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Dez dias depois de ter ficado fechada no quarto por ter testado positivo, Maria, de 13 anos, desce as escadas do prédio até ao hall. Fato de treino, cabelo desalinhado e de máscara, quer mostrar aos dois polícias que lhe tocaram à campainha que já está bem. E livre. Ainda assim, conta, ela e o pai, que ficou confinado no quarto ao lado, continuam a usar máscara em casa para garantirem que a mãe e o irmão mais novo não apanham Covid-19.
Maria foi um dos dez nomes entregues naquele dia a dois polícias da Esquadra da PSP da Penha de França, em Lisboa. Desde março que os agentes Cansado, de 44 anos, e Araújo, de 33, percorrem num carro descaracterizado as ruas de Lisboa com uma lista de nomes e números de telefone nas mãos. Uma lista que chega diariamente da Direção Geral de Saúde aos serviços da Divisão de Investigação Criminal da PSP com todos os nomes dos doentes infetados pelo novo coronavírus ou que, por contacto direto com eles, são obrigados a fazer isolamento profilático e a manterem-se em casa.
Maria diz que é a segunda vez que a polícia a contacta. Na primeira foi por telefone, ligaram para a mãe. “Perguntaram se eu estava em casa, ela disse que sim e confiaram”, conta à frente das vizinhas que entretanto vão chegando das compras, de máscara, e que ficam curiosas com a presença dos dois polícias à civil, apenas identificados pelos coletes. O agente Cansado, mais falador, explica que este controlo tem mesmo que se basear na regra da confiança, porque a ideia é também eles não se colocarem em perigo. Por isso, a cada morada, tocam à campainha, se não atenderem telefonam. E depois pedem que a pessoa, se estiver em condições para isso, venha à janela mostrar-se. Nenhum dos agentes, nem Cansado nem Araújo, tiveram ainda de fazer teste à Covid-19, nem conhecem nenhum caso positivo na esquadra onde trabalham.
“Nós tentamos, para dar algum grau de fiabilidade, que a pessoa venha à janela. Tentamos. Nem sempre é possível. Também fazemos fé porque o agregado familiar tem todo o interesse. Tentamos privilegiar o contacto visual, não o contacto direto, mas o contacto visual. Nem sempre é possível”, como viria a explicar depois, já na esquadra, o comissário André Teixeira ao Observador.
Fechada num quarto e a falar com os seus familiares de casa por videoconferência
Maria não foi à janela porque já passaram dez dias e teve alta, por isso pode descer as escadas e explicar ao Observador como foi o primeiro dos dez dias fechada num dos quartos da sua casa. Recorda que um dia o pai chegou do trabalho e anunciou que tinha uma colega doente. Não passou muito até sentir aquilo que parecia o início de uma gripe. Na altura a mãe até desvalorizou, pensou que fosse uma questão “psicológica”.
Das autoridades de saúde chegou, então, a ordem para que o pai fosse testado, porque tinha contactado com a colega. Ele sentia umas leves dores de garganta. Nessa noite, por precaução, dormiu logo sozinho. A Maria também. A mãe dormiu com o irmão mais novo no quarto dele. Quando chegaram os resultados do pai ele estava positivo, por isso decidiram testar Maria. “Também estava positiva. A minha mãe ligou para a escola a informar e soube que, afinal, eu não tinha sido o primeiro caso da escola. Mas ninguém tinha dito nada”, conta Maria, num discurso que a afasta da idade que tem.
A turma de Maria, do 8.º ano, foi toda mandada para casa, mas só uma colega que apresentou sintomas foi testada. O resultado foi negativo. Durante os 10 dias em isolamento, no entanto, Maria manteve as aulas à distância. E os muito trabalhos que tinha para fazer mantiveram-na ocupada. “A minha mãe trazia a comida num tabuleiro e deixava à minha porta. Outro à porta do meu pai, que também continuou a tratar de e-mails do trabalho”. Para comunicarem uns com os outros dentro de casa faziam vídeochamadas. “Só tivemos sintomas nos primeiros dias”, diz.
Há idosos que saem para ir às compras porque estão sozinhos
Maria conta o que viveu ao lado dos vizinhos e da funcionária que faz a limpeza do prédio. Esta estava à porta, sem máscara, quando os dois polícias chegaram. “Tem que por a máscara minha senhora”, alertou-a o agente Cansado. O mesmo alerta teve que ser dado a uma idosa que, entretanto, passou na rua à porta do prédio para a sua caminhada diária. “Mas vai autuar-me?”, respondeu assustada, enquanto segurava duas bengalas, uma de cada cor. “Não, mas prometa-me que da próxima vez se protege”, responde-lhe o polícia.
Das centenas de nomes que já tiveram que fiscalizar, os dois agentes confessam que as únicas situações de desrespeito com que depararam foram com idosos. Mas perceberam que aconteceu por falta de alternativa. “Apanhamos alguns a saírem de casa para irem ao mercado, porque não tinham ninguém que lhes fizesse as compras”, conta o agente Cansado.
Estes casos, segundo o comissário André Teixeira, são depois sinalizados junto dos agentes que fazem policiamento de proximidade e dão apoio aos idosos. “Temos que ter capacidade de perceber que se essas pessoas não se sentirem apoiadas pelas instituições, não têm alternativa”, diz o oficial. “Já tivemos agentes que perante estes episódios vão fazer as compras aos idosos”.
Por outro lado, e como os polícias da investigação criminal trabalham à civil, por vezes os mais idosos ficam confusos. “Notamos alguma resistência para abrirem a porta. E ainda bem que o fazem! Desconfiam porque não sabem que a polícia também trabalha sem farda. Já aconteceu termos que chamar o carro patrulha para mostrar que efetivamente era a polícia e o que estávamos ali a fazer”.
Há quem não compreenda porque é que a polícia lhes aparece em casa
Idalina (nome fictício) não atende a campainha à primeira. O agente Cansado telefona-lhe e explica-lhe que é da PSP e que está à sua porta para ver se está tudo bem. Ela diz-lhe que sim e ele pede-lhe para ir à janela. É preciso dar a volta ao prédio para encontrarmos Idalina, de robe azul, na sua varanda. Tranquila com a presença policial conta ao Observador, sob pedido para não ser identificada, que o marido está também infetado, mas internado no hospital. Ele soube a 16 de outubro que estava positivo, chegou a ser internado na Unidade de Cuidados Intensivos, mas depois passou para a enfermaria. Ela soube um dia depois que também tinha sido contagiada.
Do segundo andar do prédio, Idalina tem dificuldades em ouvir o que lhe perguntam, mas lá explica que tanto ela como o marido têm outras doenças. Ele diabetes, ela espondilite anquilosante. Ainda assim diz que a Covid-19 não lhe trouxe sintomas piores. “Faço a minha vida normal aqui em casa”. Quando lhe perguntam o que acha de a polícia controlar se está em casa, não hesita em responder: “Acho bem, há ainda muitas pessoas que não perceberam o que isto é”, conta.
Umas não perceberam e outras não partilham da sua opinião. Como um caso ainda vivo na memória do agente Cansado de uma mulher que não conseguiu compreender porque é que a polícia lhe estava a tocar à campainha. Já lhe bastava, alegou, a condição da doença. “Essa senhora foi até indelicada, mas são muito poucos os casos assim”, diz. Ainda puxando da memória, não se lembra de ter tido um caso mais complicado, que necessitasse de chegar a uma detenção pelo crime de desobediência. “Isso nunca aconteceu”, garante.
99% das pessoas cumpre, diz a PSP
Já a memória do comissário, que trabalha na Divisão de Investigação Criminal onde chegam mais histórias, regista um caso. É que, passa a explicar, quando a polícia não encontra o infetado em casa não é logo passado um auto pelo crime de desobediência. “A nossa postura tem sido sempre pedagógica. Mesmo que se encontre uma pessoa em incumprimento, temos uma postura de sensibilização, de alerta. Obviamente que com uma pessoa positiva, temos que ter alguns cuidados. E esperamos que acate as nossas ordens no primeiro contacto”, justifica.
Em 99% dos casos “é pacífico e as pessoas cumprem”. E no caso que se recorda, em que foi “preciso levar a lei ao limite”, não foi contudo preciso usar a força. Nestes casos há um “ato formal de detenção, são-lhe comunicados todos os direitos, todo o formalismo de uma detenção”. No entanto a pessoa fica em casa e será depois notificada pelo tribunal.
Muitas vezes acontece é não estar ninguém em casa e aí é informada a Direção Geral da Saúde. É que muitas vezes estas pessoas não estão em casa porque já tiveram alta. Apesar de o sistema agora estar mais ágil, vezes houve em que as listas chegavam às mãos dos polícias já com uns dias de atraso, e entre a seleção e a visita, os doentes já tinham tido alta. Aconteceu neste dia em que Observador seguiu os passos dos agentes Cansado e Araújo, com B., mas em casa estava o pai para dar essa informação à polícia. “Passaram os dez dias e ele teve alta, já foi trabalhar”, disse pela janela.
Além de listas desatualizadas, há moradas que já não são as mesmas
Outro problema destas listas são, por vezes, as moradas. É que a Direção Geral de Saúde parte do princípio que as pessoas cumprem o isolamento no seu domicílio fiscal, mas há quem tenha uma segunda casa para cumprir o isolamento de forma eficaz. Quando assim é, a policia tem que tentar perceber com familiares ou vizinhos onde eles podem estar, para depois avisar a polícia dessa área. “Envolve aqui um conjunto de ações que quando as pessoas estão em casa é fácil confirmar, quando não estão faz com que o processo seja mais complexo e demore ainda mais”. Por outro lado, há também quem não tenha atualizado a morada no seu cartão de cidadão.
É a vez de um nome feminino com morada perto do Largo da Graça. (Os polícias só têm o nome e o número de telefone, desconhecem a idade da pessoa que vão visitar). Os dois polícias chegam e está uma vizinha do prédio a sair que não contém a curiosidade. “Polícia para o 2.º frente? Mas o que aconteceu?”, atira à procura de uma resposta. Desta vez é o agente Araújo que responde. Mais calado, com um sotaque do Rio de Janeiro, mas de quem já vive há 18 anos em Portugal, Araújo responde que a polícia não vai só à casa das pessoas “quando acontece alguma coisa mal”.
Na rua passa um grupo de funcionários da junta de freguesia. “Estão a fazer o trabalho deles, a ver se está tudo bem com os idosos”. Os polícias nada dizem, é necessário manter a discrição, por isso nunca usam a palavra Covid. Do segundo andar ninguém responde. À segunda tentativa atendem o telefone. “Esse é o nome da minha filha”, explica a senhora. A menina tem dez anos, ficou infetada na escola onde uma colega também testou positiva. Ninguém mais em casa ficou contagiado. A polícia pede-lhe que vá à janela, mas ninguém aparece. Acaba por perceber que afinal ela já não vive ali, aquela era a morada que tinha antes e que não chegou a atualizar.
“O Comando Metropolitano de Lisboa atribuiu às Esquadras de Investigação Criminal a missão de fiscalizar se as pessoas positivas para a Covid-19 estão a cumprir o isolamento. Acredito que foi por termos acesso às identificações das pessoas, às moradas, aos contactos telefónicos. Depois porque também importa preservar a divulgação de que elas são positivas” explica o comissário.
O casal francês que estava positivo e desertou de uma pousada
Algumas destas listagens chegam a trazer nomes de turistas que descobrem estar infetados em Portugal e que acabam a fazer isolamento em unidades hoteleiras previamente definidas. Num dia em que não há nenhum nome na lista, um telefonema para a esquadra dá contra de uma situação de incumprimento. Um casal francês, ela de 30 anos, ele de 33, estavam isolados na Pousada da Juventude da Rua Andrade Corvo, em Lisboa, quando pela manhã os funcionários perceberam que se tinham ausentado. Nesse telefonema explicavam que ela estava ali desde o dia 22 de outubro, sob obrigação de cumprir 10 dias de isolamento, ele saiu do hospital um dia antes com a indicação de ali permanecer 20 dias.
À polícia, os funcionários indicaram ainda que os dois turistas teriam um voo de regresso a França agendado para esse dia. A PSP informou a Divisão de Segurança Aeroportuária que concluiu que os dois não embarcaram. “Não foram localizados, se calhar tentaram regressar ao seu país por via terrestre”, adiantou, depois, ao Observador fonte policial.
A nível nacional, a PSP fiscaliza cerca de duas mil pessoas confinadas por dia.