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Procissão do adeus num santuário vazio
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Procissão do adeus num santuário vazio

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Procissão do adeus num santuário vazio

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Há cem anos, durante uma pandemia, foi esculpida a Virgem de Fátima. Agora, outra impediu a procissão do adeus

Cem anos depois da outra pandemia que marcou Fátima, a missa do 13 de maio foi curta, sem peregrinos e com uma homenagem aos profissionais de saúde. Acabou cedo e com promessas de reabertura.

Em 1920, o escultor José Ferreira Thedim esculpia numa oficina de arte sacra em Braga aquele que se viria a tornar o maior tesouro do Santuário de Fátima: a estátua de Maria que ainda hoje é venerada todos os dias pelos fiéis que percorrem os caminhos de Fátima e se dirigem para a capelinha das aparições. Cumprem-se agora 100 anos desde que a estátua — entretanto restaurada e acrescentada com a bala que feriu o Papa João Paulo II no atentado de que foi alvo em 1981 — foi colocada no local onde esteve a azinheira sobre a qual os três pastorinhos viram as aparições da Virgem Maria.

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Na altura, o mundo — e Fátima muito particularmente — enfrentava uma outra pandemia. A gripe espanhola, que se começou a disseminar em 1918, matou cerca de 40 milhões de pessoas em todo o mundo — entre as quais os pastorinhos Francisco e Jacinta Marto. Este ano, foi outra pandemia, a da Covid-19, que impediu que a estátua que atrai milhões de peregrinos a Fátima (o santuário teve até de instalar uma câmara para transmitir em direto o lugar onde está a imagem, em resposta a pedidos de todo o mundo) fosse venerada presencialmente no santuário.

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O elevado risco de contágio, como explicou o cardeal D. António Marto, bispo de Leiria-Fátima, levou à decisão inédita de fechar as portas do santuário durante 24 horas, nestas terça e quarta-feiras, dias 12 e 13 de maio, e celebrar sem peregrinos a mais importante peregrinação do ano naquele lugar. O rito das celebrações foi mantido quase sem alterações — mas tudo foi feito num recinto deserto, incluindo a pequena procissão das velas.

Fátima foi “deserto escuro” num santuário vazio, em noite de velas sem luz

Durante estes dois dias de celebrações, as comparações com a situação de há cem anos foram muitas e inevitáveis. Afinal, o fenómeno de Fátima surgiu no meio da angústia e da incerteza — não apenas da pandemia, mas sobretudo da guerra que se aproximava — e na resposta a essas inquietações humanas que assenta toda a mensagem de Fátima. Cem anos depois, a exposição que assinalava o centenário da escultura de Nossa Senhora acabou por ter de ser encerrada, mas o centenário da morte de Jacinta Marto vítima da pandemia do início do século passado (assinalado em fevereiro) serviu de mote à mensagem da Igreja Católica a meio de uma pandemia de alcance global.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“É uma situação dramática e trágica, sem precedentes, que nos convida a refletir sobre a vida e, em primeiro lugar, a ir ao essencial, que muitas vezes esquecemos quando a vida corre bem. Põe a nu e revela a vulnerabilidade e a fragilidade da nossa condição humana. Às vezes, parecemos tão tremendamente fortes e somos tão tremendamente frágeis, vulneráveis”, disse esta quarta-feira o cardeal Marto, perante um santuário despido, dirigindo-se sobretudo aos peregrinos que se viram obrigados a ficar em casa e a seguir as celebrações pela televisão.

E essa vulnerabilidade serve para unir a humanidade, acrescentou o cardeal, “porque o vírus ultrapassa todas as barreiras geográficas e todas as condições sociais, económicas, hierárquicas: ricos e pobres, grandes e pequenos, letrados ou iletrados, ninguém está imune”.

"[A pandemia] põe a nu e revela a vulnerabilidade e a fragilidade da nossa condição humana. Às vezes, parecemos tão tremendamente fortes e somos tão tremendamente frágeis, vulneráveis"
D. António Marto, bispo de Leiria-Fátima

Foi também essa a mensagem que o Papa Francisco enviou aos peregrinos de Fátima que tiveram de ficar em casa, num pequeno texto que foi lido pelo cardeal no fim das celebrações. “Hoje conseguimos, através apenas da alma e do coração, fazer a ligação à Virgem Maria; e somos limitados! Tão limitados, tão pequeninos que um inesperado vírus pôde facilmente transtornar tudo e todos”, disse o Papa Francisco aos peregrinos, a quem pediu que rezassem pelas vítimas e pelos cuidadores.

No centro da celebração da manhã de dia 13 esteve uma homenagem, simbólica, aos profissionais de saúde, cuidadores e elementos das forças de segurança — os que estão na linha da frente do combate à pandemia da Covid-19. Ao lado da estátua centenária de Nossa Senhora de Fátima, seguiram na manhã desta quarta-feira um grupo de pessoas convidadas pelo santuário para representar aquelas profissões e receberem o agradecimento particular do cardeal D. António Marto.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Do pequeno grupo fizeram parte dois enfermeiros e dois médicos (incluindo a irmã Ângela Coelho, freira, médica e postuladora da causa de canonização dos pastorinhos de Fátima, e funcionários do posto de socorros do Santuário de Fátima), dois assistentes operacionais do hospital de Leiria, dois elementos da corporação de bombeiros voluntários de Fátima em representação da Proteção Civil, e ainda dois responsáveis pelo lar de idosos de Santa Beatriz, em Fátima, onde se chegaram a registar casos de Covid-19.

Durante a celebração, essas pessoas sentaram-se na fila da frente do recinto, em cadeiras de plástico mantidas a uma grande distância umas das outras, para garantir o distanciamento necessário. Puderam receber a comunhão — entregue na mão, por um sacerdote de máscara — e testemunhar o momento mais marcante de toda a peregrinação: a procissão do adeus num santuário vazio.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Noutros anos, o recinto de Fátima encher-se-ia de lenços brancos, ao som de cânticos de “Ó Fátima, adeus!”, enquanto a estátua esculpida há cem anos por José Ferreira Thedim cumpriria mais um dos incontáveis percursos que faz entre a capelinha das aparições e o altar central. Desta vez, à falta de peregrinos, o santuário pediu a vinte funcionários que transportassem as bandeiras dos países que habitualmente mais peregrinos trazem a Fátima, como a Polónia, a Itália ou os Estados Unidos da América.

O coro cantou o mesmo cântico e a procissão fez o percurso de sempre. Mas, desta vez, o mar de lenços brancos foi apenas o manto de asfalto que cobre o piso do santuário. Alguns funcionários do santuário, à falta de peregrinos, ainda ensaiaram um adeus, recorrendo às máscaras brancas que retiraram no momento da procissão final. Antes do encerramento da celebração, ouviu-se a promessa a partir do altar: o santuário vai reabrir aos peregrinos e as multidões vão regressar assim que possível. Na terça-feira, o cardeal Marto já tinha manifestado a esperança de que a próxima grande peregrinação — a de agosto — pudesse contar com a presença física dos peregrinos.

O apelo a um “impulso de solidariedade” para recuperar a economia

Depois de o arranque das celebrações da noite de 12 de maio ter ficado marcado pela tentativa de invasão do recinto do santuário por parte de duas pessoas que furaram as barreiras de segurança, a missa da manhã de 13 de maio decorreu de forma tranquila: nem mesmo no exterior do recinto, onde na noite anterior se tinham acumulado largas dezenas de peregrinos a rezar com velas acesas, se verificaram grandes ajuntamentos — contavam-se pelos dedos das mãos aqueles que se tentaram aproximar das grades e acompanharam a celebração à distância.

Foi essencialmente para quem acompanhou a missa à distância que o cardeal D. António Marto, bispo de Leiria-Fátima (a quem coube a decisão de não acolher peregrinos no santuário desta vez), falou, para refletir não apenas na fragilidade humana evidenciada pela pandemia, mas sobretudo na necessidade de levar a cabo uma recuperação económica justa e solidária.

"Já está a gerar uma pandemia mais dolorosa, a da extensão da pobreza, da fome e da exclusão social, agravada pela cultura da indiferença. O vírus da indiferença só é derrotado com os anticorpos da compaixão e da solidariedade"
D. António Marto, bispo de Leiria-Fátima

“A pandemia, com a longa interrupção da vida normal, traz terríveis consequências económicas, sociais e laborais. Já está a gerar uma pandemia mais dolorosa, a da extensão da pobreza, da fome e da exclusão social, agravada pela cultura da indiferença. O vírus da indiferença só é derrotado com os anticorpos da compaixão e da solidariedade”, disse o cardeal. “Como cristãos não podemos ficar indiferentes”, acrescentou.

A crise está já a sentir-se na própria Igreja, sublinhou D. António Marto: “É uma situação que já bate à porta das Cáritas diocesanas e de várias paróquias e soa a sinal de grito de alarme”. “Mas, como lembra o Papa Francisco, é necessário também um impulso de solidariedade que oriente uma resposta mundial perante a anunciada quebra do nosso sistema económico e social.”

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Ao lado do cardeal-patriarca de Lisboa e dos arcebispos de Braga e Évora (os únicos bispos presentes, em representação de todas as dioceses do país), D. António Marto rejeitou a ideia de que a peregrinação tenha sido “triste por se realizar com o recinto fechado e porque lhe faltam as grandes multidões e o colorido dos anos anteriores”.

“Pela primeira vez na história, desde 1917, neste grande dia 13 de maio, o teu povo amado, Senhora, vindo dos mais diversos ângulos do mundo não pode estar aqui, em multidão, impedido pelos riscos da saúde pública. De repente, algo que nem sequer podíamos imaginar confina-nos nas nossas casas e priva-nos dos momentos mais desejados e afetuosos da vida”, disse o cardeal. “Neste sentido, talvez estejamos todos a aprender como é uma peregrinação em estado puro, o peregrinar com o coração, a peregrinação interior no percurso mais íntimo da nossa vida, com a companhia espiritual da mãe celeste, que leva cada um a encontrar-se com Deus santo e misericordioso.”

[Mensagem do Papa para Fátima. “Somos tão pequenos que um inesperado vírus transtornou tudo e todos”:]

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