É a primeira manifestação em que participa e teve a sorte de estar num lugar com vista privilegiada sobre a enorme mancha humana. Mariana, de dois anos, segue às cavalitas do pai, agente da Polícia de Segurança Pública (PSP), na marcha em direção à Assembleia da República (AR). Ouve com entusiasmo os muitos apitos que acompanham os passos dos milhares que deixam o Largo do Carmo, no centro de Lisboa, e acompanha a melodia do hino nacional que vai sendo entoado pelas ruas. No fundo, esta luta também é para ela.
“Isto é essencialmente por eles. Eles é que são o nosso futuro. Quando afetam as condições de trabalho dos pais, obviamente que também prejudicam a educação dos filhos”, conta ao Observador a mãe, Milene.
Milene também é uma estreante no protesto que Pedro Costa moveu, a 7 de janeiro, quando escreveu uma carta aberta e gravou um vídeo a anunciar que, a partir desse dia, ia dormir para a frente da AR. “Ele fez o que muitos queriam fazer, mas não tinham coragem. Ainda bem que depois o seguiram. Enquanto família, temos muito a agradecer-lhe”, admite.
Apesar de esta ser a sua primeira vez no protesto que nasceu depois da aprovação do aumento do suplemento de missão para a Polícia Judiciária (PJ) – que, em alguns casos, representa um crescimento de 700 euros no vencimento daqueles inspetores –, Milene e o marido já marcaram presença em muitas outra manifestações. Umas justificadas pela profissão do agente da PSP, outras pela carreira do outro.
“Sou enfermeira e digamos que os polícias e os enfermeiros são chamados o parente pobre do nosso Governo“, critica. “Fazemos parte dos esquecidos. Estão habituados a que trabalhemos por amor à camisola, mas não nos reconhecem por isso.”
Foi pelo amor à camisola e pela falta de reconhecimento que Milene, o marido e a filha Mariana se juntaram à concentração que, esta quarta-feira, encheu o Largo do Carmo, em Lisboa. E não foram os únicos a sair à rua para protestar por melhores salários e condições de trabalho.
“Percorremos 400 quilómetros para ficar tudo na mesma”
São 17h30 e a marcha não dá sinais de arrancar. Os polícias que conversam alegremente de copo na mão não parecem preocupados com isso. Outros, pelo contrário, assobiam continuamente e gritam “andem”, desejosos de chegar à AR. Afinal, a impaciência já se acumulava quando ainda estavam longe da cidade.
“Percorremos 400 quilómetros para ficar tudo na mesma”, ouve-se um polícia a dizer a outro. Apesar do tom de brincadeira, o sentimento é partilhado por muitos outros que se têm juntado ao protesto.
Há mais de 20 anos que Manuel [nome fictício] é militar da Guarda Nacional Republicana (GNR). E durante esse tempo, garante, nunca deixou de lutar por melhores condições de trabalho. No entanto, a revolta aumentou quando viu o filho a seguir a sua própria carreira profissional.
“Estou a ganhar o mesmo que o meu filho. E ele trabalha numa caixa de supermercado”, desabafa, em conversa com o Observador. Manuel apareceu no Largo do Carmo na esperança de que isso pudesse mudar. O protesto das últimas semanas empurrou as reivindicações dos polícias na ordem do dia, mas as consequências práticas — fora alguns sinais de apoio — não se materializaram.
Desde que Pedro Costa foi dormir para o Palácio de São Bento – para protestar contra as desigualdades entre a PJ e a PSP, GNR e Corpo da Guarda Prisional – que pouco ou “nada” mudou no que diz respeito às forças de segurança, lamentam muitos dos que estiveram esta quarta-feira em Lisboa. O Presidente da República falou, para defender um suplemento “equiparado” para todos, e o ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, sugeriu que esse valor deve ser integrado no salário (em vez de ser enquadrado como um valor adicional, isento de deducões fiscais e, por isso, sem impacto no valor a atribuir à reforma, décadas mais tarde). No entanto, para alguns dos presentes, as palavras dos responsáveis políticos são apenas isso, “palavras”.
Jorge [nome fictício] tem ido todos os dias à AR. Até agora, diz que a única coisa que mudou foi a “união dos polícias”, mas promete não parar até que algo mais seja feito. “Enquanto nada mudar, vamos continuar a lutar. Já não é a primeira vez que digo isto e não será a última”, revela ao Observador
Agente da PSP há 30 anos, já está habituado a fazer soar o seu apito em manifestações e a erguer a carteira profissional durante os minutos de silêncio. E se há algo de que não abdica é a “reivindicar” o que entende que devia ser seu por direito.
“Merecemos ser tratados por igual em relação às restantes forças deste país e ter um suplemento que represente o nosso risco”, aponta. “Tal como a PJ, vamos trabalhar e não sabemos se voltamos. A qualquer minuto, seja por que razão for, alguém tem uma arma e pode disparar contra nós.”
Jorge não fala por experiência própria, mas sabe que há quem exija o mesmo com o trauma marcado no corpo. “Em 25 anos de serviço, já vi dois colegas serem baleados”, recorda Sónia [nome fictício], enquanto caminha, com a bandeira portuguesa a espreitar pela mochila que leva às costas.
Os suplementos, contudo, não são a única razão que leva Sónia até ali. “Se pudesse voltar atrás no tempo”, admite, “não voltaria a ingressar nesta profissão”.
“Não sou de Lisboa, mas não tive opção senão [organizar] a minha vida cá, porque fui transferida no início da minha carreira”, conta. “Agora, tenho colegas que não veem os filhos, maridos e mulheres porque estão longe de casa.”
“Há seis meses que o meu marido não faz gratificados. Tivemos de escolher entre ter um pai em casa ou dinheiro ao final do mês”
Milene e o marido não passaram pelo mesmo, mas apenas porque a enfermeira seguiu o marido quando ele foi deslocado para Lisboa. “Somos do Alentejo, do distrito de Portalegre, mas ele veio para cá e eu não tive remédio senão vir com ele”, lembra, sendo interrompida por Mariana que, ainda equilibrada sobre os ombros do pai, chama pelo colo da mãe.
Apesar da decisão de virem os dois para Lisboa, o casal chegou mesmo a viver como se estivesse em casas diferentes. Ou, pelo menos, foi o que pareceu a certa altura.
“Quando viemos para cá, só havia uma forma de o meu marido ganhar um salário digno: a fazer gratificados. Há seis meses que não faz, porque tivemos de escolher entre ter um pai em casa ou dinheiro ao final do mês. E nós optámos pelo pai em casa”, anuncia.
Os gratificados têm sido um dos pontos de maior tensão do protesto iniciado por Pedro Costa. Com jogos para a Taça de Portugal, Taça da Liga e Campeonato a decorrer, foram vários os apelos lançados para que os polícias se ausentassem dos serviços remunerados por entidades privadas, impedindo assim que as partidas se realizassem. No entanto, e apesar de ter havido diversas iniciativas nas bancadas, onde dezenas de elementos das forças de segurança se vestiram de preto e cantaram o hino nacional, a ideia falhou.
Mas não na família de Milene, onde a escolha de deixar de fazer gratificados também a levou a pensar no modo de vida. “Vivemos em Lisboa, mas não temos qualquer tipo de apoio que nos ajude a pagar a renda. A isso acresce o facto de a minha filha estar numa escola privada, porque não tem lugar na pública”, explica. “No fundo, vivemos como ricos, mas não ganhamos como tal.”
O mesmo acontece com os cerca de 15 mil polícias — números da organização — que chegam à AR, por volta das 19h45. No meio do cheiro a bifanas acabadas de fazer e das faixas a garantir que os “polícias estão unidos”, ouve-se o som de um trompete. É o mote para uma nova incursão no hino nacional.
Mas agora o tom é mais agressivo e as palavras são pronunciadas de forma diferente. A vontade de chegar ao destinatário – o poder político – é maior do que era no Largo do Carmo e leva inclusivamente os próprios polícias que guardam a escadaria do Palácio de São Bento a encará-lo de frente. O clarão de luz que os milhares de telemóveis provocaram mostram que a luta ainda não acabou. E, segundo os próprios, não vai acabar. Não enquanto a igualdade não estiver assegurada.