João Dias e Elsa Castro, respetivamente, presidente e vogal da Agência para a Modernização Administrativa (AMA) até ao mês passado, e ambos com ligação a governos do PS, foram afastados dos cargos pelo atual Governo, que alegou no despacho de dissolução a necessidade de imprimir uma nova orientação àquela entidade. Esse argumento, junto com o facto de estarem nos respetivos cargos há mais de um ano, dão-lhes direito a uma indemnização. A interpretação foi confirmada pelo Ministério da Juventude e Modernização, liderado por Margarida Balseiro Lopes, que indica que o valor a pagar está ainda a ser apurado.

“Nos termos do quadro legal vigente o fundamento para a dissolução do conselho diretivo da AMA dá origem a uma indemnização, estando em curso os trabalhos de apuramento do valor, nos termos exigidos por lei”, indica o Ministério da Juventude e Modernização, em resposta a questões colocadas pelo Observador.

Os dois dirigentes tinham sido nomeados pelo anterior governo primeiro em regime de substituição, em setembro de 2022, mas o concurso da Cresap viria a confirmá-los nas respetivas shortlists (lista com os três melhores candidatos). A comissão de serviço, de duração de cinco anos, que duraria até 2028, inicou-se a 25 de janeiro de 2023. Ou seja, quando o novo Governo dissolveu o conselho diretivo, a 15 de maio, já estavam há mais de um ano nos respetivos cargos.

Este prazo é relevante porque à luz da lei quadro dos institutos públicos é um dos fatores que determina se há ou não lugar a indemnização. O outro fator é o motivo do afastamento: como o despacho de dissolução se fundamenta na necessidade de “imprimir nova orientação à gestão”, haverá lugar a indemnização, que tem o limite de um ano de salários.

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Governo exonera Conselho Diretivo da AMA alegando “incumprimento de 70% das metas” do PRR

“A cessação do mandato que se fundamente na extinção ou reorganização de instituto público ou na necessidade de imprimir nova orientação à gestão dá lugar, desde que contem, pelo menos, 12 meses seguidos de exercício de funções e quando não se siga imediatamente novo exercício de funções dirigentes do mesmo nível ou superior ou o exercício de outro cargo público com nível remuneratório igual ou superior, ao pagamento de uma indemnização“, lê-se.

Essa indemnização corresponde à “remuneração base ou equivalente vincenda até ao termo do mandato, com o limite máximo de 12 meses“. A indemnização eventualmente devida “é reduzida ao montante da diferença entre a remuneração base ou equivalente como membro do conselho diretivo e a remuneração base do lugar de origem à data da cessação de funções diretivas”. É com a lei quadro dos institutos públicos que o despacho de dissolução assinado por Margarida Balseiro Lopes fundamenta a decisão de afastar o conselho diretivo, especificamente com a “necessidade de imprimir nova orientação à gestão”.

O estatuto de dirigente público também prevê uma indemnização quando a cessação da comissão de serviço decorre da “extinção ou reorganização da unidade orgânica e desde que contem pelo menos 12 meses seguidos de exercício do cargo”.

O valor da indemnização está ainda a ser apurado, adianta o Governo. Segundo a página sobre o concurso aberto pela Cresap em novembro de 2022, a remuneração associada ao cargo de presidente da AMA é de 5.722,75 euros mensais (vencimento base, bruto) a que acresce 2.289,10 euros em despesas de representação.

Dirigente critica forma “muito pouco ética” como foi afastado

Como explicou o Observador a 15 de maio, na origem da decisão de afastar o conselho diretivo da AMA esteve a alegação de que houve um incumprimento de 70% das metas e marcos intermédios previstos no PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) para 2023, em particular, na abertura de novas Lojas e Espaços do Cidadão, com potencial impacto nas metas de desembolso previstas para 2026″, assim como o “incumprimento de outras atividades previstas no Plano de Atividades de 2023″ ou a “danosa gestão de recursos humanos que originou a saída de quase 80 trabalhadores da AMA, alguns em posições de chefia com impacto direto na organização” e a “falta de articulação com a tutela para intervenções de natureza pública e representação institucional”.

O Executivo mencionava também a “desarticulação quanto ao lançamento e implementação da Estratégia Nacional de Territórios Inteligentes, que tem gerado contestação sobre a falta de envolvimento dos municípios e a forma centralizada como esta está a pensar ser operacionalizada pela AMA”.

Exonerados, dissolvidos e empurrados para a demissão. As justificações para afastar dirigentes herdados do anterior Governo

No mesmo dia, ao jornal Eco, João Dias admitia contestar o despedimento nos tribunais e indicou que ainda não tinha recebido o despacho de exoneração.

Esse despacho só viria a ser publicado no dia 20 de maio, com indicação de que a assinatura pela ministra Margarida Balseiro Lopes aconteceu a 15. Mas os argumentos inicialmente usados não são referidos, com o Governo a aligeirar os motivos para a dissolução ao apontar a “necessidade de imprimir nova orientação à gestão”, tendo em conta os compromissos assumidos pelo Governo. “(…) É imperativa a mudança de orientação à gestão da AMA, I. P., que assegure a concretização dos objetivos estratégicos da área governativa da Juventude e Modernização, com a definição de uma nova abordagem no desempenho da sua missão e das competências desta Agência, bem como na gestão dos seus recursos humanos e financeiros”, lê-se.

Questionado sobre o porquê de os motivos apontados inicialmente serem muito diferentes dos que constam no despacho de dissolução, fonte oficial do Ministério da Juventude e Modernização respondeu apenas que “os motivos da dissolução do Conselho Diretivo são os que constam do Despacho nº 5520/2024 de 20 de maio [o despacho da dissolução]”.

A lei quadro dos institutos públicos prevê que os conselhos diretivos sejam dissolvidos “por motivo justificado”, incluindo pelo “incumprimento dos objetivos definidos no plano de atividades aprovado ou desvio substancial entre o orçamento e a sua execução, salvo por razões não imputáveis ao órgão” ou a “falta de prestação de informações ou prestação deficiente das mesmas”, entre outros. Estes não foram os argumentos usados oficialmente no despacho de dissolução e, nestes casos, não há lugar a indemnização. A indemnização só está prevista quando se trate de extinção/reorganização de instituto público ou na necessidade de imprimir nova orientação à gestão, como foi alegado no caso da AMA.

O Observador tentou contactar João Dias, sem sucesso. No LinkedIn, o agora ex-presidente da AMA elencou, como forma de “prestar contas à sociedade”, durante sete dias, projetos implementados pela AMA e anuncia que vai “fazer uma pausa” naquela rede social. “Após estes 18 meses intensos, irei viajar e preparar o meu regresso em setembro com algumas novidades para partilhar”, acrescenta.

Também nessa rede, João Dias expressou o seu desagrado com o afastamento. Contou que a 14 de maio foi chamado a uma reunião com a ministra Margarida Balseiro Lopes que durou cinco minutos, na qual lhe foi comunicada a intenção de dissolver o conselho diretivo da AMA. O dirigente garante que a governante “não apresentou uma fundamentação objetiva para tal decisão, apenas um conjunto de argumentos que não correspondem à realidade e verdade”. Critica, aliás, “veementemente os argumentos e a forma como a sra ministra o fez — muito pouco ética, condenável do ponto de vista humano, e com total desrespeito institucional pela agência que tutela”.

João Dias sublinha que liderava o instituto “de forma totalmente legítima”, na sequência de um concurso público, e pede “respeito e dignidade” com os gestores públicos.

De acordo com o despacho de nomeação de janeiro de 2023, João Dias foi adjunto económico do governo do PS entre 2005 e 2011 e, a partir de 2009, acumulou com a função de coordenador nacional do Gabinete para a Mobilidade Elétrica em Portugal. Foi administrador da Prio Energy e CEO da Prio.E. Entre março de 2014 e abril de 2017, foi vogal do conselho de administração da EMEL, um período que coincide com o final de mandato de António Costa na Câmara de Lisboa e com o primeiro mandato de Fernando Medina. Antes de ir para a AMA era, desde 2017, vogal executivo do conselho de administração da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP).

Já no caso de Elsa Castro, a remuneração prevista no concurso aberto pela Cresap era de 4.578,20 euros (vencimento base, brutos), mais 1.831,28 euros (em despesas de representação). No despacho em que foi nomeada, é indicado que tem um mestrado em administração pública, foi técnica superior do Instituto da Segurança Social, consultora na Deloitte na área de IRS e Segurança Social, foi entre 2015 e 2019 adjunta da secretária de Estado da Segurança Social, que era então Cláudia Joaquim. Aliás, no segundo governo de António Costa, torna-se chefe de gabinete de Cláudia Joaquim, que entretanto passa a secretária de Estado do Orçamento. Tanto Elsa Castro como João Dias foram incluídos pela Cresap nas respetivas shortlists de candidatos mais aptos aos cargos.

Além dos dois, do conselho diretivo que iniciou funções no início de 2023 fazia parte Tito Vieira, que pediu para sair no início deste ano.

Medina nomeou ex-chefe de gabinete para a Estamo depois de ter sido rejeitada pela Cresap para agência pública

A AMA é o instituto público responsável pela promoção e desenvolvimento da modernização administrativa em Portugal. Mais recentemente, em conjunto com o IRN (Instituto dos Registos e do Notariado) e a INCM (Imprensa Nacional Casa da Moeda), esteve envolvida na criação do novo cartão do cidadão, que terá tecnologia contactless, maior segurança e um novo design.

Novo vogal da AMA renunciou às funções na empresa que tem contrato com o Estado

O Governo já nomeou, em regime de substituição, um novo conselho diretivo da AMA e adianta ao Observador que “estima enviar” à Cresap “toda a documentação necessária”, nos “próximos dias”, para que seja aberto o concurso.

Sofia Mota, que até aqui era diretora do TicAPP — Centro de Competências Digitais da Administração Pública, substituiu João Dias. Para vogais, foram nomeados Mónica Letra, que integrava a equipa LabX – Centro para a Inovação do Setor Público da AMA, e João Roque Fernandes, que esteve ligado a várias empresas de tecnologia.

Segundo o site da AMA, João Roque Fernandes é cofundador da Spike IT, empresa responsável por projetos na administração pública, na área da justiça, “com destaque para o cartão de cidadão”. Uma pesquisa no portal Base revela que a Spike IT já firmou quatro contratos com o Estado, num valor superior a 382 mil euros. Um desses contratos — por consulta prévia simplificada — está ainda em vigor, firmado com o Instituto dos Registos e Notariados, no valor de 202 mil euros, execução até 2024 e assinado pelo próprio João Roque Fernandes. Em causa está a aquisição de “serviços de consultoria de apoio à Gestão Estratégica e de Projetos da família do Registo Civil e Cartão de Cidadão no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), para reforço da capacidade da área de acompanhamento de projetos do IRN”.

A Spike IT foi ainda contratada, em 2020, pelo mesmo instituto; em 2018 pela Secretaria-Geral do Ministério da Justiça; e, no mesmo ano, pela própria AMA, para a aquisição de “serviços de arquitetura tecnológica para plataformas de identificação digital”.

Questionado pelo Observador, o Ministério da Juventude e Modernização indica que João Roque Fernandes “renunciou à gerência da empresa Spike IT no dia 16 de maio, após convite para vogal do Conselho Diretivo da AMA, tendo iniciado funções no dia 20 de maio”. “Desta forma, não existe qualquer acumulação de funções.” No portal do Ministério da Justiça, a informação sobre a cessação de funções ainda não consta.

O caso da AMA junta-se a outros casos de afastamento de dirigentes designados pelo anterior governo, com metodologias semelhantes, embora com nuances. Há dirigentes que escolheram sair pelo próprio pé, ainda que de alguma forma empurrados por ministros, outros em que o risco de o Governo ter de pagar indemnizações parece ter sido acautelado com demissões antes dos tais 12 meses, ou demissões após esse prazo mas fundamentadas em gestão danosa e falta de reporte de informação à tutela, evitando indemnizações.