polícia soltar uma gargalhada, aconteceu junto aos pastéis de Belém. Um novato na “montada” acabara de furtar uma carteira com cartões multibanco e respetivos códigos e não sabia o que fazer. Pediu ajuda a Aníbal e deslocaram-se os dois a uma caixa multibanco. Assim que o dinheiro começou a sair da caixa, o novato ficou tão excitado que começou a gritar. Um agente da PSP à civil, que passou naquela rua em treino físico, pensou que Aníbal era uma vítima e que estava a ser assaltado junto ao multibanco. Interveio e acabou por deter os dois. Mais tarde Aníbal quase chorava na esquadra da PSP. “Nunca tinha visto tanto dinheiro a sair de uma máquina!”.
Os processos de que foi alvo amontoam-se. Aníbal está, agora, obrigado a apresentações periódicas no âmbito de um processo. Mas há um outro, em recurso, que poderá ditar-lhe a prisão em breve. Neste foi condenado pelo furto de um iPhone em pleno Metro. E se a figura de Aníbal em pouco se coaduna com a de um ladrão, outros há que passam menos despercebidos ainda. A menos que sejam já conhecidos da PSP, como é o caso do carteirista que sobrevive graças a uma bomba de oxigénio. E que é com ela que faz furtos no interior do elétrico.
Crime e castigo? Nem sempre
Passa das 10h00. Os cinco romenos, quatro homens e uma mulher, usam mochilas e mapas e atravessam o Terreiro do Paço em passo acelerado. Os polícias já conhecem alguns deles. Seguem-nos discretamente. Assim que entram no elétrico 15, com destino a Belém, e dão pela presença do polícia, abandonam imediatamente aquele meio de transporte. Ainda assim a polícia identifica-os. Alguns já têm ficha policial, outros não.
“Os cidadãos de Leste estão sempre em movimento por vários países da Europa. Eles não têm medo, não têm nada a perder. Funcionam em rede e telefonam uns aos outros de imediato. Vivem em pensões por Lisboa. Mudam de país. São presentes a um juiz e libertados sob obrigação de apresentações periódicas, mas é muito difícil verificar se as cumprem”, admite o subcomissário Tiago Silva.
Mesmo os carteiristas portugueses que furtam são apanhados e libertados. É que à luz da da lei, só podem ficar em prisão preventiva em caso de furto qualificado, ou seja, em furtos de “valor elevado”, como refere o Código Penal. O furto simples é um crime punível até três anos de cadeia e não prevê a aplicação de uma medida de coação tão grave.
Os dez suspeitos que se vão sentar no banco dos réus, já a 3 de fevereiro, foram formalmente acusados em setembro, quatro meses depois de terem sido detidos pela PSP e mais de um ano depois de investigação. Um deles, conhecido por “Zé do Porto”, tem 52 anos e já tinha sido detido nove vezes. Dedicava-se aos furtos no elétrico 28 numa espécie de sociedade com o filho, um mecânico de 31 anos, e outros oito suspeitos (entre eles uma mulher: a tia do amigo de Artur). Todos eles, de acordo com o processo que o Observador consultou, vivem nos bairros históricos de Lisboa e conhecem bem os cantos da cidade.
Os arguidos reuniam-se diariamente na Rua da Conceição, junto à Igreja da Madalena, numa pastelaria ou num restaurante – onde ainda agora é ponto de encontro de carteiristas, lê-se na acusação.
“Quando eram muitos dividiam-se em grupos. O total dos furtos era dividido entre todos”, refere o Ministério Público. Os suspeitos levavam “mapas, jornais, malas e casacos e a tiracolo, vulgo “muletas”, que utilizavam para ocultar a colocação das mãos nos bolsos ou malas das vítimas”. Assim que tinham as carteiras nas mãos, os arguidos abriam-nas “ainda no elétrico, retiravam o dinheiro, deixando ali os documentos, após o que num gesto de cidadania as entregavam aos ofendidos ou então as arremessavam ao chão”. A ideia era não reter a prova do crime e, em caso de detenção, não terem na sua posse qualquer elemento de prova. Mais. Os suspeitos tinham ainda o cuidado de tapar as câmaras de videovigilância do elétrico com pastilhas ou papéis.
Um dos arguidos, que chegou a estar preso preventivamente, violou a pulseira eletrónica e encontra-se em fuga. Diz-se que está em Espanha. Os restantes estão prestes a ser julgados por dezenas de crimes de furto qualificado. Sempre a turistas. Terão feito dezenas de assaltos.
PSP avisa
A PSP tem feito várias campanhas para prevenir o furto por carteiristas. Também a Carris e o Metro se juntaram em novembro para alertar os utentes para este tipo de crime. Estas campanhas são normalmente divulgadas em vários sites dedicados a turistas e nos vários meios de transporte público.
Alguns conselhos para evitar ser uma vítima:
– Guardar a carteira junto ao corpo.
– Andar com chaves nos bolsos interiores do vestuário.
– Redobrar a atenção à entrada e saída dos veículos ou carruagens. Atenção a pequenas distrações.
– Manter os pertences junto a si, nunca os colocando sobre os bancos.
– Transportar mala ou saco na parte da frente do corpo, seguro com uma mão.