Quando decidiram guardar as células estaminais da filha que iria nascer no final de 2008, os pais de Inês estavam longe de imaginar que poucos anos depois teriam de as usar. “Sabíamos que existia esta possibilidade [de conservar as células do cordão umbilical], mas não imaginámos que iríamos precisar delas”, diz o pai, Paulo Pinho. “A probabilidade de ser necessário usar estas células não é muito alta, mas existe. Portanto, achamos que as pessoas devem ser livres de escolher guardar ou não”, refere André Gomes, presidente executivo e um dos fundadores da Crioestaminal, um banco privado de células estaminais do cordão umbilical.
Com as aplicações atuais das células estaminais – células precursoras das outras células do organismo -, retiradas do sangue do cordão umbilical, já foram realizados cerca de 30 mil transplantes para tratar mais de 80 doenças, acrescenta André Gomes. “E há muitos ensaios clínicos a decorrer neste momento, que certamente irão trazer novas aplicações.” Ciente do crescente número de aplicações e de famílias interessadas em preservar as células do sangue e do tecido do cordão umbilical, a Crioestaminal duplicou a área do laboratório e triplicou a capacidade de armazenamento até às 300 mil amostras.
Este laboratório, que se torna o segundo maior da Europa em capacidade de armazenamento, quer expandir o negócio para outros países. Neste momento, as 60 mil amostras guardadas pertencem a famílias a viver em Portugal e Espanha, mas há mais dois países prestes a fechar acordo com a Crioestaminal, aumentando de 20 para 50% a quantidade de amostras que vêm do exterior, avança o presidente executivo, que preferiu não referir de que países se trata porque o negócio ainda não está completamente fechado.
A decisão de armazenar as células do cordão umbilical tem de ser tomada alguns meses antes do fim da gravidez, porque é preciso recolher informação clínica completa dos pais e informar o médico assistente da opção. Às 36 semanas, quando Cristina Godinho descobriu que se passava algo de errado com a Inês e que o parto teria de ser antecipado para aquele dia, seria tarde demais para tomar esta decisão. Mas o assunto já estava resolvido. “Se não forem preservadas naquele momento [logo após o parto], as células estaminais [do cordão umbilical] vão-se perder para sempre”, lembra Alexandra Machado, diretora médica da Crioestaminal, que acompanha o projeto desde o início.
Os pais de Inês escolheram preservar as células da filha porque já conheciam o tema e tinham meios financeiros para o fazer. Mas André Gomes considera que o tipo de clientes que procura a Crioestaminal é melhor definido pelo nível de conhecimentos nesta área da ciência do que pelo poder de compra. Entre preservar apenas as células do sangue do cordão umbilical ou também as do tecido do cordão, e entre fazê-lo com um método padrão ou com um método melhorado, os pais podem pagar entre mil e 2.700 euros. “É como fazer um seguro”, diz Paulo Pinho.
A família de Inês não sentiu necessidade de procurar mais informação para tomar a decisão. O que já sabiam pareceu-lhes suficiente. Mas Alexandra Machado garante que, tanto ela como a restante equipa, se encontram disponíveis para esclarecer todas as questões dos clientes. Muitas vezes os pais procuram saber se as células estaminais podem ser usadas no tratamento de uma doença genética que já exista na família. “A ciência à volta das células estaminais tem uma dinâmica com uma velocidade incrível. Todos os dias são publicados artigos em revistas médicas sobre a aplicação das células estaminais”, refere a médica, que faz uma revisão semanal da literatura para poder ter todos os elementos da empresa a par das descobertas, aplicações e ensaios clínicos mais recentes.
Funcionários e clientes têm acesso a esta informação científica atualizada. E foi assim que, pouco tempo depois de Inês ter nascido com uma paralisia cerebral, devido a derrame cerebral ainda dentro da barriga da mãe, que os pais ficaram a saber que estava a decorrer um ensaio clínico no Hospital da Universidade de Duke, nos Estados Unidos. Esta experiência usava células estaminais do sangue do cordão umbilical para tratar crianças com paralisia cerebral.
As células estaminais reconhecem as lesões cerebrais
Joanne Kurtzberg percebeu que as células estaminais podiam ter algum efeito em crianças com paralisia cerebral quando tratava doentes oncológicos que também tinham lesões no cérebro. Inês viajou para os Estados Unidos três vezes para receber as próprias células estaminais – um transplante que se assemelha a uma transfusão de sangue. “Passado um mês da primeira infusão [transplante], a Inês passou a interagir mais, a fixar. Coisa que não acontecia. Ganhou mais mobilidade nas mãos e melhorou a postura”, conta Paulo Pinho. Além da Inês, mais seis crianças portuguesas com paralisia cerebral e com as células preservadas na Crioestaminal participaram neste ensaio clínico.
“Ainda não se sabe qual o mecanismo que está por trás destas melhorias [motora e cognitiva], mas sabe-se que as células estaminais ajudam a recuperar algumas células danificadas no cérebro”, refere André Gomes. Aparentemente, as células estaminais têm a capacidade de identificar em que região do corpo há danos a reparar e viajam até lá pela corrente sanguínea. Conseguir fazer ensaios clínicos com paralisia cerebral em Portugal é um dos desejos de Alexandra Machado. “Temos a intenção de participar em alguns ensaios clínicos internacionais e apoiar médicos e centros portugueses que queiram investigar na área da aplicação clínica das células estaminais”, refere, acrescentando que coordena e colabora no desenvolvimento das ideias e protocolos.
Perceber quais são as aplicações potenciais das células estaminais, que ensaios clínicos estão a ser desenvolvidos fora de Portugal e divulgá-los, estão entre os objetivos da empresa, explica Carla Cardoso, responsável pelo Departamento de Investigação e Desenvolvimento. “A ideia é que, naquilo que for possível da nossa parte, contribuirmos para que um ensaio clínico destes [como para a paralisia cerebral] seja uma realidade na Europa, para evitar que as crianças tenham de ir aos Estados Unidos fazê-lo.” Alexandra Machado refere, ainda, que crianças com células preservadas na Crioestaminal podem ser encaminhadas para centros de investigação que estejam a fazer ensaios clínicos na doença que afeta a criança.
Sem um laboratório dedicado exclusivamente à investigação, a Crioestaminal conta com as parcerias que tem estabelecido com várias unidades de investigação e hospitais, como o Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa, o Centro de Neurociências e Biologia Celular de Coimbra, o Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa ou outros grupos de investigação localizados no Biocant, em Cantanhede. Destes trabalhos conjuntos foram desenvolvidos dois tratamentos com base nas células estaminais do sangue do cordão umbilical que originaram duas patentes.
Tratar o pé diabético com células estaminais
A primeira patente surgiu de um projeto que consistia no “desenvolvimento de uma composição com gel de fibrina, células do sangue do cordão umbilical e células derivadas destas”, explica Carla Cardoso. Este gel foi aplicado, como se de uma pomada se tratasse, nas feridas de um animal diabético para avaliar o efeito que tinha na cicatrização. “Esta combinação diminuiu o processo inflamatório e acelerou o de cicatrização, formando novos vasos sanguíneos (vascularização).” A investigadora lembra que as feridas do pé diabético podem levar anos a cicatrizar e, no limite, levar à amputação do membro. O próximo passo, ainda durante 2015, será realizar ensaios clínicos em humanos. “Mas estamos a falar de um processo de cinco ou seis anos até chegar ao mercado”, nota André Gomes.
A utilização de células estaminais aumenta a quantidade de oxigénio e nutrientes que chega à área lesada e promove a vascularização, tanto na cicatrização das feridas dos diabéticos como na regeneração do músculo cardíaco – que originou a segunda patente. Derivado do primeiro, este projeto junta o gel, as células estaminais e uma molécula que aumenta a sobrevivência das células. No futuro, a equipa espera poder simplificar a aplicação das células estaminais utilizando, por exemplo, “algumas partículas das células estaminais onde estão os fatores determinantes para regenerar os vasos sanguíneos”. “No fundo é encontrar o princípio ativo das células estaminais para ser mais eficaz na terapia”, diz André Gomes.
O primeiro transplante com células estaminais do sangue do cordão umbilical entre irmãos aconteceu em 1988 em Paris. Em 1994, Alexandra Machado participava na primeira colheita e transplante em Portugal deste tipo de células entre irmãos. “Foi um marco muito importante na minha carreira profissional”, refere a médica que trabalhou durante 17 anos na unidade de transplantação de medula óssea do IPO de Lisboa. Foi também uma transplantação entre irmãos que ocorreu em 2007 com células guardadas pela Crioestaminal. Porque quando não existem células do próprio ou quando essas não podem ser usadas – como no caso de doenças genéticas – as células do irmão são as que apresentam maior probabilidade de serem compatíveis, ou seja, o risco de haver uma rejeição do transplante e consequentes problemas para o doente é menor.
O banco público de células estaminais
Além dos bancos privados de células estaminais, cujas células podem ser usadas pelo próprio, por um irmão ou por um familiar, os bancos públicos de células do cordão umbilical, como o Lusocord, têm como objetivo servir toda a população que precise de um transplante de medula óssea, como nos casos de leucemia. Criado em 2009, o banco público português sofreu uma restruturação a partir de 2012 para conseguir cumprir os critérios de segurança e qualidade e obter uma certificação da Direção-Geral de Saúde. A partir desse momento mudou a estratégia de recolha de amostras para ser mais focalizada.
Hélder Trindade, presidente do Instituto Português do Sangue e da Transplantação – entidade que agora coordena a atividade do banco público -, explica ao Observador que sendo o Lusocord um complemento aos dadores de medula óssea registados a ideia é que haja a maioria diversidade possível de perfis genéticos. Mas antes de 2012, como qualquer mãe podia escolher doar o cordão umbilical do filho, corria-se o risco de pais e filhos se tornarem dadores, não acrescentando muito à diversidade. Uma variedade que se torna muito importante quando se considera que a maior parte dos 400 mil dadores de medula óssea, ainda que bem distribuídos pelo país, são caucasianos.
Por isso, conforme esclareceu Hélder Trindade, o Lusocord vai apostar na recolha de células do cordão umbilical nas populações de outras etnias, menos representadas entre os dados de medula óssea, para aumentar a probabilidade de se encontrar dadores compatíveis para os elementos destas populações que tenham necessidade de realizar um transplante com células estaminais. De qualquer forma, o banco público está integrado numa rede internacional que permite que os cidadãos de um país recebam transplantes de dadores de outros países.
Defendendo a existência de bancos públicos em detrimento dos privados, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) e Comité de Bioética (CBE) de Espanha emitiram um parecer em 2012, acusando os bancos privados de assentarem “num modelo comercial, com critérios de seleção e qualidade menos estritos, promessas de aplicações irrazoáveis (tratamento de doenças comuns da vida adulta, quando a conservação se faz a 20-25 anos), estratégias de marketing agressivas e pouco transparentes, dirigidas a um público numa fase particularmente vulnerável da sua vida”. Acrescentando que este tipo de bancos está proibido em França e Itália. O parecer incentiva a “conservação em banco público de amostras próprias para uso em familiares próximos, se houver indicação clínica provada” e a aposta da “investigação em métodos de processamento e preservação de células derivadas do cordão e placenta, e suas novas aplicações clínicas”.
A recolha de células estaminais acontece nos adultos, não apenas as que estão na medula óssea, mas também as do tecido adiposo, por exemplo. E o novo laboratório da Crioestaminal terá uma área dedicada para preparar e conservar células estaminais de outras fontes que não as células do sangue e do tecido do cordão umbilical do recém-nascido. Segundo os responsáveis da empresa, as células retiradas do cordão umbilical têm vantagens porque são ainda muito imaturas e não estiveram expostas a infeções ou a fármacos que poderiam comprometer o funcionamento correto. A desvantagem é que a quantidade é muito limitada. Inês, com as três infusões que realizou nos Estados Unidos, esgotou todas as células que tinha guardado. Alexandra Machado espera que, em breve, a técnica de expansão (multiplicação em laboratório) de células estaminais se torne uma prática corrente para aumentar o número de células disponíveis para tratamento.
Entre as células do sangue do cordão umbilical e as células do tecido também existem diferenças. As primeiras, chamadas hematopoiéticas, são precursoras de todas as células sanguíneas e do sistema imunitário, são usadas em práticas clínicas e estão mais estudadas. As do tecido do cordão umbilical, ou mesenquimais, podem diferenciar-se em qualquer tipo de célula do organismo, desde as células que originam os ossos e as cartilagens, às dos músculos e do tecido adiposo, mas também às células sanguíneas e do sistema imunitário. Contudo, a quantidade de células disponíveis no tecido do cordão é ainda menor e este tipo de células continua pouco estudado. O CNECV e CBE concordam que deve haver uma aposta na “investigação em métodos de processamento e preservação de células derivadas do cordão e placenta, e suas novas aplicações clínicas”.
As células estaminais mesenquimais também podem ser recolhidas no adulto – na medula óssea ou no tecido adiposo – e usadas na medicina regenerativa. “Em Portugal, usa-se na regeneração cardíaca (miocardiopatias e enfartes do miocárdio), ou seja, é possível recuperar o miocárdio [músculo do coração] estragado injetando estas células diretamente no músculo cardíaco”, refere Alexandra Machado. Para fazer regeneração da cartilagem também são injetadas diretamente no local.
Este tipo de células também está a ser estudado para o tratamento de doenças autoimunes, como a doença de Crohn, artrite reumatoide ou esclerose múltipla. “Como são imunomoduladoras, conseguem alterar o sistema imunológico deficiente para que volte a ter um comportamento normal”, explica a médica. Pelo mesmo motivo, quando usadas em transplantes podem diminuir a probabilidade de rejeição. Em estudo está também a utilização na diabetes tipo 1 da criança. “As células do sangue e as células mesenquimatosas do cordão umbilical do recém-nascido e da placenta são muito promissoras para aplicação noutras doenças (degenerativas, traumáticas, isquémicas)”, refere o parecer do CNECV/CBE, alertanto que “a validade científica e utilidade potencial não estão ainda estabelecidas, e o seu uso permanece experimental”.
Para Paulo Pinho, guardar as células da filha foi uma questão moral para mais tarde não ter o peso na consciência de que tinha tido a possibilidade e não o tinha feito. “E valeu a pena por tudo”, refere o pai, que, mesmo sabendo que o tratamento não curou Inês, foi mais uma possibilidade explorada para melhorar a vida da criança. O número crescente de ensaios clínicos aumenta a possibilidade de usar as células estaminais para o tratamento de um leque cada vez mais alargado de doenças. O parecer CNECV/CBE, crítico dos bancos privados, incentiva no entanto a “conservação em banco público de amostras próprias para uso em familiares próximos, se houver indicação clínica provada”. Mas a médica Alexandra Machado alerta: “Ainda há muito por descobrir. Não podemos criar a expectativa de que o transplante com o sangue de cordão umbilical serve para tratar tudo, porque isso não é verdade.”
Quando o sangue do cordão umbilical chega ao laboratório
Com a equipa médica já avisada, o sangue e o tecido do cordão umbilical são recolhidos logo após o nascimento e a Croestaminal contactada imediatamente. A empresa dispõe de um serviço especializado que recolhe a amostra no hospital e a entrega no laboratório em Cantanhede. Na receção são atribuídos códigos de barras e documentos identificativos que acompanharam as amostras durante todo o processo. Ao laboratório que funciona sete dias por semana, chegam diariamente cerca de 12 amostras de sangue e oito de tecido. Todos os objetos e amostras que passam da receção para o interior do laboratório tem de passar por um compartimento com duas portas que abrem à vez para evitar que o ar do exterior entre no laboratório.
As “salas limpas”, como explicou André Gomes, têm uma entrada de ar filtrado em cima e uma ligeira pressão positiva para que o ar seja sempre empurrado para o exterior por baixo das portas e não o contrário. A ideia é a de que o ar esteja livre de partículas para não haver contaminação das amostras.
Cada técnico do laboratório tem de estar devidamente equipado com um fato esterilizado, protetor dos sapatos, cabelo, rosto e luvas, e com o respetivo cartão de identificação que será solicitado no acesso aos espaços e de cada vez que for introduzida alguma informação na ficha do cliente.
A amostra começa por ser pesada. Se a quantidade for pouca terá de ser rejeitada. Na centrifugadora separa-se o sangue nos vários componentes: glóbulos vermelhos, plasma e células estaminais. O tecido do cordão umbilical é processado noutro laboratório, onde se usam técnicas diferentes para individualizar as células estaminais. Umas e outras estão prontas a ser armazenadas, mas não sem antes de fazer o controlo de qualidade: detetar infeções por bactérias ou vírus, contar o número de células estaminais e avaliar a viabilidade celular. Se falhar nalgum ponto do controlo, a amostra é descartada e o contrato com a família resolvido.
Quando passa para a sala de congelamento, é injetado um crioprotetor nos sacos com as células, para evitar que a formação de cristais de gelo durante a congelação destrua as células. Gradualmente, o azoto líquido fará com que as amostras passem de cinco graus Celsius positivos, para 150 graus negativos. Terminada a congelação, as células são colocadas nos recipientes de armazenamento e assim podem ficar criopreservadas durante 25 anos, o tempo definido para o contrato, porque é o tempo máximo comprovado como viável até ao momento. Findo este prazo, o cliente pode renovar o contrato, pedir para destruir as células ou doá-las para outros fins.
Acrescentado parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e Comité de Bioética de Espanha