O Governo não deve avançar com a garantia pública ao crédito à habitação (para jovens até 35 anos) sem pedir uma opinião ao Banco Central Europeu (BCE), que tem a responsabilidade da supervisão do mercado bancário da zona euro. A recomendação foi feita pelo Banco de Portugal, no parecer que entregou no início deste mês ao Governo e que levou a um atraso na regulamentação dessa medida de apoio aos jovens, que já deveria estar no terreno desde 1 de agosto. A ministra da Juventude já admite que possa estar apenas em vigor em dezembro.

O decreto-lei que viabiliza que o Estado ajude os jovens a comprar casa foi publicado em Diário da República no dia 10 de julho (depois de promulgado pelo Presidente da República no dia 26 de junho) e foi dado um prazo de 60 dias para que fosse feita a regulamentação. Isso significava que a medida estaria no terreno a partir de 10 de setembro, muito mais tarde do que o 1 de agosto inicialmente prometido pelo Governo – mas nem mesmo esse prazo foi cumprido.

Na sexta-feira, dia 6 de setembro, o jornal Eco noticiou que a regulamentação da garantia ia demorar mais 15 dias, ou seja, sensivelmente até ao final desta semana (que termina a 20 de setembro). O adiamento, face ao prazo de 60 dias, foi decidido porque o Ministério das Finanças precisava de fazer um esforço suplementar para acomodar as várias reservas e reparos que o Banco de Portugal fizera no parecer que tinha sido enviado na semana anterior.

Bancos podem precisar de até dois meses para "adequar os seus sistemas"

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Não sendo ainda certo quando é que a legislação estará concluída, os bancos avisam que a implementação no terreno não será imediata – pode levar até mais dois meses.

“Tendo em conta a experiência anterior de implementação de novas medidas, estando em causa alterações significativas, são necessários aproximadamente 60 dias para que as instituições possam adequar os seus sistemas”, refere fonte oficial da Associação Portuguesa de Bancos (APB).

Ao que o Observador apurou, o Banco de Portugal manifestou, nesse parecer, muitas dúvidas sobre a compatibilização do decreto-lei com a (sua) “medida macroprudencial” que, desde meados de 2018, limita o valor dos financiamentos de crédito à habitação a 90% da avaliação do imóvel. Em viva voz, o governador Mário Centeno já tinha dito publicamente, quando a proposta da garantia pública foi apresentada, que essa recomendação era “para levar a sério”.

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Mário Centeno sustentou que foi, em parte, graças a essa medida que se contiveram os riscos para a estabilidade financeira do País, que poderia ter ficado em maior perigo com o súbito aumento das taxas de juro, que começou em 2022. Além da limitação ao valor do financiamento total, a “medida macroprudencial” também impõe limites à taxa de esforço (rendimentos vs encargos) e à idade dos mutuários – mas o que está em causa, na proposta da garantia pública (parcial, até 15%), é que poderá estar-se a “contornar” aquilo que o supervisor financeiro impôs como regra.

É por essa razão que o Banco de Portugal, no parecer que entregou ao Governo, admite que a garantia pública, se avançar, é uma medida que pode chocar com a independência dos bancos centrais que está prevista nos tratados europeus. Daí ser recomendável, considera o Banco de Portugal, que previamente seja consultado o Mecanismo Único de Supervisão (SSM, na sigla por que é mais conhecido o organismo que funciona dentro do BCE).

Questionado sobre se já fez (ou planeia fazer) esse pedido de parecer ao BCE, o Ministério das Finanças não quis fazer quaisquer comentários. Já fonte oficial do Banco de Portugal não respondeu às questões do Observador até à publicação deste trabalho.

Fontes do setor financeiro admitem, porém, que o BCE não deverá ser um obstáculo inultrapassável, já que em Espanha está em vigor um regime semelhante ao que está a ser planeado para existir em Portugal. Ainda assim, esperar pela resposta do BCE – mesmo que positiva – poderá atrasar ainda mais a entrada em vigor da medida.

A ministra da Juventude e da Modernização, Margarida Balseiro Lopes, admitiu, nesta quarta-feira, atrasos na concretização da medida, mas assegurou que estará em vigor ainda este ano. “Em dezembro, estará em pleno funcionamento”, afirmou a governante.

O que se sabe sobre como a garantia vai funcionar

O Governo tem falado, na legislação que está a ser lançada, em “duas entradas” que estão a dificultar o acesso dos mais jovens à habitação: uma é o IMT (e imposto de selo) que é preciso pagar para comprar casa e a outra é a “entrada inicial” que os bancos passaram a exigir após a crise financeira (e, formalmente, a partir de 2018).

A isenção de IMT, em certas circunstâncias, já está em vigor desde 1 de agosto e, só até meados de setembro, aproximadamente 900 pessoas já terão beneficiado, revelou nesta quarta-feira a ministra Juventude e Modernização, Margarida Balseiro Lopes. Mas falta entrar em vigor a garantia pública, isto é, os jovens (até 35 anos) que não conseguirem pagar a “entrada” ao banco vão poder ter o Estado como “fiador”, cobrindo até 15% do valor de aquisição da primeira casa (para habitação própria permanente).

Os 15% são o máximo – um “valor de referência”, disse o Governo – que é superior aos 10% que vinham sendo referidos pela Aliança Democrática desde a campanha eleitoral. Os bancos, por regra imposta pelo Banco de Portugal em 2018, limitam o financiamento aos 90% do valor da avaliação, pelo que o Governo vai um pouco mais longe do que os 10%, o que poderá ser útil em casos que as avaliações fiquem um pouco abaixo do valor da compra.

Na prática, isto significa que em vez de os jovens estarem limitados a 90% do financiamento passam a poder pedir 100% do valor ao banco – sendo que até estar pago, por exemplo, 15% da dívida, o Estado atuará como um “fiador” parcial. Ou seja, não é o Estado que paga a entrada, é quem compra. O Estado funciona apenas como fiador em até 15% do financiamento. Quando o Governo diz “esquece a entrada no empréstimo da casa” quer dizer que não precisa de ter esse dinheiro disponível logo no ato da compra, pode ir pagando esse valor no âmbito do empréstimo contratado com o banco.

E se o cliente deixar de pagar? Em caso de incumprimento pelo cliente, o Estado terá de responsabilizar-se pelo pagamento das prestações ao banco, em termos que ainda serão definidos em maior detalhe. Caso a garantia seja exercida e o Estado tenha de substituir-se ao cliente no crédito bancário, o contribuinte terá mais tarde de devolver o dinheiro ao Estado.

A garantia pública apenas pode ser aplicável a compras de casas no valor até 450 mil euros. Ou seja, no máximo, a garantia incide sobre 67.500 euros. Ao contrário da isenção de IMT/IS, aqui foi definida uma limitação relacionada com os níveis de rendimento: apenas os contribuintes que estão, no máximo, no 8.º escalão do IRS (81.199 euros de rendimento anual coletável) podem usufruir do apoio.

Têm de ser compradores com residência fiscal em Portugal, que não sejam já proprietários de outra casa ou fração. E também não podem ter beneficiado, no passado, de outros regimes públicos de garantia de crédito.

Os detalhes de como isto vai funcionar, em concreto, ainda não são totalmente conhecidos. Mas já se sabe que a garantia pública (de até 15% do valor de aquisição dos imóveis por jovens até aos 35 anos) extingue-se quando estes primeiros 15% do empréstimo forem pagos – um esclarecimento que foi dado pelo ministro da Presidência, António Leitão Amaro.

Quem recorrer à garantia pública vai pagar mais pelo crédito?

Os planos de pagamento de créditos à habitação são sempre calculados conforme o valor em dívida em cada momento, o que significa que se pedir ao banco a totalidade do valor (200 mil em vez de 170 mil, por exemplo) isso levará, matematicamente, a um cálculo de juros superior em euros. No final do empréstimo, sendo este mais volumoso, é inevitável que se terá pago um valor mais elevado em juros.

Porém, sendo fácil antecipar que se pague mais juros em euros, outra coisa diferente é prever que o mesmo cliente possa ter de pagar juros mais elevados do ponto de vista percentual, isto é, do spread (margem de risco) que lhe é aplicado pelo banco e que vai ser determinante para calcular as prestações mensais a pagar.

Em termos simples, imagine-se o caso hipotético de duas pessoas diferentes que entram no mesmo banco para comprar duas casas de valor semelhante. Ambos têm profissões e rendimentos semelhantes, mas um deles acumulou (ou herdou) o valor suficiente para a entrada inicial e o outro não tem esse dinheiro, pelo que quer recorrer à garantia pública de até 15%. Irá o banco oferecer um spread menor (menos penalizador) ao primeiro do que ao segundo?

Embora ainda seja necessário ver a medida ser regulamentada para conhecer a realidade prática, os bancos não estão a dar indicação de que irão cobrar spreads (margens de risco) mais elevados – o presidente do BPI, por exemplo, garantiu que isso não irá acontecer. Mas tratando-se de um empréstimo maior (mesmo que parcialmente garantido pelo Estado) é possível sejam exigidas margens de risco maiores.

A resposta a esta pergunta irá depender, também, da concorrência entre os diferentes bancos – em teoria, estes tenderão a concorrer uns com os outros para oferecer spreads mais baixos aos clientes que beneficiam da garantia pública.