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Jeff J Mitchell

Jeff J Mitchell

Geração Bataclan: presa entre o medo e a bravura de viver a vida como Paris manda

Reportagem em Paris: Aldona estava num primeiro encontro quando o terror tomou Paris. Os atentados — um ataque à vida boémia que leva — deram-lhe vontade de fazer e refazer tudo o que Paris permite.

João de Almeida Dias, em Paris

“O tango tem regras. E entre elas há uma que é mais importante do que todas as outras: aconteça o que acontecer, não podes sair com o teu parceiro. Pode parecer uma piada, mas há muita gente que leva isto a sério. Eu já danço tango há muitos anos e nunca a tinha quebrado.”

Até que chegou sexta-feira, dia 13: “Um bom dia para quebrar regras”, pensou Aldona Nowowiejska, uma música polaca que vive em Paris há 18 anos. Tem 47 anos mas, da primeira vez que fala da sua idade, diz por lapso que tem 37, o que condiz mais com a sua pele lisa. E, de espírito, parece ter 27.

Fabian, o francês que Aldina escolheu para quebrar a regra número um do tango, foi assistir a um concerto da polaca junto à Opera, no centro de Paris. Acabado o espetáculo, decidiram caminhar ao longo do canal Saint-Martin. Foi o primeiro encontro entre os dois e a conversa corria-lhes bem, digna de uma cena de uma comédia romântica. Chegaram a inventar nomes fictícios um para o outro. Fabian ficou como Lukasz, um nome polaco escolhido à medida de Aldona. Ela ficou como Kaelig, por ser um nome típico da Bretanha, a região onde Fabian nasceu.

“Estamos a ir contra as regras”, dizia-lhe ele. “Ainda por cima a uma sexta-feira 13”, respondia-lhe ela, fingindo que isso a preocupava.

De um momento para o outro, o flirt foi interrompido por uma torrente de ambulâncias em alta velocidade, com as sirenes a abafarem todos os restantes sons daquela noite. Vinte ambulâncias, trinta, talvez mais. Aldona perdeu-lhes a conta.

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Eram 22h00 e, embora Aldona não o soubesse ainda, Paris já tinha sido tomada pelo terror. Primeiro, as bombas nas imediações do Stade de France, depois uma série de esplanadas e restaurantes cheios e por fim o Bataclan, a sala de espetáculos que acolhia um concerto dos norte-americanos Eagles Of Death Metal.

Depois de descobrirem o que realmente se passava — uma amiga que sabia que Aldona estava perto do local dos atentados ligou-lhe em pânico —, começaram a correr à procura de um táxi que os levasse dali para fora. Sem sucesso, conseguiram entrar dentro de um café. Não foram os únicos que ali se refugiaram: eram mais de 40 pessoas, a maior parte jovens, naquele espaço reduzido. Cada um agarrado ao telefone. Enquanto uns asseguravam à família e aos amigos que estavam bem, outros liam freneticamente os jornais online ou as redes sociais. A pouco e pouco, iam sabendo detalhes do maior banho de sangue de França desde a Segunda Guerra Mundial.

"Fizemos um acordo: não íamos ligar a televisão, não íamos ligar o rádio, não íamos mexer no telemóvel… Nada. Já nos restava aquilo que sabíamos na altura. Então falámos de outras coisas. Falámos de arte, da vida, da cidade… Falámos acima de tudo de música."
Aldona Nowowiejska, música polaca residente em Paris

A polícia só os deixou sair do café-refúgio já de madrugada. Fabian, que vive nos subúrbios, não tinha como ir para casa. Aldona, que tem casa no centro de Paris, convidou-o para pernoitar no seu apartamento. O cordão de segurança que foi montando entre o 10º e o 11º arrondissement fê-los dar uma volta desnecessária mas, naquela noite, incontornável. Chegaram a casa de Aldona já às 3h00.

“Assim que entrámos fizemos um acordo: não íamos ligar a televisão, não íamos ligar o rádio, não íamos mexer no telemóvel… Nada. Já nos bastava aquilo que sabíamos na altura. Então falámos de outras coisas. Falámos de arte, da vida, da cidade… Falámos acima de tudo de música. Ele também é músico. Falámos para evitarmos o horror que se passava lá fora. Às 5h00 caímos para o lado com sono.”

Sair à rua ainda é doloroso para Aldona. Na verdade, fê-lo logo no sábado, no dia seguinte aos atentados, por razões profissionais. Tinha sido contratada para cantar na vernissage de uma exposição de fotografia, acompanhada por uma amiga que ia tocar guitarra acústica. “Eu fui, achei que era importante ir, como se fosse uma questão de orgulho. Queria demonstrar que estava feliz por viver. Mas quando chegou a altura de cantar fiquei calada. Não tive coragem de fazê-lo. À segunda palavra que cantasse desataria a chorar.” O concerto acabou por ser só instrumental e Aldona ficou algures entre a bravura e o medo.

Quando uma lâmpada lança o pânico

“Toda a gente está muito frágil”, diz a jornalista do Libération Sibylle Vincendon, que escreve sobre Paris para aquele diário. “Por um lado as pessoas sentem a necessidade de se juntarem. Foi declarado o estado de emergência e mesmo assim as pessoas reúnem-se na [Praça da] République, porque precisam de estar juntas. Mas aquele sentimento de coragem, que existe indubitavelmente, é também ele muito precário.”

Isso viu-se, por exemplo no domingo, naquela mesma praça, onde, ao fim da tarde, estavam cerca de duas centenas de pessoas concentradas numa vigília em homenagem às vítimas dos atentados de sexta-feira. De repente, talvez tão depressa quanto no dia 13, o pânico foi lançado. Vindas do Marais, mesmo ali ao lado, dezenas de pessoas corriam desenfreadamente em fuga. Na République, a maior parte das pessoas seguiu-lhes o exemplo, provocando uma debandada geral. Temia-se o pior.

Mas em vão. “Parece ridículo, mas o que aconteceu foi tão simples quanto isto: explodiu uma lâmpada de um dos postes de iluminação na zona do Marais, as pessoas assustaram-se com o barulho e entraram em pânico”, conta Sibylle, sentada a uma mesa do terraço do Libération, nas traseiras da Praça da République.

Passageiros do Uber, engates do Tinder

Entre os vários títulos da imprensa gaulesa, é a capa do Libération que mais se destaca nos quiosques de Paris. Nela, uma fotografia apanha vários jovens numa vigília pelas vítimas de sexta-feira. Apanha a página toda e, por baixo, deixa-lhes um nome: “Geração Bataclan”, puxando o nome à sala de espetáculos onde morreu a maior parte das 129 vítimas de 13 de novembro. “Jovens, festivos, abertos, cosmopolitas…”, descreve-os a une do Libé.

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“Agora está na moda dizer que eles são hipsters… Mas nós cá em França já temos uma expressão há mais tempo para descrevê-los. São os bobos“, explica Sibylle. Bourgeois-bohème.

“As pessoas que morreram na sexta-feira são as que saem à noite sem preocupações, sem compromissos, estão com os amigos, seja um grupo pequeno ou grande”, explica a jornalista. “O habitat deles são os mesmíssimos cafés que foram atacados na sexta-feira. São cafés que juntam jovens, artistas, porque são relaxados e baratos, mas ainda assim com alguma qualidade. E com uma identidade muito forte.”

“Ao atacarem lugares festivos de Paris e Saint-Denis, os terroristas atacaram o modo de vida hedonista e urbano de uma geração que já tinha sido marcada pelo ‘Charlie'”, escreve o Libération. Jovens “hedonistas” e “urbanos”, habitantes das águas furtadas da capital francesa, colecionadores de artigos vintage, fãs do rock n’ roll irónico dos Eagles Of Death Metal, passageiros do Uber, engates do Tinder. E, também, bailarinos de tango que sabem quando as regras são para ser quebradas.

Pese embora os seus 47 anos (que, já dissemos, podiam ser 27), Aldona é também ela uma bobo. “Bem, talvez só boémia, porque não tenho dinheiro para ser burguesa”, ri-se, para depois acrescentar: “Para mim não faz mal, eu consigo viver a minha vida sem grandes luxos. Aquilo que eu quero é ter um teto onde dormir e pouco mais. Quero passar a minha vida na rua, com os meus amigos, nas esplanadas dos cafés. Quero ter esta vida para sempre”.

"As pessoas que morreram na sexta-feira são as que saem à noite sem preocupações, sem compromissos, estão com os amigos, seja um grupo pequeno ou grande... O habitat deles são os mesmíssimos cafés que foram atacados na sexta-feira. São cafés que juntam jovens, artistas, porque são relaxados e baratos, mas ainda assim com alguma qualidade. E com uma identidade muito forte."
Sibylle Vincendon, jornalista do Libération

Mais do que com um orgulho num estilo de vida hedonista, Aldona fala com um tom de bravura munido com o romantismo que é próprio dos momentos de catarse. “Eu nunca pensei nisto assim, porque as coisas não deviam ser assim, mas se eu tiver de sair à rua e ir para uma esplanada, ou dar um passeio no Saint-Martin, mesmo que isso possa significar a morte… Pois que seja. A vida é para ser vivida.”

Até porque, garante, é uma resposta àqueles que a desprezam. “Estes terroristas, estes fundamentalistas… Eles não têm alegria nenhuma de viver”, diz, recorrendo à muito parisiense expressão joie de vivre. “Não há cafés nas vidas destes terroristas, não há música, ninguém dança. Não têm nada do que eu e os meus amigos temos. Eu olho para as minhas fotografias, para as fotografias das pessoas que vivem o mesmo estilo de vida que eu e não vejo ninguém triste. Estamos todos felizes. E estes tipos do Daesh vêm cá destruir isso? Não têm riqueza nenhuma no coração.”

Mas nem tudo é uma linha reta na cabeça de Aldona. Os atentados da noite de sexta-feira fizeram-na pensar. No sábado, depois do concerto onde a emoção não a deixou cantar, refugiou-se em casa. No dia seguinte, não saiu de lá. Precisava de pensar, sim. E também tinha medo.

"Não há cafés nas vidas destes terroristas, não há música, ninguém dança. Não têm nada do que eu e os meus amigos temos. Eu olho para as minhas fotografias, para as fotografias das pessoas que vivem o mesmo estilo de vida que eu e não vejo ninguém triste. Estamos todos felizes. E estes tipos do Daesh vêm cá destruir isso? Não têm riqueza nenhuma no coração."
Aldona Nowowiejska, música polaca residente em Paris

“Só hoje [segunda-feira] é que andei de metro. Dei por mim a pensar coisas que nunca me tinham passado pela cabeça. Fiquei com medo porque a carruagem estava muito cheia. E sempre que estive num sítio aberto, com mais espaço, estive menos preocupada. Mas estou sempre a olhar para o lado. Eu sei que é estúpido, e nem devia dizer uma coisa destas, mas hoje no metro olhei para um homem que tinha uma barba grande, como alguns muçulmanos usam. E por um momento achei que ele podia fazer alguma coisa. Tirei isso imediatamente da cabeça, porque eu sei bem que isso é estúpido. Mas vai ser difícil esquecer.”

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Aldona Nowowiejska, sentada numa esplanada no bairro parisiense de Belleville, onde vive.

Tal como muitos em Paris, Aldona está, pois, entre a bravura e o medo. Além de segunda-feira ter sido o primeiro dia que voltou ao metro, também foi ao final da tarde desse dia que voltou a sentar-se numa esplanada. Neste caso, o Cafe Aux Follies, no bairro multicultural de Belleville, onde vive. Sentada numa mesa redonda, virada para o passeio e de costas para o café, como é norma nas esplanadas parisienses, Aldona está cercada de jovens que vão conversando entre si. Além do francês, há mesas onde se fala alemão e noutras inglês. Seria um dia normal numa esplanada normal, não fosse um pormenor: o volume das conversas é incrivelmente baixo. A cada mesa, em vez de se falar, sussurra-se.

Aldona ainda não tornou a falar com Fabian, o seu parceiro de tango e companhia na noite mais traumática do pós-guerra parisiense. Ficaram com o contacto um do outro, é certo. Mas há que dar tempo ao tempo. “Aquilo que nós vivemos foi muito forte… Ninguém espera que, numa noite em que se vai beber um copo pela primeira vez com alguém, de repente haja uma série de atentados e estejamos todos em perigo de vida”, diz, no tom de alguém que constata óbvio. “Por isso, não sei… Havemos de falar, sim. Mas ainda não sei quando…”

À semelhança do que acontece nas outras mesas, a polaca fala baixo, com os cabelos lisos a taparem-lhe os lados da cara.

“Mas também há outra coisa…”, diz, agora a sorrir como ainda não o tinha feito.

“É que eu já danço tango há muito tempo. Não é para me gabar, mas danço bem. E a verdade é que ele… bem, ele dança muito mal, pronto!”

Dito isto, Aldona começa a oscilar na cadeira de madeira numa imensa gargalhada. Foi a primeira vez que alguém o fez esta tarde na esplanada do Cafe Aux Follies.

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