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Se os dados ganharam a expressão de ‘novo petróleo’, a inteligência artificial (IA) bem pode ser a próxima ‘corrida ao ouro’. O tiro de partida foi dado há já alguns anos, mas o lançamento do ChatGPT, pelas mãos da OpenAI, imprimiu velocidade a uma prova com contornos de maratona. Há muito que se falava nas potencialidades da IA, mas as atenções viraram-se para uma vertente em particular, a generativa, que consegue criar um leque alargado de dados, como imagens, vídeos, áudio, texto ou até modelos 3D. E foi tornada acessível ao público.
O ChatGPT enquadra-se nessa categoria. A OpenAI não foi a primeira a trabalhar num grande modelo de linguagem (large language model, LLM, em inglês), mas foi quem conseguiu pôr milhões de pessoas a interagir com um modelo de IA da noite para o dia. É o chamado “momento iPhone” desta tecnologia – quando algo se torna tão familiar e de uso facilitado que é facilmente reconhecido pela generalidade das pessoas. A empresa de Sam Altman, que tem na Microsoft um parceiro e investidor de peso, passou a estar nas bocas do mundo e também a ter um alvo nas costas. A Google, que trabalha há anos na área da IA, teve de responder rapidamente ao desafio e apresentou um rival para o ChatGPT, o Bard.
A corrida para ter um rival robusto para tentar ofuscar a criação da OpenAI está longe de ser um exclusivo de Silicon Valley. E, noutros pontos do mundo, também há gigantes com acesso a muitos dados que não querem baixar os braços nesta competição.
Os anúncios têm-se sucedido, vindos de empresas chinesas, da Alibaba à Baidu, o que adiciona uma camada de complexidade geopolítica à questão. Esta semana, foi a gigante russa Yandex a partilhar mais informação sobre o seu modelo de IA. Num momento em que há uma vontade crescente de regular a IA e o debate sobre as implicações sociais desta tecnologia cresce, o que estão a preparar as gigantes fora do mercado ocidental?
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Empresas chinesas querem ganhar terreno na IA generativa
A inteligência artificial não é propriamente um tema novo num mercado com a dimensão da China – mas a IA generativa, como o ChatGPT, que consegue gerar texto a partir de pedidos simples, é outro caso. E, a partir do momento em que foi revelado ao público o ChatGPT e os números de utilizadores começaram a subir – só em dois meses conquistou 100 milhões de utilizadores mensais ativos – houve quem tirasse notas.
O ChatGPT está inacessível em países como a China e Rússia, mas também no Irão e em algumas partes de África. Na China, o serviço está indisponível por decisão da OpenAI. À Reuters, a empresa explicou que “as condições de certos países tornam difícil ou impossível estar disponível de uma forma consistente com a missão” da companhia. Mesmo assim, continua acessível através de VPN (virtual private network) e tornou-se num inevitável tema de conversa, à semelhança do que aconteceu noutros pontos do mundo. Na China, as gigantes tecnológicas não tardaram a responder mas, até ao momento, não há ainda um serviço rival que se tenha aproximado da atenção internacional dada à OpenAI.
“Infelizmente, nesta área da IA generativa, as tecnológicas chinesas não estão tão competitivas como o ChatGPT ou os serviços de outras empresas norte-americanas e europeias”, reconhece You Chuanman, diretor do Centro para Regulação e Governança Global, da Chinese University of Hong Kong. Em conversa com o Observador a partir de Shenzhen, a capital de “hardware” do mundo e uma cidade com mais de 17 milhões de habitantes, nota, ainda assim, que há vontade de competir. “Tem havido um enorme investimento no Ocidente desde o lançamento” do modelo da OpenAI. Na China é o mesmo”, diz. “Ainda há muito dinheiro a ir para as empresas na área da IA”, notando que “parece haver um apoio do capital ilimitado para a inovação”.
Há tecnológicas chinesas que poderão estar numa posição mais vantajosa. “No mercado chinês, não ficaria surpreendido de ver empresas como a Baidu ou a Alibaba a acompanhar [a OpenAI]”, exemplifica. “Não diria igualar ou ultrapassar o ChatGPT, mas diria que devem conseguir acompanhar.”
O primeiro colosso a reagir ao ChatGPT foi a Baidu. A gigante de pesquisa anunciou a 16 de março a versão de teste do Ernie Bot, a sua resposta ao Chat GPT, poucos dias após a Google anunciar uma série de ferramentas com IA. O mercado antecipava com expectativa as novidades saídas do laboratório da Baidu, mas em troca recebeu demonstrações gravadas previamente e o anúncio de uma lista de espera para poder testar o chatbot.
Embora o Ernie tenha sido anunciado como capaz de fazer cálculos matemáticos (um ponto onde o ChatGPT tem algumas fragilidades), falar dialetos em chinês ou gerar vídeos e imagens a pedido, as ações da empresa reagiram em baixa ao anúncio, fechando o dia a cair cerca de 6%. Num só dia, a Baidu perdeu 3 mil milhões de dólares (2,75 mil milhões de euros) em valor de mercado.
Os analistas deixaram críticas à apresentação, dizendo que “parecia um monólogo” e também à “ausência de uma data de lançamento”, notava Kai Wang, analista da Morningstar, citado pela Reuters.
Mas, gradualmente, a Baidu foi revelando mais informação sobre o Ernie Bot e alargando a lista de espera para o modelo. Esta semana, anunciou que a versão mais recente do seu modelo de IA, Ernie 3.5 e que faz funcionar o Ernie Bot, ultrapassou o “ChatGPT em vários critérios” e que bateu “o GPT-4 [modelo mais avançado da OpenAI] em várias competências em chinês”.
A resposta da Alibaba, outra das gigantes tecnológicas da China, à OpenAI não tardou. Em abril, a empresa revelou o seu chatbot à la ChatGPT, o Tongyu Qianwen, que pode ser traduzido para algo como procurar uma resposta através de mil perguntas. “Estamos num divisor de águas na tecnologia, que é impulsionado pela IA generativa e pela computação cloud”, explicou Daniel Zhang, então CEO da empresa.
O chatbot da Alibaba é capaz de compreender inglês e chinês e, no momento do anúncio, foi revelado que seria integrado em vários negócios da Alibaba, incluindo na divisão de cloud. Aliás, os primeiros a ter acesso ao chatbot foram os clientes desta área, com a possibilidade de testar o chatbot para desenvolver novas ferramentas.
No início de junho, a Alibaba anunciou que ia integrar o seu LLM num assistente digital com IA, chamado Tongyi Tingwu. Começou a disponibilizá-lo ao público, integrado no serviço empresarial DingTalk, mas já com mais alguns truques, como a capacidade para analisar conteúdo multimédia e sumarizar em texto a informação de vídeos ou ficheiros áudio.
A Tencent, que é conhecida pela aplicação WeChat e que tem uma presença relevante no mundo dos jogos, anunciou logo em fevereiro que tinha criado uma equipa para desenvolver o seu grande modelo de linguagem. Foi revelado que a empresa estava a trabalhar num chatbot chamado Hunyuan, mas que continua sem uma data de lançamento.
No entanto, em junho, anunciou a intenção de disponibilizar grandes modelos de linguagem a clientes empresariais, incluindo ao China Media Group, o grupo de comunicação controlado pelo governo chinês. O anúncio, feito a 19 de junho, falava na disponibilização de modelos de linguagem em formato ‘como serviço’, especialmente direcionado para setores como as finanças, turismo e educação.
Ainda que com menos detalhes, a imprensa internacional também fala de movimentações de outras empresas para trabalhar na área da IA generativa, como a ByteDance, a dona do TikTok, ou a NetEase, que já mostrou intenções de integrar esta tecnologia nos seus videojogos.
A “Google da Rússia” também quer ir a jogo
A Yandex, a gigante russa da internet, tem tido tempos atribulados mas não pôs de lado os planos para competir na IA generativa. A tecnológica foi um dos vários alvos de sanções a empresas russas aplicadas pelo Ocidente na sequência da invasão da Ucrânia. Conhecida na Europa como a “Google da Rússia”, devido ao motor de pesquisa e agregador de notícias, tem sido notícia pelas movimentações para continuar a operar num contexto adverso.
No ano passado, aceitou vender o seu agregador de notícias e a página inicial, a yandex.ru, à rival VK, uma empresa com controlo estatal. A empresa disse que iria abandonar o negócio dos media mas que continuaria a focar-se noutras áreas de tecnologia e serviços, nomeadamente na pesquisa, publicidade e tecnologias empresariais.
“Google da Rússia” vende agregador de notícias e página à rival controlada pelo Estado
Entre os projetos está o desenvolvimento de um grande modelo de linguagem para investigação em IA, que foi disponibilizado ao público na semana passada. No anúncio do YaLM 100B, a Yandex disse esperar que ao “disponibilizar o modelo com uma licença de código aberto que permite uso comercial”, o desenvolvimento de aplicações e serviços de IA se torne mais rápido. Ou seja, através da plataforma GitHub, é possível que este tipo de modelo seja usado por terceiros para desenvolver outras ferramentas de IA generativa. Foi ainda partilhada a vontade de “dar ímpeto ao desenvolvimento de outras redes neuronais generativas”, explicou Petr Popov, o CEO da Yandex Technologies.
A tecnológica russa argumentou que “o YaLM 100B tem 100 mil milhões de parâmetros, mais do que qualquer modelo do género GPT que está disponível em código aberto com licença de uso comercial”.
Na página de informação complementar sobre o modelo, foi explicado que “foram necessários 65 dias para treinar o modelo” recorrendo a um grupo de 800 placas gráficas e ainda “1,7 terabytes [1.700 GB] de textos online, livros e inúmeras outras fontes”.
China quer ganhar terreno, mas há limitações dentro e fora de casa
A China e os Estados Unidos já travam um braço de ferro em várias áreas da tecnologia – há alguns anos que existem sanções aos componentes feitos por empresas norte-americanas que podem chegar às tecnológicas chinesas, por exemplo. Com toda a atenção dada à IA generativa, antecipa-se que esta tecnologia possa rapidamente tornar-se num fator de discórdia numa relação que já é agitada.
“Todos os setores, não só a tecnologia, software ou media, vão ser fortemente afetados pela IA generativa, porque é a tecnologia de uso mais geral que conseguimos imaginar”, contextualiza Anis Lahlou, diretor de investimentos do fundo Aperture European Innovation, numa nota enviada ao Observador.
Dada a relevância desta tecnologia, têm existido movimentações para tentar que o desenvolvimento destes grandes modelos de linguagem seja feito de um forma ética e transparente. Tendo em conta a relação difícil entre o Ocidente e a China, os Estados Unidos têm deixado sinais sobre a intenção de limitar o desenvolvimento de tecnologias relevantes pelo gigante asiático. Na Europa, a Comissão Europeia também já frisou que quer reduzir riscos e dependências de potências estrangeiras na área tecnológica, mencionando justamente a inteligência artificial. No entanto, Bruxelas é menos direta a especificar potências tecnológicas, apresentando intenções “agnósticas a países”.
Comissão Europeia quer reduzir risco de dependência externa em tecnologias prioritárias
Os EUA têm sido claros na vontade de proteger a sua relevância tecnológica. As sanções comerciais que começaram na administração Trump tiveram continuidade com Joe Biden na presidência. As restrições aos semicondutores têm sido uma das facetas mais visíveis, com consequências para o desenvolvimento de IA.
“A tecnologia generativa, os modelos fundacionais, precisam de muita investigação e investimento de capital e tecnologia ‘hardcore’, como os semicondutores”, explica You Chuanman, da Chinese University of Hong Kong. Voltando a reforçar que o tema de capital “não é uma questão relevante” para algumas destas empresas, pelo menos neste momento, a questão dos semicondutores é outra história. “Também é parte da razão que tem levado as empresas chinesas a ficar para trás neste tipo de área da IA”, considera.
O desenvolvimento de soluções de IA requer uma elevada capacidade de processamento de informação. E, para isso, são habitualmente usados os componentes mais avançados. A norte-americana Nvidia tem sido uma das empresas mais beneficiadas por toda a atenção que está a ser dada à investigação na área desde o lançamento do ChatGPT.
Ainda assim, algumas empresas na China encontraram forma de contornar os efeitos das sanções e continuar a trabalhar no desenvolvimento de IA. “Uma grande empresa que produz componentes encontrou uma lacuna para contornar as restrições”, exemplifica Chuanman. O especialista refere-se à Nvidia, que em março anunciou que tinha modificado um dos seus produtos mais avançados, o H100, para conseguir exportar para a China sem infringir as regras dos EUA, com um nome diferente: H800. De acordo com a Reuters, as gigantes Alibaba, Baidu e Tencent tem recorrido a esta versão alternativa.
Além disso, há empresas chinesas a usar componentes mais antigos. “Tentam usar os chips que estão disponíveis e que não estejam abrangidos pelas sanções. Conseguem produzir resultados semelhantes aos chips mais avançados produzidos pelos EUA”, explica You Chuanman.
Mas poderá haver ainda mais restrições à atividade. O Wall Street Journal avançou na semana passada que os Estados Unidos estão a considerar mais restrições às exportações para a China, desta vez focando-se na área dos chips para IA. Segundo a Reuters, as regras mais rígidas poderão ser apresentadas no final de julho.
Dentro de portas, o próprio governo chinês já mostrou a vontade de limitar o desenvolvimento de ferramentas como o ChatGPT. A Administração do Ciberespaço da China, a mão de ferro que já penalizou algumas das gigantes tecnológicas do país com regras rígidas, revelou em abril uma proposta para regular esta área.
As regras têm pontos semelhantes com as do Ocidente, como o apelo à transparência e o respeito pela propriedade intelectual e ética comercial, mas também há grandes diferenças, como a obrigação de o “conteúdo gerado a partir de IA generativa refletir os valores principais do socialismo”. Também estão proibidas ferramentas que possam apelar “à subversão do poder do estado” ou “perturbar a ordem social”.
Ficou ainda claro que as empresas chinesas que queiram trabalhar na área da IA generativa vão ter, mais uma vez, de passar pelo crivo do governo chinês antes de disponibilizarem serviços do género. Nos últimos dois anos, empresas como a Alibaba ou a Tencent tiveram tempos mais complicados com as regras apertadas dos reguladores chineses, mas agora o ambiente é “mais amigável”, diz You Chuanman. Resta saber se se poderá manter.