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Pope Jon Paul II Assisted By Aides After Shooting
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O Papa João Paulo II foi alvo de um atentado à sua vida no dia 13 de maio de 1981

Bettmann Archive

O Papa João Paulo II foi alvo de um atentado à sua vida no dia 13 de maio de 1981

Bettmann Archive

Golpe soviético ou profecia de Fátima? Atentado contra João Paulo II foi há 40 anos

Em 13 de maio de 1981, Ali Agca disparou quatro tiros sobre João Paulo II. Durante 40 anos, contou versões contraditórias da história que a Igreja vê como a concretização de uma profecia de Fátima.

Por volta das cinco da tarde do dia 13 de maio de 1981, a praça de São Pedro, no Vaticano, estava cheia. Era quarta-feira — e, por isso, milhares de fiéis católicos esperavam o Papa João Paulo II para a audiência semanal perante a multidão reunida em Roma. O polaco havia sido eleito três anos antes e, com apenas 58 anos, tornara-se no pontífice mais jovem a subir ao trono de São Pedro em mais de um século; pelo estilo e pela proximidade aos fiéis, Karol Wojtyla agradava aos católicos.

À hora marcada, João Paulo II surgiu na praça de São Pedro. Empoleirado nas traseiras de um jipe Fiat branco convertido em “papamóvel”, o Papa acenava à multidão à medida que percorria os corredores da praça. Não seguia dentro de uma redoma de vidro, como mais tarde nos habituaríamos a vê-lo, mas numa viatura completamente descapotável, apoiado nas barras que ladeavam a zona traseira do jipe, onde seguia em pé. Às 17h17, os gritos da multidão em êxtase foram calados pelo som de quatro tiros. João Paulo II caiu, amparado apenas pelo seu secretário pessoal, o padre polaco Stanislaw Dziwisz, hoje cardeal. O Fiat branco acelerou por entre a multidão, com a guarda suíça a abrir caminho para a passagem do papamóvel enquanto o Papa perdia sangue. Ao mesmo tempo, no meio dos fiéis, o guarda-costas Camillo Cibin, comandante da polícia do Vaticano, precipitava-se para deter o autor dos tiros — que seria mais tarde identificado como Mehmet Ali Agca, um mercenário turco, e que tinha sido agarrado pela multidão imediatamente após disparar sobre o Papa.

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Segundos antes dos disparos, uma multidão eufórica saudava o Papa João Paulo II na praça de São Pedro

POOL/AFP via Getty Images

Enquanto João Paulo II era transportado de urgência para a Policlínica Gemelli, o universo católico, em choque, temia o pior. Em 1978, o Papa João Paulo I morrera ao fim de apenas 33 dias no cargo — e a morte, ocorrida durante a noite em circunstâncias misteriosas, dera origem a inúmeras teorias da conspiração (das profecias de Nostradamus à intervenção da loja maçónica ilegal P2 com o objetivo de impedir a divulgação de alegadas irregularidades nas finanças do Vaticano). Menos de três anos depois da morte de João Paulo I, um segundo atentado à vida de um papa seria demasiado difícil de suportar para os fiéis.

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Contudo, o atentado não foi bem sucedido. As balas que atingiram João Paulo II fizeram-no perder muito sangue, mas ao fim de duas semanas no hospital os médicos declararam que o Papa já não corria perigo de vida. Ainda internado, João Paulo II declarou que tinha perdoado o autor dos disparos. Numa mensagem gravada pelos microfones da Rádio Vaticano e depois transmitida nos altifalantes da praça de São Pedro, onde o Papa não pôde ainda comparecer nos dias seguintes ao atentado, João Paulo II afirmou: “Peço pelo irmão que me feriu, a quem perdoei sinceramente”.

Expectavelmente, a cúpula da Igreja Católica não tardou a procurar significados mais profundos no atentado à vida de João Paulo II. A data do atentado — 13 de maio — dava que pensar. Dois meses depois do ataque, o Papa polaco, já recuperado, pediu à Congregação para a Doutrina da Fé (o organismo da Igreja que sucedeu à Inquisição) que lhe trouxesse um dos documentos mais bem escondidos do arquivo do Santo Ofício. O documento chegou-lhe em julho de 1981, em dois envelopes: num primeiro, branco, um texto escrito em 1944 pela irmã Lúcia de Jesus, religiosa portuguesa que fora uma das videntes de Fátima em 1917; no outro, de cor laranja, a tradução do texto da irmã Lúcia para italiano. A terceira parte do “segredo de Fátima”, revelação profética atribuída à própria Virgem Maria, continuava oculta nos arquivos do Vaticano. Poderia o atentado contra João Paulo II ser a concretização da profecia de Fátima? E quem estaria por trás do crime? As teorias viriam a multiplicar-se — sem que, até hoje, tenha sido possível apurar exatamente o que aconteceu naquele dia.

A profecia de Fátima

É preciso recuar um século e situar Fátima no tempo. Em maio de 1917, três crianças pastoras da minúscula aldeia de Fátima, no concelho de Ourém, disseram ter avistado e interagido com a Virgem Maria enquanto acompanhavam o rebanho nos pastos, num lugar deserto chamado Cova da Iria. A visão da figura bíblica da mãe de Jesus pediu às crianças que rezassem o terço e mandou-as regressar àquele lugar durante seis meses, no dia 13 de cada mês, e prometeu-lhes que lhes revelaria um conjunto de profecias — e que, se acreditassem e rezassem pela conversão dos pecadores, a guerra terminaria e os inimigos da Igreja seriam derrotados.

Os relatos das aparições foram recebidos com enorme desconfiança na aldeia de Fátima, mas atraíram de imediato fiéis de todo o país em busca de curas e remédios operados pelos videntes que diziam ter visto Nossa Senhora. As autoridades civis republicanas lutaram duramente para conter o fenómeno, chegando mesmo a deter as três crianças no dia 13 de agosto de 1917, para impedir que se deslocassem à Cova da Iria e promovessem um ajuntamento religioso.

O contexto histórico é fundamental para entender o momento de Fátima. Em Portugal, a monarquia católica tinha caído apenas sete anos antes e a recém-implantada república era fundamentalmente anti-clerical — pelo que um fenómeno de piedade popular como o que ameaçava formar-se em torno de Fátima era inadmissível para as autoridades laicas. A nível global, a Primeira Guerra Mundial, mesmo não tendo incluído conflitos armados em território português, ceifava a vida a centenas de soldados portugueses enviados para a guerra em nome da afirmação e do prestígio da república. As famílias, tradicionalmente católicas, ansiavam pelo regresso dos filhos e maridos — e voltavam-se habitualmente para a fé. Aliás, os próprios pastorinhos de Fátima tiveram irmãos soldados enviados para a guerra, pelo que conheciam bem o drama pessoal de quem buscava na fé católica o consolo e a esperança no fim da guerra e no regresso dos familiares. Em simultâneo, naquele ano de 1917, a Rússia mergulhava no período da revolução que viria a culminar com a instauração do regime socialista soviético.

Só assim é possível compreender o célebre “segredo de Fátima”, o nome dado à revelação profética que a Igreja Católica acredita que aconteceu na Cova da Iria naqueles meses de 1917. Segundo os relatos da irmã Lúcia, a única dos três videntes que sobreviveu para contar o que aconteceu, e que foram validados pelo próprio Vaticano, a aparição de Maria teve como objetivo central a revelação de uma mensagem com três partes. A primeira foi uma visão do inferno: Maria terá mostrado aos três pastorinhos uma imagem tenebrosa do inferno, onde os pecadores ardiam eternamente entre chamas e demónios. A segunda foi o remédio para evitar que os pecadores acabassem no inferno: o mundo deveria tornar-se devoto do Imaculado Coração de Maria para que a guerra acabasse. Todavia, se as ofensas a Deus continuassem, eclodiria uma nova guerra, que deveria ser impedida com a consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria. Os detalhes descritos pela irmã Lúcia nas memórias que publicou na década de 1940 sempre foram controversos, uma vez que incluíam profecias que podiam ser consideradas post-eventum — ou seja, descritas já depois de o profetizado se ter confirmado. A Igreja Católica, por seu turno, tem confirmado a veracidade das profecias, embora alerte para o seu carácter simbólico.

O "bispo vestido de branco", ao chegar ao topo da montanha, "prostrado de joelhos aos pés da grande cruz, foi morto por um grupo de soldados que lhe dispararam vários tiros e setas, e assim mesmo foram morrendo uns atrás dos outros os bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas".
Carta da Irmã Lúcia

A terceira parte do segredo de Fátima manter-se-ia oculta durante várias décadas. O primeiro registo escrito dessa terceira parte consta de uma carta redigida em 1944 pela irmã Lúcia, numa altura em que residia num convento em Tuy, na Galiza (aqui, na página 213). A pedido do bispo de Leiria, a freira deixou por escrito o que ela e os primos Francisco e Jacinta tinham visto na aparição de 13 de julho de 1917. “Um anjo com uma espada de fogo na mão esquerda” apontava para a Terra e exibia uma “luz imensa que é Deus”, através da qual se veria um cenário sugestivo: um “bispo vestido de branco”, que os pastorinhos consideraram ser o Papa, subia uma “escabrosa montanha” acompanhado por “vários outros bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas”. No topo da montanha estava “uma grande cruz” e o tal bispo de branco, antes de chegar à montanha, atravessara “uma grande cidade meia em ruínas”, caminhando “com andar vacilante”, para orar “pelas almas dos cadáveres que encontrava pelo caminho”. Ao chegar ao topo da montanha, “prostrado de joelhos aos pés da grande cruz, foi morto por um grupo de soldados que lhe dispararam vários tiros e setas, e assim mesmo foram morrendo uns atrás dos outros os bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas”.

As três partes do segredo parecem intimamente ligadas ao contexto histórico do século XX global, com a ascensão do comunismo anti-clerical e as dificuldades enfrentadas pela Igreja Católica na Europa, mas também ao contexto particular das próprias crianças, que viam os familiares partir para a guerra e rezavam pelo seu regresso.

A carta da irmã Lúcia, escrita em janeiro de 1944, foi inicialmente guardada a sete chaves nos arquivos da diocese de Leiria. Porém, em abril de 1957, o envelope foi enviado para Roma, de modo a ser guardado no Arquivo Secreto do Santo Ofício. A partir desse momento, vários papas terão lido a carta com o segredo de Fátima, mas escolheram não o revelar. Em agosto de 1959, o Papa João XXIII leu o documento da irmã Lúcia e hesitou sobre o que lhe fazer — mas acabou por optar por enviá-lo de novo para o arquivo. O mesmo fez o sucessor, Paulo VI, em março de 1965.

Depois do atentado, em 1981, João Paulo II leu os documentos e não teve dificuldade em ver em si próprio o “bispo vestido de branco” de que falava a profecia. Mais tarde, o Papa polaco viria a considerar que fora “uma mãe materna que guiou a trajetória da bala” de modo a poupá-lo à morte. Exatamente um ano depois do atentado, em maio de 1982, João Paulo II deslocou-se a Portugal para agradecer a Nossa Senhora de Fátima por tê-lo salvado no atentado. Nessa visita, foi alvo de uma tentativa falhada de esfaqueamento, por parte do padre ultraconservador espanhol Juan Fernández Krohn, posteriormente condenado a seis anos de cadeia por um tribunal de Ourém. Mais tarde, João Paulo II ofereceu ao bispo de Leiria uma das balas que o haviam atingido no atentado, que tinha ficado dentro do papamóvel. O bispo decidiu que a bala seria colocada na coroa da imagem principal de Nossa Senhora de Fátima, venerada pelos milhões de peregrinos que hoje visitam o santuário.

A história e o mistério do maior tesouro de Fátima

A oferta pareceu evidenciar mais uma relação entre o atentado e as profecias de Fátima e expôs um dos maiores mistérios em torno daquela estátua, que é o tesouro mais valioso do santuário.

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A partir do hospital, o Papa João Paulo II garantiu que tinha perdoado ao autor do disparos

AFP via Getty Images

“Quando o próprio Papa João Paulo II pede que a escultura da Virgem de Fátima vá ao Vaticano, ele oferece, deposita nas mãos do bispo de Leiria, um dos projéteis que o atingiu naquele atentado. O Papa João Paulo II, com este gesto, diz claramente que consegue salvar-se daquele atentado graças a uma mão materna que desviou a trajetória da bala. Este olhar da fé, que o Papa João Paulo II tem de uma forma muito segura, é entendido por toda a cristandade, por todos os católicos do mundo, como uma ligação estreita, umbilical, entre a mensagem de Fátima e o próprio Vaticano”, explicou em 2017 ao Observador o diretor do Serviço de Estudos e Difusão do Santuário de Fátima, Marco Daniel Duarte, responsável pelas obras de arte que existem no templo.

A surpresa dos responsáveis do Santuário de Fátima chegou quando a estátua foi enviada para os técnicos de modo a ser adaptada para acolher a nova pedra preciosa, não foi preciso intervir no objeto: por baixo do globo de turquesas que encabeçava a coroa, existia um orifício entre as oito hastes com o exato diâmetro da bala — bastou colocá-la ali. “Obviamente, mais uma vez, os olhos da fé entendem que não há coincidências e que aquele orifício já estava ali quase preparado para receber aquela joia tão preciosa, que é a bala. Que fala de guerra, mas ao mesmo tempo é colocada ali a ter um discurso de paz”, disse na altura o historiador de Fátima.

Quando visitou Fátima, em 1982, o Papa João Paulo II decidiu seguir o tal pedido feito aos três pastorinhos em 1917 e consagrou a Rússia e o mundo ao Imaculado Coração de Maria. Dois anos depois, em 1984, a partir da praça de São Pedro, o Papa polaco repetiu o gesto, seguindo ao pormenor o pedido da aparição da Virgem Maria: consagrando especificamente a Rússia, em comunhão com os bispos de todo o mundo. Hoje, a Igreja Católica não hesita em atribuir a esta decisão de João Paulo II alguma influência pelos acontecimentos históricos que se seguiram: a eleição de Mikhail Gorbatchov, último líder soviético, em 1985; a queda do Muro de Berlim, em 1989 (aliás, o Santuário de Fátima preserva ainda hoje um fragmento do muro no recinto de oração); e, por fim, a dissolução da União Soviética, em 1991.

Apesar das palavras e dos gestos de João Paulo II na sequência do atentado, o verdadeiro conteúdo da terceira parte do segredo de Fátima ficaria oculto nos arquivos do Vaticano até 2000. Nesse ano, o Papa polaco mandou responsáveis do Vaticano conversar com a irmã Lúcia em Coimbra, onde a freira viveu a reta final da sua vida, sobre o conteúdo e a interpretação do segredo. Nessa conversa entre Lúcia, o secretário da Congregação para a Doutrina da Fé, Tarcisio Bertone, e o bispo de Leiria-Fátima, Serafim Ferreira e Silva, ficou claro que a interpretação oficial da Igreja Católica era a de que a profecia se cumprira com o atentado a João Paulo II.

A Irmã Lúcia concorda com a interpretação segundo a qual a terceira parte do ‘segredo’ consiste numa visão profética, comparável às da história sagrada. Ela reafirma a sua convicção de que a visão de Fátima se refere sobretudo à luta do comunismo ateu contra a Igreja e os cristãos, e descreve o imane sofrimento das vítimas da fé no século XX”, lê-se no relato oficial desse encontro. “Quanto à passagem relativa ao Bispo vestido de branco, isto é, ao Santo Padre – como logo perceberam os pastorinhos durante a ‘visão’ – que é ferido de morte e cai por terra, a irmã Lúcia concorda plenamente com a afirmação do Papa: ‘Foi uma mão materna que guiou a trajetória da bala e o Santo Padre agonizante deteve-se no limiar da morte’.”

Um mês depois desse encontro, a 13 de maio de 2000, o Papa João Paulo II regressou a Fátima para beatificar os pastorinhos Francisco e Jacinta. No final da missa solene no recinto do santuário, o cardeal italiano Angelo Sodano, secretário de Estado do Vaticano, surpreendeu o mundo católico ao ler, a partir do púlpito, pela primeira vez o conteúdo do terceiro segredo. Na comunicação, Sodano explicou que foi João Paulo II que o incumbiu de comunicar aos fiéis a notícia do segredo e evidenciou a relação entre o texto e o atentado contra o Papa. “Tal texto constitui uma visão profética comparável às da Sagrada Escritura, que não descrevem de forma fotográfica os detalhes dos acontecimentos futuros, mas sintetizam e condensam sobre a mesma linha de fundo factos que se prolongam no tempo numa sucessão e duração não especificadas. Em consequência, a chave de leitura do texto só pode ser de carácter simbólico”, esclareceu Sodano. “Segundo a interpretação dos pastorinhos, interpretação confirmada ainda recentemente pela Irmã Lúcia, o ‘Bispo vestido de branco’ que reza por todos os fiéis é o Papa. Também Ele, caminhando penosamente para a Cruz por entre os cadáveres dos martirizados (bispos, sacerdotes, religiosos, religiosas e várias pessoas seculares), cai por terra como morto sob os tiros de uma arma de fogo. Depois do atentado de 13 de maio de 1981, pareceu claramente a Sua Santidade que foi ‘uma mão materna a guiar a trajetória da bala’, permitindo que o ‘Papa agonizante’ se detivesse ‘no limiar da morte’.”

“Depois, os acontecimentos de 1989 levaram, quer na União Soviética quer em numerosos Países do Leste, à queda do regime comunista que propugnava o ateísmo. O Sumo Pontífice agradece do fundo do coração à Virgem Santíssima também por isso”, rematou o cardeal. A divulgação do conteúdo do segredo de Fátima foi acompanhada de um extenso comentário teológico assinado pelo então cardeal Joseph Ratzinger, que posteriormente viria a ser eleito como Papa Bento XVI, e que firmou definitivamente o entendimento teológico oficial da Igreja Católica sobre o que aconteceu em Fátima em 1917 — e sobre o que as profecias portuguesas representaram para o século XX europeu.

A explicação teológica e histórica ajuda a enquadrar o atentado contra a vida de João Paulo II no contexto eclesiástico — e a perceber como aquele acontecimento se relaciona intimamente, pelo menos no campo dos símbolos, com a natureza do maior templo católico de Portugal. Contudo, deixa uma pergunta fundamental por responder. Afinal, como se passou da profecia à prática? Quem era Mehmet Ali Agca e porque tentou matar o Papa naquele dia 13 de maio de 1981?

KGB, cúmplices internos ou Irão? As muitas teorias

Em 1981, Mehmet Ali Agca tinha 23 anos de idade e já era um conhecido criminoso, ligado aos ultra-nacionalistas da Juventude Idealista — o grupo de extrema-direita turco conhecido como “Lobos Cinzentos”. Dois anos antes do crime no Vaticano, em 1979, confessara ter assassinado o jornalista e ativista turco Abdi Ipekci, conhecido pela defesa dos direitos humanos, juntamente com outro elemento dos Lobos Cinzentos. Foi encarcerado numa prisão de alta segurança, mas conseguiu fugir pouco tempo depois, usando uma farda militar.

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Ali Agca foi libertado em 2010 e continuou a propagar teorias contraditórias sobre os motivos do atentado

AFP via Getty Images

O plano para tentar assassinar João Paulo II começaria ainda em 1979, quando o Papa polaco visitou a Turquia para se encontrar com o patriarca ortodoxo de Constantinopla, líder espiritual da Igreja Ortodoxa, separada de Roma desde o cisma de 1054. Nos dias anteriores à viagem, já havia rumores de ameaças contra João Paulo II, o que levara o governo turco a adotar medidas de excecionais de segurança. Havia, inclusivamente, ameaças de morte contra o Papa polaco atribuídas diretamente a Ali Agca.

Os arquivos do The New York Times ainda conservam um artigo notável que hoje é precioso para compreender o complexo e confuso contexto do atentado contra João Paulo II. “Uma causa de preocupação foi uma ameaça de morte contra o Papa feita pelo homicida confesso de um editor de Istambul, que escapou de uma prisão militar no domingo”, escreveu o jornal em 28 de novembro de 1979, dois dias antes do arranque da visita de João Paulo II. “Numa carta enviada ao diário Milliyet, o jornal cujo editor foi assassinado em fevereiro, o fugitivo, Ali Agca, chamou ao Papa ‘o líder mascarado das cruzadas’ e avisou que se a visita não fosse cancelada iria matar o líder católico como ‘vingança’ pelo recente ataque à Grande Mesquita na cidade sagrada de Meca, ataque que ele alega ter sido de origem americana ou israelita.”

Apesar das ameaças, a visita de João Paulo II decorreu com tranquilidade, mas Ali Agca já estava em marcha para Roma. Após uma complexa viagem para Itália com passagem pela Bulgária, o fugitivo chegou à capital italiana poucos dias antes de levar a cabo o ataque contra o Papa polaco. A partir daqui, e embora os factos principais sejam conhecidos, começa uma complexa teia de histórias, teorias, planos e motivos para o ataque que até hoje são difíceis de destrinçar — uma vez que o próprio Ali Agca prestou múltiplos depoimentos diferentes ao longo dos anos. Um golpe do KGB em resposta ao apoio de João Paulo II à Polónia, uma conspiração interna do Vaticano a propósito dos escândalos domésticos da Igreja ou um trabalho a mando do aiatolá iraniano? As teorias multiplicam-se.

O plano inicial, de acordo com os primeiros depoimentos de Ali Agca quando foi preso pela polícia italiana, incluía outros cúmplices e baseava-se no apoio da embaixada da Bulgária em Roma. Agca e um outro atirador tinham a missão de disparar sobre o Papa, enquanto um terceiro faria explodir uma pequena bomba, gerando pânico na praça de São Pedro e permitindo-lhes fugir para a embaixada da Bulgária. Esta mediação do plano por parte das autoridades búlgaras foi uma das primeiras teses em cima da mesa, embora seja difícil de comprovar, uma vez que existem pouco mais do que provas circunstanciais (nomeadamente o facto de Ali Agca ter passado por Sófia antes de ir para Roma e de ter, em diversos momentos da investigação, feito declarações contraditórias sobre alegados contactos com agentes búlgaros em Roma).

De acordo com a primeira teoria, os serviços secretos soviéticos, o KGB, teriam estado por trás da intenção de assassinar João Paulo II. A tensão entre os serviços de informação da União Soviética e o Papa polaco era conhecida. Diz a história que no dia da eleição de Karol Wojtyla como pontífice, em outubro de 1978, o líder do KGB, Yuri Andropov, telefonou ao responsável do serviço em Varsóvia furioso para lhe perguntar: “Como permitiu que um cidadão de um país socialista fosse eleito Papa?” Mais tarde, o anúncio de que João Paulo II iria como peregrino visitar a Polónia fez tremer o Partido Comunista do país, que enviou uma nota oficial a todas as escolas polacas: “O Papa é o nosso inimigo. Devido às suas capacidades invulgares e ao seu grande sentido de humor, é perigoso, porque seduz toda a gente, especialmente os jornalistas. (…) É inspirado nas campanhas presidenciais americanas”.

Temendo que a influência carismática do novo Papa polaco pusesse em causa o poder da União Soviética na Polónia — socialista e parte do Pacto de Varsóvia, mas maioritariamente católica —, o KGB teria determinado o assassinato de João Paulo II, incumbência que seria delegada nos serviços secretos da Bulgária. Apesar de inicialmente ter testemunhado no sentido de corroborar esta teoria, Ali Agca viria mais tarde a negá-la. A União Soviética e a Bulgária também negaram qualquer envolvimento na tentativa de assassinato, pela qual Ali Agca foi condenado em julho de 1981 a uma pena de prisão perpétua.

Em 2000, após quase duas décadas na prisão, Ali Agca foi perdoado pelo Presidente italiano a pedido do Papa João Paulo II. Nos anos anteriores, o Papa polaco havia perdoado o turco e até o visitara na prisão para uma conversa entre “irmãos”. Libertado da prisão italiana, Agca foi extraditado para a Turquia, onde ainda pendia sobre ele a pena de 1979 pelo homicídio do jornalista — e voltou à cadeia. Durante todos estes anos, voltaram a surgir algumas variações da tese soviética/búlgara, nomeadamente quando o parlamento italiano decidiu, em 2002, investigar a interferência russa na política de Roma. Essa investigação ressuscitou a tese de que a União Soviética pretendera eliminar João Paulo II devido ao apoio do Papa aos movimentos sociais polacos e usara métodos militares para, através da Bulgária, pôr o plano em marcha.

Pope John Paul II Talks with Jailed Terrorist

O Papa João Paulo II visitou Ali Agca na prisão

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A tese soviética não duraria muito tempo até que uma nova versão saísse da boca do próprio Ali Agca. Em 2005, o jornal italiano La Repubblica entrevistou Agca numa prisão turca e abriu a entrevista com a pergunta vital de todo o processo: “O senhor disparou sobre o Papa. Quer dizer, de uma vez por todas, quem o mandou?” A resposta adensou o mistério. “Porque disparei sobre o Papa? O meu ataque foi decidido pelo Deus Santíssimo. No encontro que tivemos em 1983, João Paulo II revelou-me que o ataque tinha sido um sinal de Deus”. Mais à frente na mesma entrevista, Ali Agca admitiu que amava e respeitava o Papa e fez outra revelação: “Realmente, o diabo está dentro do Vaticano. Sem a ajuda de padres e cardeais, não conseguiria fazê-lo. Mas basta. Vou escrever tudo no meu livro”. Depois, o turco aumentou ainda mais a confusão em torno dos reais motivos da tentativa de homicídio e sugeriu que havia no Vaticano quem tentasse esconder documentos relacionados com o caso Emanuela Orlandi — um conhecido antigo mistério romano em torno do desaparecimento, em 1983, de uma jovem de 15 anos, filha de um funcionário do banco do Vaticano, e que envolve obscuras ligações entre poderes misteriosos da Santa Sé e a máfia italiana.

Padres e mafiosos: Emanuela Orlandi desapareceu há 35 anos e ninguém sabe o que lhe aconteceu

Na entrevista, não ficou exatamente claro o que Ali Agca pretendia dizer com aquela referência ao caso de Emanuela Orlandi, que aconteceu dois anos depois da tentativa de assassinato. Ainda durante a década de 1980, quando a polícia italiana investigou os alegados cúmplices búlgaros de Ali Agca, tinha surgido a teoria de que os búlgaros haviam raptado Emanuela Orlandi com o único objetivo de a trocar pela libertação do turco. Aliás, o facto de Ali Agca ter acreditado nessa história levou-o inclusivamente a alterar um depoimento em tribunal de modo a ser menos duro com os búlgaros. Antes, Agca dissera acreditar que o rapto havia sido orquestrado pela P2. A relação entre a tentativa de homicídio de João Paulo II e o desaparecimento de Emanuela Orlandi permanece ainda hoje um mistério — embora seja um facto que na altura do desaparecimento a família de Orlandi tenha recebido telefonemas anónimos a prometer o regresso da menor caso Agca fosse libertado. A investigação foi incapaz de provar a veracidade dos telefonemas.

"Porque disparei sobre o Papa? O meu ataque foi decidido pelo Deus Santíssimo. No encontro que tivemos em 1983, João Paulo II revelou-me que o ataque tinha sido um sinal de Deus."
Ali Agca, em entrevista ao La Repubblica

Perante o desespero do jornalista italiano — que chega a dizer-lhe: “Agca, tem noção de que está a aumentar a confusão e de que contribuiu para enredar este mistério através de várias versões dúbias, nunca definitivas e credíveis?” —, o turco assume: “É claro que contribuí para o aumento da confusão com as minhas várias versões, contraditórias tanto jurídica quanto politicamente”. Em 2019, Ali Agca viria a aumentar ainda mais a confusão, escrevendo uma carta aberta à imprensa italiana assegurando que Emanuela Orlandi está viva e acusando a CIA de esconder a verdade sobre o caso.

Confuso? A história ainda tem mais versões

João Paulo II viria a adoecer e a morrer em 2005 — Ali Agca, entretanto amigo do Papa, chegou a enviar-lhe uma carta a desejar as melhoras — sem que o mistério da tentativa de homicídio ficasse verdadeiramente resolvido. O turco, por seu turno, continuou a divulgar teorias contraditórias sobre os motivos por trás do crime.

Em 2010, após quase três décadas na cadeia, Agca foi finalmente libertado na Turquia. Depois de ter estudado aprofundadamente a história de Fátima e a sua relação com o crime que tentou cometer em 1981, o turco tentou obter nacionalidade portuguesa para passar a viver em Portugal, mas o Governo apressou-se a dizer que o pedido de Agca era inviável. Trinta anos depois de tentar matar o Papa por considerá-lo um líder das “cruzadas”, Agca converteu-se ao Cristianismo, foi batizado e até colocou flores no túmulo de João Paulo II. A mais recente versão sobre o atentado de 1981 ficou reservada para o livro que publicou em 2013, com o título Prometeram-me o Paraíso. A minha vida e a verdade sobre o atentado contra o Papa. Numa volta de 180 graus, Ali Agca acusou o aiatolá Khomeini, o líder da revolução iraniana de 1979, a instigar o ataque contra João Paulo II. No livro, Ali Agca admitiu que foi “doutrinado” durante várias semanas em Teerão e teve uma reunião privada com o próprio Khomeini. “Tens de matar o Papa em nome de Alá. Tens de matar o porta-voz do diabo na terra”, ter-lhe-á dito o líder iraniano nesse encontro. O turco assumiu ainda ter vivido “durante anos no erro do ‘fascismo-nazi’ islâmico” e hoje diz que “Jesus Cristo é a melhor pessoa que andou na terra”. A versão inicial que envolvia os serviços secretos russos e a diplomacia búlgara foi completamente desacreditada.

Quarenta anos depois do atentado contra João Paulo II, a verdade parece impossível de apurar. O Papa polaco morreu sem revelar o conteúdo da conversa que manteve com Ali Agca na cadeia; o turco, que chegou a ser diagnosticado com uma doença mental, difundiu versões tão díspares que já deixou de ser possível perceber se alguma é real ou se tudo não passou de um ato de loucura de um jovem criminoso fugido da cadeia e inspirado por ideais radicais. Independentemente dos reais motivos, o que é inegável é que a tentativa de assassinato de João Paulo II definiu a Igreja Católica contemporânea, transportando para o presente uma ancestral experiência mística que está na raiz da própria experiência religiosa — reconhecer, definir e interpretar aquilo a que as religiões chamam profecias —, ao mesmo tempo que contribuiu decisivamente para colocar o fenómeno de Fátima no centro da realidade católica moderna.

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