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Desde o colapso do BES que vários lesados se têm manifestado pelos valores que perderam
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Desde o colapso do BES que vários lesados se têm manifestado pelos valores que perderam

HOMEM DE GOUVEIA/LUSA

Desde o colapso do BES que vários lesados se têm manifestado pelos valores que perderam

HOMEM DE GOUVEIA/LUSA

GES/BES. A primeira vítima vulnerável na história da criminalidade financeira em Portugal: “Elisa já ganhou”

Elisa, 74 anos, perdeu mais de 130 mil euros no BES. O juiz Ivo Rosa concedeu-lhe o estatuto de vítima especialmente vulnerável. É a primeira vez na história da criminalidade financeira em Portugal.

Os últimos anos de Elisa Sousa foram de perdas. Com o colapso do BES, viu o dinheiro que poupou ao longo da vida perder-se. Foram 130 mil euros que ela e o marido juntaram para uma velhice confortável. Meses depois, com o desgosto, diz ela, perdeu o marido. Há três dias o telefonema do seu advogado devolveu-lhe algum ânimo: foi considerada no processo-crime GES/BES uma vítima especialmente vulnerável. Um estatuto atribuído pela primeira vez na história da criminalidade financeira em Portugal e que lhe permite passar para o topo da lista dos credores a indemnizar, em caso de condenação dos arguidos do processo logo na primeira instância. Pela primeira vez, os danos que um processo de crime económico causam a uma vítima são colocados no mesmo patamar dos danos causados a quem sofreu qualquer outro crime.

“A Elisa já ganhou o processo!”, disse-lhe o advogado Nuno Silva Vieira quando lhe telefonou a dar-lhe conta da decisão mais recente do juiz de instrução Ivo Rosa (a de 19 de maio),  que tem nas mãos o megaprocesso BES e a decisão de fazer ou não avançar o caso para julgamento.

O advogado que representa cerca de 600 contas bancárias do antigo BES, que na prática correspondem a cerca de 1300 titulares (porque cada uma dessas conta tem entre dois a três nomes) já tinha conseguido o estatuto de vítima simples para cerca de 100 lesados. Alguns não quiseram avançar com o pedido, outros morreram antes do desfecho do processo, outros ainda esperam pela mesma decisão. “Sei que há requerimentos nossos ainda guardados em caixotes que vieram das antigas instalações do Tribunal Central de Instrução Criminal”, explicou ao Observador. Para estes, o representante dos lesados espera igual decisão, mas esta “vitória” mais recente é para ele ainda maior e significa um marco histórico para as vítimas dos chamados crimes de colarinho branco.

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Elisa é viúva, não tem filhos e já pensou em vender a casa para ter dinheiro

Elisa, 74 anos, não tem filhos, vive em casa própria e ao fim do mês recebe uma pensão de 282,96 euros. Os 130 mil euros (100 mil+30.060) com que adquiriu vários produtos que a sucursal do BES na Madeira lhe vendeu a ela e ao marido não tiveram retorno. E o dinheiro que ambos amealharam ao longo de uma vida trabalho para somar a uma previsível reforma reduzida desapareceu. O marido de Elisa adoeceu  ainda no ano dessa perda. E nunca mais conseguiu reerguer-se, acabando por morrer. Desde então Elisa vive sozinha, porque o casal não teve filhos, “desgostosa e em stresse” e chegou mesmo a pensar a vender a casa onde vive para ter liquidez. “Com este estatuto ganhou uma nova esperança”, afirma Nuno Silva Vieira — que avançou com um pedido de indemnização civil para que Elisa fosse ressarcida, ao mesmo tempo que pediu ao processo para que ela fosse considerada uma vítima especialmente vulnerável em razão da idade, de problemas de saúde que enfrenta e também dos escassos rendimentos.

Leitura do acórdão do processo de Ricardo Salgado no âmbito da Operação Marquês, no Campus de Justiça. No exterior decorreu um protesto dos lesados do BES/Novo Banco. Lisboa, 07 de Março de 2022 FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Lesados também marcaram presença à porta do tribunal quando Salgado foi julgado no âmbito do processo Marquês

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Um argumento que o juiz Rosa não acolheu de imediato no processo, alegando falta de documentos a comprovarem a situação invocada, mas que agora acabou por aceitar. E se antes, como afirmara ao Público,  a ideia de Nuno Vieira era recorrer ao parlamento para conseguir legislação que regulamentasse o estatuto de vítimas especialmente vulneráveis para crimes económicos, agora esta decisão abre caminho para pedir o mesmo para cerca de outros 200 lesados — “alguns em situações económicas baixas, mas muitos com doenças graves”, explica.

"A novidade é que isto nunca era usado nos crimes financeiros"
Nuno Silva Vieira

A tese defendida pelo advogado e confirmada pelo juiz nunca convenceu, porém, o Ministério Público. Antes deste último despacho assinado por Ivo Rosa, e que confere o estatuto de vítima simples a quatro outros lesados, o Ministério Público argumentou que este estatuto não devia aplicar-se aos lesados do BES por ter como objeto crimes de natureza económico financeira, alegando mesmo que as medidas previstas na lei para a vítima não se enquadram no figurino da criminalidade económico financeira.

epa08281851 Judge Ivo Rosa during the fact-finding debate into the high-profile corruption case known as Operation Marques at the Justice Campus in Lisbon, Portugal, 09 March 2020. Operation Marques has 28 defendants - 19 people and 9 companies - including former Prime Minister Jose Socrates, banker Ricardo Salgado, businessman and friend of Socrates Carlos Santos Silva and senior staff of Portugal Telecom and is related to crimes of corruption, active and passive, money laundering, document forgery and tax fraud.  EPA/ANTONIO COTRIM

O juiz Ivo Rosa é o primeiro magistrado a aplicar o estatuto de vítima a lesados por crimes económicos

ANTONIO COTRIM/EPA

Lei não especifica tipos de crimes para vítimas

Para Ivo Rosa, porém, não existe na letra da lei qualquer especificação do tipo de crime a aplicar para considerar alguém uma vítima. O estatuto da vítima define que qualquer pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física e psíquica, um dano emocional ou moral ou um dano patrimonial, diretamente causado por ação ou omissão na sequência prática de um crime deve ser considerado uma vítima. A mesma lei prevê que seja considerada “vítima especialmente vulnerável” aquela cuja fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência. Mais: as vítimas de criminalidade violenta e especialmente violenta são sempre consideradas vulneráveis.

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O magistrado que irá decidir o futuro dos arguidos, entre eles o ex-líder do BES, Ricardo Salgado, lembra que em causa neste processo estão também crimes de associação criminosa e de corrupção, crimes estes que integram a criminalidade altamente organizada. Ivo Rosa lembra que a vítima tem direitos de informação, de assistência, de proteção e de participação ativa no processo penal, previstos no Código Penal e no Estatuto da Vítima. E que o próprio legislador não faz qualquer distinção quanto ao tipo de crime ou quanto ao tipo de criminalidade que causou esse dano ou esse prejuízo material. Também o Código do Processo Penal e a diretiva europeia transposta em 2015 não fazem essa distinção. “Não é possível concluir, como defende o MP, que o estatuto de vítima está excluído do âmbito da criminalidade económico financeira ou que as pessoas que sofreram um dano patrimonial causado, por ação ou omissão, por crime contra o património, não possam ser consideradas. Ir de acordo com o MP era permitir uma ideia que não tem correspondência na letra da lei”, lê-se no despacho que o Observador consultou.

José Maria Ricciardi é uma das principais testemunhas do caso e será ouvido esta quarta-feira

Gerardo Santos/Global Imagens

“A novidade é que isto nunca era usado nos crimes financeiros”, explica o advogado. Este estatuto só pode ser para pessoas singulares e até aqui eram apenas consideradas vítimas ou vítimas vulneráveis pessoas que sofressem na pele crimes de violência doméstica, maus tratos “ou tudo o que tivesse a ver com crimes entre pessoas”.

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Vítima vulnerável fica no topo de lista dos credores

“O estatuto de vítima já é completamente novo. Permite ter acesso a custas judiciais inexistentes ou mais baratas, acesso a toda a informação processual, mesmo dos processos que não lhe digam respeito diretamente (como por exemplo o arresto do Espírito Santo)”, diz Nuno Silva Vieira. No entanto, “a vítima vulnerável tem uma faculdades estonteante”. “A partir do momento em que é notificada de uma decisão de condenação em primeira instância tem que ser obrigatoriamente indemnizada, ainda antes de qualquer credor. E pode mesmo pedir uma pensão mensal, independentemente dos recursos dos arguidos”. Os arguidos poderão recorrer do caso, o processo poderá arrastar-se ao longo de anos nos tribunais superiores, mas para estas vítimas os valores de indemnização estão garantidos mal o juiz de primeira instância profira uma decisão condenatória.

Além de Elisa, Augusto de Magalhães Pinheiro e Maria Manuel Pinheiro, Silvestre Oliveira Santos e Maria Irene das Neves Oliveira Santos foram os quatro últimos lesados do BES a conseguiram ser considerados vítimas (embora não especialmente vulneráveis).

Ricardo Salgado, ex-líder do BES, é o principal arguido no caso

PAULO CUNHA/LUSA

Há centenas de lesados do BES que se têm manifestado em Portugal e em vários países. Alguns costumam mesmo manifestar-se junto ao tribunal a cada vez que há uma sessão.

Cerca de 40 crimes do megaprocesso BES/GES em risco de prescrever. Ricardo Salgado pode ver cair 15 dos 65 crimes de que está acusado

Sessões marcadas até outubro

O megaprocesso GES/BES esteve seis anos em investigação e culminou numa acusação contra 25 arguidos — aos quais o juiz Ivo Rosa juntou mais cinco. A defesa teve 14 meses para requerer a fase de instrução, que agora arrancou em finais de abril, depois de Ivo Rosa ter estado ausente por razões de saúde.

"Ir de acordo com o MP era permitir uma ideia que não tem correspondência na letra da lei"
Ivo Rosa

Esta semana estão sessões agendadas quase todos os dias, com José Maria Ricciardi a prestar testemunho na quarta-feira e os novos arguidos do caso, a pedido do assistente, a serem confrontados na sexta-feira (podendo ou não prestar depoimento). Há sessões marcadas até outubro, embora o processo pare nas férias judiciais (ao contrário do que o Ministério Público e o BES insolvente pediram quando quiseram que o processo fosse considerado urgente).

Nesta fase do processo o juiz Ivo Rosa vai avaliar se o caso, a chegar a julgamento, poderá vir a resultar em condenações. Em caso afirmativo, o juiz pronunciará os arguidos que entender. Em causa estão vários crimes de associação criminosa, corrupção ativa, burla qualificada, infidelidade, manipulação de mercado, branqueamento de capitais e falsificação.

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