A Groundforce tem vivido desde 2020 os piores meses da sua história. A pandemia parou o negócio quase totalmente, seguiram-se os despedimentos e os cortes salariais e uma guerra entre o acionista maioritário, Alfredo Casimiro, e o outro acionista, a TAP, que é também cliente (representa 70% do negócio da empresa) e fornecedor. Uma novela com episódios ainda mais estranhos, como a troca de acusações entre Casimiro e o ministro da tutela, Pedro Nuno Santos, que até meteu a divulgação de gravações de reuniões entre ambos.
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Paulo Neto Leite atravessou tudo isto e testemunhou de perto as dificuldades da empresa de handling portuguesa (que faz a assistência em terra aos aviões comerciais), um caso de sucesso (com anos sucessivos de resultados positivos) até à chegada da pandemia. Na primeira grande entrevista desde que foi afastado do cargo de CEO (e depois da administração), o gestor conta ao Observador o que levou mesmo à sua saída, as ideias para o futuro da empresa e a razão pela qual considera que a Groundforce é não só viável como essencial.
A Groundforce já passou o limite da viabilidade?
A Groundforce é uma empresa que não passou do limite da viabilidade, porque o próprio negócio da empresa é um negócio que perdurará. Estamos a falar de uma atividade concessionada e fortemente impactada pela pandemia, não há como esconder, mas é uma empresa que tem futuro, tem pessoas qualificadas. Não é a mesma coisa decidirmos que vamos aumentar as embalagens de iogurtes num hipermercado, contratamos alguns repositores e fazemos isto da noite para o dia. [Na Groundforce] Estamos a falar de pessoas que têm muita formação, que têm um conjunto enorme de restrições de informação por causa da segurança, e portanto não é um negócio que possa terminar de um dia para o outro. É um negócio que vai voltar a florescer. O país precisará sempre de um suporte do turismo – o turismo é uma atividade essencial do nosso PIB.
[Vídeo. Essencial da entrevista a Pedro Neto Leite:]
Nenhum dos acionistas tem capacidade para capitalizar a empresa; o equipamento foi vendido à TAP; não há, neste momento, negócio a suportar. Vai ser preciso, muito provavelmente, uma ajuda dos contribuintes portugueses, ou não?
Nunca esteve em cima da mesa uma injeção de capital na empresa. O que esteve em cima da mesa resultou do momento em que nós vivíamos, da economia e da falta de liquidez. Todos os bancos estavam muito reticentes em ajudar o setor da aviação, porque não se sabia quanto tempo ia durar a pandemia. Em abril de 2020 dizíamos ‘será que isto vai durar até ao verão, ou será que vamos passar um verão difícil?’. Nunca se imaginou que íamos ter o espaço aéreo fechado em março de 2021. Os bancos não estavam disponíveis para auxiliar no setor da aviação. E o que estava a ser pedido era um aval, porque, com a recuperação da atividade, a empresa teria capacidade de sustentar a sua atividade e de sustentar o seu negócio.
Mas esse aval não foi concedido. E essa recuperação acabou por não acontecer. O que é que tem de se alinhar neste momento? Não é só a retoma da atividade.
Efetivamente. Tem que haver um alinhamento entre acionistas. Uma empresa não pode ter acionistas desalinhados. Normalmente….
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Mas é possível com Alfredo Casimiro? Considera que ele é um parceiro fiável para a TAP?
Isso o melhor é ser a TAP a responder…
Mas conhece-o desde 2016 e trabalhou muito com ele. A questão é se ele é um parceiro viável.
Eu acho que, neste momento, assistimos a uma relação muito tensa e muito desgastada. Estamos a falar de… Isto é como um casamento, por muito amor que possa ter existido a uma certa altura, se deixamos a relação chegar a um estado em que já não é recuperável, não há nada a fazer. Penso que podemos ter atingido essa situação e esse momento. Uma empresa precisa de acionistas alinhados, quanto a isso não há dúvida nenhuma. E na Groundforce, em que um dos acionistas é também cliente e fornecedor, isso é essencial.
Como é Alfredo Casimiro como acionista?
Há aqui um princípio que este episódio todo retrata e que eu acho que temos que entender. Não podemos ser privados nos dividendos e públicos nas ajudas. E essa é, para mim, a grande questão que está aqui em cima da mesa. Um acionista pode ter os seus propósitos, e ninguém retira o mérito, mas há alturas em que ou somos acionistas ou somos executivos, ou somos investidores, acionistas maioritários e minoritários. Todos temos de ter consciência do nosso papel. E, efetivamente, um acionista tem que estar alinhado com os objetivos da empresa. Por muito que esta, há um ou dois anos, estivesse no seu melhor momento, agora é necessário parar, enfrentar, refletir um pouco e criar condições para que a empresa continue.
Liderou uma tentativa de a gestão tomar conta da empresa, um processo chamado Management Buy Out. Em que ponto está esse processo? Está morto?
Até ao momento em que saí, o meu foco sempre foi garantir que os acionistas estavam com o melhor ativo nas mãos. Essa foi sempre a minha preocupação. Até ao dia em que sou destituído, a minha preocupação foi maximizar o valor dos acionistas. E essa era a única responsabilidade que tinha enquanto executivo, e enquanto equipa. Foi a nossa preocupação todos os dias: encontrar equilíbrios com os fornecedores. Equilíbrios difíceis porque estávamos sem dinheiro. E continuar a garantir que tínhamos um ativo valioso nas mãos dos acionistas.
Isso até sair. E agora?
Hoje sou uma pessoa que acredita no futuro da Groundforce. Tem pessoas para ter futuro. O país precisa da Groundforce e eu acredito que a Groundforce continuará a existir por muitos e bons anos.
E que caminho há a fazer nesse processo da gestão a tomar conta da empresa?
Essencialmente é necessário dar alguma estabilidade à empresa. Continuamos a ter uma grande incerteza: vamos ou não ter uma quarta vaga da pandemia. (…) E, como é óbvio, existem players com capacidade e músculo para enfrentar essa incerteza, porque uma das coisas que será sempre necessária é que haja capacidade, por exemplo nos equipamentos. Mas primeiro há que resolver a questão acionista. Ponto. Quanto a isso não há volta a dar.
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Como é que se resolve essa situação. O ministro Pedro Nuno Santos já disse que não conta com Alfredo Casimiro. O que é que pode ser feito?
Neste caso passa por Alfredo Casimiro desfazer-se da posição dele. Através de uma venda, ou seja do que for. Acho que esse é o único caminho. Se fosse eu, não quereria estar com um parceiro que não conta comigo. A relação degradou-se tanto – seja por atitudes das quais não vamos estar aqui a falar… – que é impraticável a continuidade.
Está a falar do acordo com a TAP que depois Alfredo Casimiro considerou nulo.
Estamos a falar de um contrato legítimo, que foi celebrado entre duas partes e foi rasgado. E em que é dito ‘Agora não vale, mas eu também não devolvo o dinheiro’. Já houve um conjunto de questões entre os acionistas, provocadas pelo acionista minoritário, que levam a que seja completamente irrecuperável uma relação. Isso não faz com que a empresa seja irrecuperável, porque empresa é um bom ativo, as pessoas são muito válidas, os trabalhadores sempre tiveram uma serenidade… que eu, às vezes, penso que não sei se teria tido aquela serenidade.
Acredita que há dinheiro para pagar os salários de Maio? É possível que venhamos a ter um problema para os trabalhadores já neste mês, nesta folha de pagamento?
Neste momento eu não lhe consigo responder essa questão. Não tenho já o domínio do que se passa, mas acredito que pode haver a capacidade de honrar os salários. Acredito que sim. A atividade está a retomar, naturalmente que o verão é diferente. Para que as pessoas tenham uma ideia da diferença entre o verão e inverno, eu dou o exemplo do aeroporto de Faro. O Aeroporto de Faro tinha sete voos diários da Aer Lingus, da Irlanda, no verão, e tinha aí uns três ou quatro voos semanais no inverno. A diferença entre uma atividade de verão e de inverno é relevante. As restrições ao turismo britânico tiveram muito impacto nos aeroportos de Faro.
Que foram levantadas agora.
Sim, portanto é natural que o retomar da atividade faça com que seja possível pagar salários. Isso sim, até porque continua a haver apoio. Agora, uma empresa não pode viver só a pagar salários. Há fornecedores. Há toda essa questão.
E há um acumulado. A quanto é que já ascende essa dívida a fornecedores e quem é o maior credor?
Não consigo dizer. A ANA e a TAP são os maiores credores. Não consigo dizer nesta altura, mas na altura já estávamos a falar de mais de 20 milhões, acumulados. São valores relevantes. Portanto, se vai haver dinheiro para pagar salários? Eu espero que sim, porque os trabalhadores merecem que seja pago, mas não se pode gerir uma empresa só pagando salários, até porque os nossos fornecedores também eles próprios pagam salários. Portanto tem de haver aqui uma cadeia de respeito e nós fizemos sempre uma gestão muito criteriosa. Quando falámos com a ANA, explicamos que havia empresas que sem o nosso pagamento teriam graves dificuldades na sua subsistência e dado que os bens os recursos financeiros eram escassos íamos ter que acudir essas pessoas. E foi o que fizemos.
Porque é que o Alfredo Casimiro o afastou? Qual foi a razão concreta? Eu li o comunicado dele, mas queria ouvir a sua versão desse episódio.
Vou dizer-lhe, de uma forma muito transparente. Leu o comunicado dele, a TAP também fez um contra-comunicado, a dizer que não se revia naquelas questões. Eu sou uma pessoa bastante leal e sempre fui bastante leal ao acionista e à empresa.
É precisamente aquilo que ele diz que não foi.
Mas sempre fui. Muito. E estou perfeitamente de consciência tranquila, fiz o melhor pela empresa, pelos seus acionistas. Distribuí dividendos como nunca tinham sido distribuídos. Digo eu, mas como parte da equipa. Não fiz nada sozinho e não sou nada sozinho na empresa. O sucesso não é um trabalho de um homem só. Nem um trabalho de um só homem. Fizemos, distribuímos aumentos, prémios pelos trabalhadores, tudo. Mas há uma coisa que é soberana: um administrador – e as pessoas, às vezes, esquecem-se disso – um administrador tem uma coisa que é o dever fiduciário, para com a sociedade em primeiro lugar.
Pode ser mais específico?
Para mim há linhas – que são a linha da ética, da moral e da legalidade… – que não se podem ultrapassar. No dia 18 de março já há algum tempo que havia a questão dos salários em atraso. Eu sempre tive um contacto, e muito próximo, com os trabalhadores. E ver aquela aflição, afligia-me também. Tínhamos lá casais, casais com filhos. Era, realmente, uma forma de sustento importante dessas pessoas. E, como é óbvio, para mim era fundamental pagar salários.
Foi quando se chegou ao dia da votação do acordo de venda do equipamento à TAP, certo?
O célebre dia 18 [de março], em que eu sabia que tinha uma decisão para tomar: ou aprovava ou votava contra o contrato de venda dos equipamentos à TAP. Mas assim não entrava dinheiro na empresa e não pagava salários, e, muito provavelmente, a empresa entraria em colapso, porque as pessoas não iam aguentar mais. Portanto, naquele dia, tive que tomar uma decisão em consciência. Há uma expressão de que eu gosto muito: prefiro morrer de pé do que viver a vida toda agachado. E naquele dia tive de tomar essa decisão.
E votou ao lado da TAP.
Eu não votei ao lado de ninguém. Eu votei ao lado daquilo que eu achava que era o melhor para os acionistas. Votar pela venda dos equipamentos com a perspetiva de recuperar – porque nós continuámos a fazer o processo todo de tentativa de obtenção de financiamento, porque ninguém ia arranjar um financiamento a uma empresa que estava com salários em atraso e com manifestações todos os dias na rua.
Digo que votou ao lado da TAP porque claramente era um conselho de administração completamente fragmentado nessa altura.
Para mim não havia outra coisa a fazer. A minha rotura começa aí e não tem nada a ver com lealdade. Nada a ver. Eu tinha que votar daquela forma porque era o melhor para empresa, e fi-lo com essa consciência. Se eu não o tivesse feito, provavelmente não haveria empresa hoje.
Está a dizer que Alfredo Casimiro preferia deixar cair a empresa? Ou que ele não queria um acordo com a TAP? Com que objetivo?
Para fazer pressão. Ou seja o que for.
Ou para obter uma outra solução que considerasse mais proveitosa. O que poderia ele obter nesse momento?
Isso realmente só mesmo ele poderá dizer. Mas acho que é um milagre, é um sinal de respeito e é um sinal de compromisso dos trabalhadores e dos ORT (Organizações Representativas dos Trabalhadores) terem resistido a 20 dias sem salário sem greves. Ou seja, a operação do aeroporto não foi beliscada um segundo por isso. Isso, eu acho que as pessoas todas têm que reconhecer. Nós vivíamos numa situação em que as pessoas recebiam salários durante muitos anos e mesmo assim faziam greves. Agora as pessoas estiveram 20 dias sem receber os salários e não houve um único dia de greve, não faltaram ao trabalho. É um sinal do respeito para com os trabalhadores, tal como eles tiveram para com a empresa. Eu e os membros [do Conselho de Administração] que votaram, sentimos que não podíamos ter feito de outra forma.
Mas se tivesse impedido o acordo…
Isso ia gerar uma convulsão. Eu presumo que sim. As pessoas não estavam em condições. Nós estávamos a ajudar pessoalmente algumas pessoas que estavam a passar dificuldades. Isso não faria sentido. Não se pode estar a fazer uma pressão com o salário das pessoas. Acho que isso é imoral. Eu não conseguiria olhar para as minhas filhas se o fizesse.
Para que fique claro, que linhas éticas, morais e legais é que, no seu entender, foram ultrapassadas na Groundforce?
Eu não podia, moralmente, utilizar os trabalhadores para obter alguma vantagem negocial, seja para fazer o que fosse. Não podia.
Por outras palavras, está a dizer que era isso que estava a fazer Alfredo Casimiro.
Se eu – com uma solução [à minha frente] que permitia à empresa continuar a operar e pagar os salários – não optasse por essa solução, estaria a ultrapassar [essa linha]. Aí sim, estaria a dizer que, para mim, os trabalhadores não contam. Pior, para mim eu estaria a fazer um mau serviço aos acionistas. Se eu fizesse isso, a empresa poderia entrar em convulsão. Moralmente eu não podia.
Mudando de tema. Que empresa – europeia ou mundial – gostaria de ver associada à Groundforce para retomar o trabalho da empresa, nas operações normais? Alguma empresa particularmente habilitada para ser parceira da TAP em vez de Alfredo Casimiro?
A resposta mais óbvia seria ‘qualquer uma que garanta a estabilidade’, porque a estabilidade da Groundforce é uma ferramenta fundamental para a recuperação da TAP. Mas todos os players mundiais têm. Estamos a falar de uma Swisspor, a Menzies, a WFS, a Aviapartners. São operações que têm um know-how muito grande, a Groundforce é uma empresa que know-how bastante grande também, com técnicos altamente qualificados, de excelência operacional. Muito recentemente tínhamos indicadores de excelência operacional fantásticos, indicadores de excelência financeira muito, muito bons. E qualquer um dos grandes players seria uma excelente continuidade para o grande trabalho que a empresa fez.
Acredita que Alfredo Casimiro está verdadeiramente interessado em sair através de uma venda?
Eu, no lugar dele, estaria. Porque tendo tendo um acionista, que também é cliente e que não conta com ele, com uma relação degradadíssima, com episódios rocambolesca sobre a relação do contrato. Como é óbvio, eu estaria interessado em fazer isso. E há a possibilidade. E eu acho que há todo o interesse, de todas as partes, de resolver o assunto. Isso, para mim, é o alinhamento que era necessário. Ou seja, as partes sabem que, para tornar o ativo transacionável, tem que se fazer alguns ajustes.
E tem que haver uma avaliação que represente aquilo que é o valor real da empresa.
Essa é que é a grande questão. Eu posso querer vender uma casa ou posso querer pôr uma casa à venda. O preço que eu ponho na casa é o que vai ditar isso.
O Observador já noticiou que Alfredo Casimiro estaria a fazer uma avaliação da empresa em torno dos 100 milhões de anos. Isto é realista?
Se prolongar as licenças por 50 anos e o contrato da TAP por 60 anos, se calhar a empresa até vale 400 ou 500 milhões de euros. Não é essa a questão.
Nem a Groundforce é a REN…
Exatamente. O que vai ditar o valor da Groundforce é precisamente quais são os contornos que fazem com que essa empresa seja avaliada, e qual é a perspetiva do futuro. As empresas compram-se ou pelo valor presente ou pelo valor futuro. Uma empresa com licenças a caducar daqui a pouco tempo, ela tem que ter um valor futuro maior porque senão eu vou aplicar uma grande taxa de desconto. Isso é normal. Em 2019 a Groundforce valia, se calhar, muito mais do que 100 milhões. Se calhar valeria 200. Porque estávamos a falar de um futuro com um novo aeroporto, uma certeza mais do que iminente da renovação de licenças…
E com um grande cliente, a TAP, que estava com atividade a florescer. E um cada vez maior número de turistas e de passageiros nos aeroportos nacionais.
Mais uma excelência operacional, um bom relacionamento com os sindicatos. Vamos lembrar que nós tínhamos acordos com os sindicatos válidos por três anos, ou seja, havia uma paz e não uma paz podre, havia uma paz em que havia alinhamento de interesses, havia uma transparência que realmente dava boa perspetiva. Neste momento, o que vai ditar o valor vão ser precisamente as balizas que se conseguirem fazer para esse futuro, seja pela renovação do contrato, seja pela questão das licenças.
[Vídeo. A entrevista a Pedro Neto Leite na íntegra:]