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George P. Smith, Nobel da Química em 2018, em entrevista exclusiva ao Observador
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George P. Smith, Nobel da Química em 2018, em entrevista exclusiva ao Observador

AFP via Getty Images

George P. Smith, Nobel da Química em 2018, em entrevista exclusiva ao Observador

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George P. Smith, Nobel da Química, sobre a Covid-19: "A nossa resposta à pandemia foi uma 'geringonça'"

Avisa que nenhuma pandemia acabou com uma vacina e esta não deve ser exceção. Critica a resposta à Covid-19 e chama-lhe "geringonça". George P. Smith, Nobel da Química, em entrevista exclusiva.

George P. Smith, imunologista e professor emérito de ciências biológicas na Universidade Missouri, só tinha “uma ideia muito vaga” do que era uma ‘geringonça’, o termo pelo qual é conhecido o Governo português que saiu do acordo entre o PS, o Bloco  e o PCP. Por isso, quando aceitou o convite para participar na Conferência iMed — um projeto da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova, que decorreu entre 30 de setembro e 4 de outubro —, decidiu “ir ler um pouco” sobre o termo.

Foi assim que o especialista descobriu que o nome do acordo partidário que formou um governo inédito em Portugal também pode ser “uma boa expressão para os investimentos de emergência caóticos dos governos para o desenvolvimento de vacinas”. O que o leva a dizer que provavelmente não usará “a mesma palavra quando fizer apresentações semelhantes em outros lugares”.

Mas, na verdade, foi com uma espécie de geringonça, mas de natureza bioquímica, que George P. Smith venceu em 2018 o Prémio Nobel da Química. “Phage Display”, uma técnica que instrumentaliza um determinado tipo de vírus para a produção de anticorpos úteis aos humanos, já foi usada para desenvolver medicamentos contra a reumatóide, psoríase e doenças inflamatórias do intestino. Até fármacos semelhantes ao cocktail de anticorpos administrado a Donald Trump no dia em que foi internado com Covid-19 podem ser criados através desta ferramenta que desenvolveu.

The Nobel Prize Award Ceremony 2018

George P. Smith, a receber o Nobel da Química 2018

WireImage

Que descoberta é esta que lhe permitiu ganhar o Nobel da Química?
É um produto da minha história enquanto cientista. A “Phage Display” surgiu em vários passos de muitos interesses que tive. Houve um período na minha carreira em que usei estes vírus, estes fagos… Fagos são vírus que se replicam em células bacterianas. Usei-os para vários propósitos, interessei-me por eles e depois pensei nesta possibilidade, que surgiu do conhecimento de uns fagos que havia noutros laboratórios: usá-los como transportadores de proteínas vindas de fora. Essa é a essência da técnica “Phage Display”.

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Como funciona o "Phage Display"?

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Os bacteriófagos são vírus que só conseguem infetar bactérias. No Phage Display, acrescenta-se no material genético destes vírus o gene que expressa o anticorpo que queremos produzir para combater uma doença.

Os vírus são depois introduzidos em bactérias para se replicarem. Quando isso acontece, a maquinaria da célula obedece às instruções a bordo do material genético — incluindo do gene que foi acrescentado ao vírus —, dando origem a novos vírus que, à superfície, levam à boleia os anticorpos que nos interessam.

Isto é feito com muitos vírus, cada um deles com a informação genética para anticorpos diferentes. Para saber qual deles pode combater uma determinada doença, expõe-se uma proteína específica do agente patogénico a esses anticorpos. Aquele que se ligar melhor à proteína é o que deve ser escolhido.

De quanto tempo precisou para criar esta tecnologia?
Isto aconteceu no fim de 1984 e trabalhei nisto durante seis anos, juntamente com muitos outros laboratórios e com os meus colegas no Missouri. Em 1990, o mecanismo já estava bem estabelecido.

Seis anos para criar uma tecnologia vencedora de um Nobel. Ficaria surpreendido se uma vacina contra a Covid-19 ficasse disponível em meses?
Bem, se isto tivesse acontecido há vinte anos ficaria muito surpreendido. Mas [agora] há tecnologia de ponta, plataformas com base em ARN disponíveis que podem ser usadas para criar as vacinas contra a Covid-19. Com estas plataformas, a mesma tecnologia com o mesmo processo de produção e o mesmo processo de ensaios clínicos é aplicável para quase todas as doenças infecciosas. Como a produção se torna muito rápida e muito genérica, e como depende de químicos muito simples e do ARN do vírus, eliminamos uma série de complicações comuns nos métodos tradicionais.

Uma vacina num ano é possível, então?
É muito possível que a vacina esteja pronta tão rapidamente. Mas tudo depende dos resultados dos ensaios clínicos, que são essenciais aqui: temos de demonstrar claramente que a vacina é segura e que é eficaz. A rapidez com que isso vai ocorrer vai depender dos resultados dos ensaios. Ou seja, é possível — talvez não muito provável, mas é possível que tenhamos o suficiente para certificar uma vacina e aprová-la dentro de alguns meses. Mas depois… Quem sabe de quanto tempo precisaremos para administrar a vacina a toda a gente que precisa dela?

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Qual seria um prazo realista para conseguir tudo isso?
Não sei se um prazo será a maneira correta para pensar nisto. Se encontrarmos problemas no caminho que tenham de ser ultrapassados, pode haver atrasos. Mas isso não é uma boa razão para terminar o programa, mesmo que a vacina não venha a ser a estratégia primária de ultrapassarmos esta pandemia.

Acha que não vai ser?
O que acalmou a pandemia da sida e a colocou a um nível muito mais controlado foi basicamente o desenvolvimento de dois medicamentos que funcionam de forma independente. E foi isso que a tornou mais administrável por volta de 1995. Podemos esperar a mesma coisa para esta pandemia com o novo coronavírus.

Porquê?
Devo dizer que nunca houve nenhuma pandemia que tivesse sido interrompida por uma vacina. Certamente que, se olharmos para a varíola ou para a poliomielite, estas são pandemias em que as vacinas tiveram um papel muito importante em acabar com elas, mas isso foi ao longo de muitas décadas, não ao longo de apenas um ano ou dois. Acho que não devemos depositar todas as nossas esperanças numa vacina. Temos de continuar com a nossa linha de ataque atual: medidas que previnam fisicamente que nos infetemos uns aos outros. E também há a possibilidade de medicamentos que trabalhem contra o vírus, tal como aconteceu quando se controlou grandemente a pandemia da sida.

O que acalmou a pandemia de sida a um nível muito mais controlado foi basicamente o desenvolvimento de dois medicamentos que funcionam de maneiras independentes (...). Podemos esperar a mesma coisa para esta pandemia com o novo coronavírus. Devo dizer que nunca houve nenhuma pandemia que tivesse sido interrompida por uma vacina.
George P. Smith, Prémio Nobel da Química em 2018

De que tipo de medicamentos estamos a falar?
Não tenho certeza se sabemos claramente o que acontecerá com a pandemia, se vai ser controlada principalmente por uma vacina ou por distanciamento social ou por medidas muito simples de saúde pública ou por medicamentos ou qualquer outra coisa. Mas acho que, se tivermos pelo menos dois medicamentos diferentes, que funcionem de formas diferentes — e isso é muito possível para o coronavírus… Há quatro enzimas dos coronavírus e cada uma delas é um alvo independente para medicamentos. Muitos laboratórios públicos e industriais estão a trabalhar em atacar essas enzimas.

Porque é que precisamos de dois medicamentos?
No caso do vírus da sida, o primeiro medicamento (AZT) era razoavelmente eficiente, mas era muito tóxico. Os pacientes com VIH detestavam tomar aquele medicamento. Entretanto, o vírus sofreu uma mutação e tornou-se resistente a esse medicamento. E esses pacientes, que andaram a tomar um medicamentos muito tóxico, ficaram doentes à mesma. A pandemia só começou a ficar sob controle quando um segundo medicamento teve como alvo um aspeto completamente diferente do VIH: outra enzima, a protease. Se se administrar os dois em conjuntos, o vírus pode sofrer uma mutação para ter resistência a um deles, mas muito dificilmente sofrerá ao mesmo tempo uma mutação que o tornará resistente aos dois. Ou seja, aqueles que são resistentes ao AZT ou aos descendentes deste medicamento, que são muito menos tóxicos, ainda resultará perante o inibidor da protease; e vice-versa.

Este princípio faz sentido de uma forma geral. É verdade para a malária, por exemplo. A maior parte dos medicamentos contra a malária são usados numa terapia de combinação: usam dois remédios diferentes porque a resistência aos medicamentos também tem marcado a luta contra a malária há muito tempo, por isso esta é a única forma eficaz a longo prazo de a combater. Devo dizer que a malária é uma doença pandémica dos mais pobres, por isso as empresas têm muito pouca motivação para investir nisso — por isso é que temos tão poucos fundos contra a malária, devíamos ter muito mais. Se pelo menos a justiça social tivesse alguma coisa a ver com a forma como os medicamentos são desenvolvidos… Não tem tido.

Nesse caso, estamos a investir o suficiente nesta solução para o novo coronavírus?
O investimento é, de facto, um grande problema aqui. As empresas farmacêuticas estão a investir muito nisto e a um ritmo de emergência, não só em vacinas mas também em medicamentos contra o vírus. Se falarmos de investimento público, quase todos os países, e especialmente os Estados Unidos, também estão a gastar muito dinheiro público para tentar travar o vírus, a um ritmo de emergência.

Mas esse investimento público de emergência não é bem pensado porque surge de uma situação de urgência. Não pensámos muito claramente sobre como podemos fazer isso. Uma grande aprendizagem que se tira sobre esta pandemia é que nos ensinou que já nos devíamos estar a preparar para fenómenos destes muito tempo antes de ocorrerem. E tínhamos todas as razões para fazer isso: como é uma questão pública, devia estar a receber investimento público. Assim não teríamos a resposta caótica de emergência que temos tido agora.

Uma grande aprendizagem que se tira sobre esta pandemia é que nos ensinou que já nos devíamos estar a preparar para fenómenos destes muito tempo antes de ocorrerem. E tínhamos todas as razões para fazer isso: como é uma questão pública, devia estar a receber investimento público. Assim não teríamos a resposta caótica de emergência que temos tido agora.
George P. Smith, Prémio Nobel da Química em 2018

O que é que está a faltar para que isso se concretize?
Há duas partes na minha resposta. O que está a faltar para o investimento é que os governos hoje em dia são muito avessos aos impostos, principalmente os Estados Unidos. Em vez de gastarem dinheiro público adiantadamente no desenvolvimento de fármacos, o governo prefere dar monopólios de patentes para medicamentos, onde se incluem as vacinas. Isso significa que ficamos dependentes do investimento privado. E significa que o investimento será muito mais custoso. Ou seja, os preços praticados por este monopólio vão ser muito superiores do que se gastaria com o financiamento público do desenvolvimento de vacinas e outros produtos farmacêuticos.

E a outra parte da questão?
Está relacionada com a forma como os governos estão a responder, como é que se estão a relacionar com a ciência que sustenta a forma como estamos a combater esta pandemia. Vamos ser muito claros: esta pandemia tem características que eram verdadeiramente desconhecidas a priori. Sabíamos muito sobre os coronavírus, claro, mas este em particular, o SARS-CoV-2, é muito diferente em coisas essenciais quando comparado com o primeiro SARS em formas que não tínhamos forma de prever.

Vários governos responderam a isto de formas diferentes e os Estados Unidos certamente não são um modelo de bom comportamento neste aspeto. Acho que o nosso governo obstruiu a ciência e que a política sobrecarregou a ciência. Em muitos aspetos temos um conflito entre as duas coisas. Claro, há alguns países onde isso não ocorreu, mas quase todos tiveram uma espécie de mistura dos dois lados [política vs. ciência]. Mas os Estados Unidos certamente não se portaram bem. Saímos da Organização Mundial da Saúde no meio de uma luta global contra essa pandemia. E era essencial porque para uma doença pandémica temos que lidar com isto globalmente, não apenas país por país.

Que tipo de trabalho de casa já devia estar feito para gerirmos melhor esta pandemia? Falhámos ao ter parado a investigação com o primeiro SARS?
É uma boa questão. Quando o primeiro SARS apareceu, houve muito interesse na comunidade científica de encontrar uma vacina que o pudesse combater; e até se usaram as tecnologias de ponta com as vacinas de ARN — que, para mim, são as melhores candidatas neste momento. O ARN já tem uma plataforma que pode ser aplicado a quase todos os vírus. Mas a investigação para a aplicação dessa plataforma no SARS foi muito difícil de concretizar porque a indústria não estavam interessada nisso.

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Porque não?
A indústria quer rentabilidade a curto prazo. É muito difícil convencer a indústria a investir em projetos de longo prazo, como a preparação para uma pandemia, quando nem sabemos que agente patogénico a vai criar. Então, como não investimos nisso, perdemos muito tempo, que podíamos estar a usar para testar estas plataformas e fazerem o trabalho de desenvolvimento que agora foi feito de emergência e de uma forma algo caótica. Podíamos ter feito isto de maneira mais lógica e calma quando não estávamos realmente a batalhar uma pandemia. Esse é o principal motivo para se investir publicamente na preparação independente para uma pandemia. E se tivéssemos feito isso à luz do que aprendemos sobre o SARS, conseguiríamos uma posição muito melhor. Talvez até já tivéssemos a vacina ou, pelo menos, estaríamos mais perto dela.

Se temos estas plataformas para criar vacinas, como é que continuamos com tantas doenças sem vacinas para as prevenir?
Durante muitos anos, estive interessado em estudar a malária. E a malária seria uma doença pandémica perfeita em que uma vacina seria uma coisa maravilhosa para o mundo, mas no fim de contas o desenvolvimento de uma vacina para a malária revelou-se um problema extraordinariamente difícil. Não acho que haja uma resposta “de tamanho único” para todas as doenças pandémicas. Mas devo dizer que a malária era muito mais pandémica há 100 anos. Era uma doença das regiões tropicais, mas também das regiões temperadas. Nos Estados Unidos, temo-la tão a norte que chega a Nova Iorque. E essa pandemia foi maioritariamente gerida com medidas muito simples de saúde pública.

Agora, vamos olhar para a pandemia atual. A saúde pública é essencial para lidar com o novo coronavírus porque sabemos que, já na  gripe em 1918, o distanciamento social, a utilização de máscaras, a prevenção de grandes ajuntamentos foram medidas importantes. Foram-no naquela altura e são-no em 2020. Foi crucial, tal como aconteceu na China e outros países que controlaram com sucesso a epidemia, medidas de saúde pública que não exigem altas tecnologias, nem vacinas ou fármacos contra o vírus.

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George P. Smith numa palestra sobre a Phage Display na Universidade de Estocolmo

AFP via Getty Images

Mas não devíamos estar a trabalhar igualmente rápido em vacinas para outras doenças?
As vacinas estão a ser desenvolvidas a um ritmo frenético em comparação com outras vacinas no passado. Chegámos a um ponto que levaria anos para alcançar a maioria das vacinas. Isso acontece parcialmente porque temos em funcionamento estas plataformas como os vírus da ARN, mas também temos outras que são formas prontas-a-usar de desenvolver vacinas e que seriam rapidamente aplicáveis a novas doenças como esta pandemia de coronavírus. Esta forma de olhar para o desenvolvimento de vacinas, com base em plataformas, acelerou muito a maneira como as vacinas estão a ser criadas.

As vacinas estão a ser desenvolvidas a um ritmo frenético em comparação com outras vacinas no passado. Chegámos a um ponto que levaria anos para alcançar na maioria das vacinas. Isso acontece parcialmente porque temos em funcionamento estas plataformas como os vírus da ARN (...). Esta forma de olhar para o desenvolvimento de vacinas, com base em plataformas, acelerou muito a maneira como as vacinas estão a ser criadas.
George P. Smith, Prémio Nobel da Química em 2018

Então, há vírus que são mais fáceis de combater com vacinas do que outros.
Sim, é verdade. Acho que os coronavírus seriam um caso fácil e provavelmente vamos encontrar uma vacina que funciona muito bem. Podem não dar proteção de longo prazo, mas por pelo menos um ano ou mais parece ser muito provável.

Mas que garantia temos que não vai acontecer o mesmo que com a sida?
Pode acontecer também não encontrarmos a vacina, mas a sida foi um caso muito difícil… como a malária, ainda que por razões diferentes. Em primeiro lugar, o VIH ataca o sistema imunitário. Sabemos que, quando o sistema imune identifica pela primeira vez o VIH, desenvolve uma resposta imune que é bastante bem sucedida em suprimir a carga viral. Mas depois o vírus destrói o sistema imunitário, que deixa de ter o controlo da situação se não for auxiliado por medicamentos.

O outro motivo para a sida ser um caso difícil é que, como acontece com outras doenças infecciosas, o vírus da sida consegue esconder-se no corpo de uma maneira que não desperta o sistema imunitário de forma latente. Ou seja, o vírus pode ficar nos nossos cromossomas sem ser expresso, por isso não há maneira de o sistema imunitário saber que ele está lá. Então, ficamos com umas células adormecidas que alojam o vírus, prontas a disparar. Quando essas células são ativadas, o vírus também o é,

E os vírus respiratórios…
Os vírus respiratórios, os vírus com ARN — como o da febre amarela ou o ébola — não têm a capacidade de se esconder desta maneira, essa dificuldade não existe. Há uma lista bastante grande de agentes infecciosas para os quais será mais fácil encontrar uma vacina do que casos tão difíceis como o VIH.

Quais podem ser os obstáculos em encontrar uma vacina para a Covid-19?
Acho que não sabemos quais são os obstáculos neste caso. De resto, estamos no início do desenvolvimento da vacina. Mas acho que estamos numa boa posição para descobrir em breve se esta vacina funcionará. Há boas razões para acreditar que sim, e digo isto com base nas investigações feitas com este novo coronavírus e com outros, especialmente o do SARS.

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Disse-me há pouco que, para si, as vacina com base em ARN são as mais promissoras. Porquê?
Uma vacina consiste num antigénio, que normalmente é uma proteína mas que também podem ser outras moléculas do vírus; ou no agente patogénico completo que é “morto” por químicos, como a vacina da gripe sazonal; ou o vírus pode ser mantido em cultura e modificado de forma a que não provoque a doença mas continue a replicar-se até certo ponto no corpo. Quando a vacina é administrada, isso desencadeia uma resposta imunitária que faz anticorpos contra a proteína ou contra o vírus atenuado; e células que são específicas para aquele vírus. A resposta imune é muito específica para o agente patogénico, quase não existe antes do primeiro encontro do organismo com ele.

Pronto, estas são as vacinas tradicionais. Mas as vacinas de ARN são muito diferentes: o que se administra é o ARN, não é o antigénio. O ARN entra nas nossas células — há um protocolo muito simples para formular como é que isso acontece — e diz às células para fazer o antigénio. Ou seja, em vez de administrar o vírus em si, administramos instruções para que algumas células se tornem fábricas. Isso traz muitas vantagens.

Quais?
Em primeiro lugar, é muito, muito possível levar o ARN para dentro das células com recurso a tecnologia muito simples e desenvolver assim um processo de produção que é igual qualquer que seja o ARN em causa — não depende de onde veio, se é de um coronavírus ou de outro vírus qualquer. Não importa. Outra vantagem é que, quando o ARN entra nas células, elas reconhecem-no como algo que não devia estar lá e recruta o chamado sistema imune inato.  Ele não é específico para agentes patogénicos, mas reconhece algumas coisas que estão associados com eles. E um dos sinais de alerta é haver ARN onde não devia estar normalmente.

Isto leva o sistema imunitário inato a recrutar células que são muito importantes para responder especificamente àquele agente patogénico, ou seja, iniciar a resposta imune adaptativa. É muito mais específico, muito mais intenso e rápido que a resposta imune inata, que são os socorristas. A questão é que parte do trabalho destes socorristas é recrutar a resposta imune adaptativa e o ARN faz isso sozinho. Nas vacinas mais tradicionais, o antigénio tem de ser acompanhado por um adjuvante para recrutar o sistema imune inato porque a vacina por si só não o vai fazer.

O que é um adjuvantante?

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Os adjuvantes são componentes que se acrescentam às vacinas para melhorar a resposta imunitária aos agentes patogénicos em que se baseiam. As vacinas contra a gripe sazonal têm estes adjuvantes para que se possam usar cargas virais mais baixas em cada dose administrada.

Dois dos adjuvantes atualmente utilizados em vacinas certificadas pela Agência Europeia do Medicamento é o esqualeno (uma substância sintetizada naturalmente no fígado e nas plantas) ou o hidróxido de alumínio, que compõe um mineral chamado gibbsita.

Mas qual é o problema do adjuvante?
É que, primeiro: temos de descobrir qual é que funciona para aquela proteína em particular. Segundo: os adjuvantes nem sempre são necessariamente seguros. Alguns adjuvantes que eram muito, muito populares há cinquenta anos já não são utilizados porque provocavam respostas inflamatórias. Então, ter uma vacina de ARN que age como o seu próprio adjuvante torna-se uma vantagem.

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George P. Smith durante uma conferência de imprensa na Universidade do Missouri

AFP via Getty Images

O ARN de que fala é o material genético do próprio vírus, certo?
Sim, é isso mesmo.

E se esse ARN tiver muitas mutações, a vacina não perde eficácia?
É uma excelente questão porque é um problema com que temos de lidar na vacina contra a gripe sazonal. A vacina tem de mudar de ano para ano porque o vírus muda, portanto a vacina que funciona este ano pode não funcionar em 2021. Isso pode acontecer com o coronavírus, não posso negar isso. Mas há duas coisas que tornam isto menos problemático para os coronavírus. Uma delas é que os vírus da gripe sofrem mutações a um ritmo muito superior ao dos coronavírus.

Acho que não é uma possibilidade muito grande. Ninguém no seu perfeito juízo colocaria essa opção de parte, mas acho que é uma possibilidade muito inferior à que existe para o vírus da sida ou para o vírus da gripe.

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A Covid-19 levou-nos a testar novas tecnologias, procurar atalhos que aceleram a investigação, aprender mais sobre o vírus e sobre nós mesmos. É um daqueles casos em que um mal veio por bem?
Pode ter um lado positivo se nos avisar que, por uma questão de auto-preservação, realmente devemos prestar atenção às expectativas sobre as pandemias. O mundo já passou por muitas pandemias, não tão más quanto esta desde a pandemia da sida. Mas lembra-nos que vale mesmo a pena investir em preparação antecipadamente.

Nós estávamos lamentavelmente pouco preparados para esta pandemia. As nossas respostas têm sido uma ‘geringonça’ (risos). Tem sido mais uma ‘geringonça’ do que uma resposta muito bem pensada. Podíamos fazer bem melhor. Esta pandemia pode fazer-nos notar que vale a pena prepararmo-nos antecipadamente para outras coisas além de vacinas e fármacos. Por exemplo, um programa de testes genéticos que seria rapidamente implementado para uma nova pandemia… Uma espécie de plataforma genérica que pudesse ser aplicada a qualquer agente infeccioso. Podíamos testar as sete mil milhões de pessoas duas vezes por semana (risos) e mandar abaixo uma pandemia. Temos o equipamento e os meios para fazer isso, mas ainda não descobrimos uma maneira de o implementar. De qualquer forma, acho que essas são aspirações que devemos manter em mente. E se levarmos essas aspirações a sério, seria uma fresta de esperança a retirar desta nuvem tão escura.

Nós estávamos lamentavelmente pouco preparados para esta pandemia. As nossas respostas têm sido uma 'geringonça' (risos). Tem sido mais uma 'geringonça' do que uma resposta muito bem pensada. Podíamos fazer bem melhor. Esta pandemia pode fazer-nos notar que vale a pena prepararmo-nos antecipadamente para outras coisas além de vacinas e fármacos.
George P. Smith, Prémio Nobel da Química em 2018

Mas considera que esta rapidez em que a ciência entrou pode ter conduzido a algumas decisões pouco éticas? Vimos revistas científicas de referência a publicar dados duvidosos, por exemplo.
Em resposta a esta pandemia, houve grandes mudanças na literatura científica. Os artigos eram publicados antes de terem sido aceites por uma revista de referência e isso é absolutamente essencial porque se pode publicar os resultados imediatamente para ficarem disponíveis para toda a gente.

Claro que vai haver alguns artigos que são publicados e têm erros, porque não foram bem pensados ou a metodologia tinha lacunas. Mas não sei se houve algum exemplo de algo que tenha sido publicado desta forma em resposta à pandemia e que não tenha sido corrigido. Os políticos fizeram declarações prejudicais e erradas, obviamente erradas. Mas não sei se se pode apontar isso à ciência.

Todos nós publicamos coisas que estão erradas. É como a ciência funciona. São conjecturas e refutações. Tudo o que publicamos é, de certa forma, uma conjetura: conjeturamos que isto ou aquilo está certo. Não temos evidências de que nada na ciência jamais é correto. E, na verdade, não há nada que se possa dizer sobre a natureza que seja 100% certo.

Resisto à ideia de que a ciência tem sido um monte de erros e que os cientistas têm sido descuidados. Acho que a ciência basicamente está a funcionar como normalmente, mas é admirável que esteja a funcionar num ritmo muito melhor. Não acho que tenhamos de depender do Supremo Tribunal dos jornais de referência para nos darem o aval nas coisas que publicamos.

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D.R.

De quem é a culpa desta pandemia?
Bem, não vou dizer que é a China. A China não nos deu esta pandemia e acho que, se adotarmos esse tipo de abordagem preconceituosa em relação às pandemias, estaremos… bem, nem é a dar um tiro no pé: é dar um tiro na cabeça. Falta de preparação, acho que foi o problema principal. É muito difícil prever como é que uma pandemia vai surgir. Se pensarmos que devemos combater as pandemias ao evitar comer animais selvagens em países pelo mundo também é uma abordagem muito particular que não se vai aplicar  a todas as pandemias com que nos possamos vir a confrontar.

Esta pandemia surgiu simplesmente do mundo natural. Surgiu porque existem vírus que se adaptaram a muitas espécies de animais. No caso dos coronavírus especialmente aos morcegos. No caso do vírus influenza por causa dos pássaros: há centenas de vírus influenza de espécies de aves. Normalmente não fazem mal às aves, há poucos que sejam letais em aves, e alguns deles, por causa da nossa relação próxima com os pássaros, ocasionalmente saltam para os humanos ou saltam para um animal e depois para os humanos.

Com o SARS, e com este novo SARS também, também foi assim. Surgiu do mundo natural, parcialmente porque, na nossa civilização, temos uma relação muito próxima com os animais. Acho que devíamos estudar isso mais cuidadosamente do que temos feito. E esse é outro investimento valioso nesta pandemia: estudar como é que as pandemias entram na população humana, maioritariamente. A maior parte das nossas doenças infecciosas são zoonóticas, vêm de reservatórios de animais e da nossa associação próxima com eles. Não sei se há alguma exceção de uma doença séria em humanos que não tenha vindo dos animais.

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Então, considera que em última análise a culpa é da natureza?
Não, não acho que a culpa seja da natureza. Acho é que temos de ser inteligentes. Nós, humanos, mudámos enormemente o mundo. Mudámos a ecologia do mundo. Estamos numa era que é caracterizada pelo domínio de uma só espécie animal. Temos de ser conscientes. E isto não tem a ver apenas com as pandemias: tem a ver com o aquecimento global, as alterações climáticas. Temos que estar cientes do que fazemos ao mundo e levar isso em consideração nas nossas próprias vidas. Penso que vamos mudar algumas coisas fundamentais na forma como vivemos.

Não acho que a culpa seja da natureza. Acho é que temos de ser inteligentes. Nós, humanos, mudámos enormemente o mundo. Mudámos a ecologia do mundo. Estamos numa era que é caracterizada pelo domínio de uma só espécie animal. Temos de ser conscientes. E isto não tem a ver apenas com as pandemias: tem a ver com o aquecimento global, as alterações climáticas.
George P. Smith, Prémio Nobel da Química em 2018

O que vai mudar?
Nos países ricos como os Estados Unidos, acho que vamos deixar de conseguir comer tanta carne quanto comemos agora porque é demasiado custoso e muito prejudicial para o ambiente. Não vamos conseguir ter carros muito baratos que andam por aí, vamos ter carros relativamente caros porque vamos ter de usar eletricidade sem qualquer emissões de carbono. Mas esse é um desafio ainda maior para nós do que as pandemias. Tenho a certeza de que toda a gente concorda.

Mencionou as teorias que culpam a China pela pandemia. A Covid-19 tornou-se demasiado política?
Em alguns países. A China é acusada de suprimir informações sobre a pandemia no início e há motivos para acreditar nisso, mas não tenho certeza se é pior do que o que teríamos feito nas mesmas circunstâncias. Porque todos os países querem prevenir o pânico. Nós dependíamos muito da China para começar o ataque a esta pandemia, estávamos muito atrasados em usar a ciência. Todos os países têm um grande interesse em lutar contra esta pandemia, por isso uma política que nos afasta de qualquer parte dessa resposta global é uma política de auto-flagelação. Receio que o nosso país [EUA] seja um dos piores criminosos.

Quais vão ser as nossas preocupações quando já houver uma solução para a pandemia?
Acho que devemos ter uma mentalidade diferente para as pandemias. Temos que ter uma mentalidade que nos impele a prepararmo-nos com antecedência e a ter uma forma razoável de antecipar o que devemos fazer quando surgir uma nova pandemia. Isso também nos vai ajudar com doenças não-pandémicas. Quer dizer, há doenças que não são pandémicas mas para as quais seriam bom ter uma vacina. Ainda hoje usamos a vacina do sarampo, que é uma potencial pandemia. Em alguns sítios há surtos e epidemias; e esta é uma vacina útil a longo prazo. Possivelmente, se fizermos este coronavírus desaparecer, talvez a vacina contra ele vai ser uma daquelas que se administram na infância. É uma possibilidade.

Falávamos há pouco de justiça social… Depois de termos um medicamento ou uma vacina, qual vai ser a forma mais justa de a distribuir?
Este coronavírus não é uma pandemia dos pobres, é de toda a gente, por isso existe um incentivo muito grande, um incentivo muito maior para o mundo manter um poderoso arsenal farmacêutico contra esta doença. Há vários consórcios e a Organização Mundial de Saúde é um deles. Infelizmente, o meu país saiu da luta da OMS contra esta pandemia e seria um grande contribuidor para ela. Um investimento muito mais forte na preparação mundial para pandemias, e no tratamento das pandemias quando elas realmente ocorrerem, incluindo esta, é muito necessário — não apenas pela justiça social, embora seja certamente uma consideração prioritária

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Durante quanto mais tempo poderemos aguentar este novo estilo de vida, cheio de restrições?
Bem, seria um problema aguentar estas restrições no nosso estilo de vida durante muito tempo. Quando foi a pandemia de gripe de 1918, as pessoas também se fartaram disto — do distanciamento social, usar máscaras. Tal como agora, as pessoas protestaram. Em muitos países, especialmente os mais ricos, que protestam hoje em dia, fazem-no porque estas coisas significam que têm de mudar a sua forma de viver. Honestamente, não simpatizo muito com regras que impeçam de ir a um restaurante. Preocupa-me que estejamos a fechar as economias e isso sai extremamente caro. Infligimos prejuízos enormes às nossas economias para combater esta batalha, apesar das medidas de saúde pública. Se houver formas mais baratas e menos prejudiciais de combater esta pandemia, essa deve ser uma prioridade muito alta.

Preocupa-me que estejamos a fechar as economias e isso sai extremamente caro. Infligimos prejuízos enormes às nossas economias para combater esta batalha, apesar das medidas de saúde pública. Se houver formas mais baratas e menos prejudiciais de combater esta pandemia, essa deve ser uma prioridade muito alta. Uma forma é testar, testar muito frequentemente, mesmo que não seja com testes muito sensíveis.
George P. Smith, Prémio Nobel da Química em 2018

Como podemos fazer isso?
Uma forma é testar, testar muito frequentemente, mesmo que não seja com testes muito sensíveis. A testagem muito frequente juntamente com a obediência de isolamento em casos positivos… A testagem frequente seria muito caro, mas sairia muito menos caro do que fechar a economia. Se só isolarmos as pessoas que testam positivo, isso significa que muito pouca gente sairá da economia… Para aí 1% ou coisa assim. Isolar essa quantidade de pessoas é muito diferente de isolar toda a gente. E se os encontrarmos muito rapidamente, em coisa de um dia, seria ainda melhor. As pessoas que estão infetadas, que estão suficientemente infetadas para passarem a outras pessoas, se obedecerem às regras de isolamento, isso seria uma forma muito barata de abrir a economia sem permitir que a pandemia se espalhe. Em alguns meses num regime assim seria suficiente para dominar a pandemia. Porque se, em média, todas as pessoas infetadas contagiarem meia pessoa, em vez de duas e meia (risos), a pandemia acaba.

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