Foi com surpresa que as várias Ordens Profissionais da área da saúde receberam as propostas de alteração dos respetivos estatutos, apresentadas pelo Governo. O ponto que gerou mais contestação e desagrado foi a intenção do Governo de permitir a qualquer cidadão, mesmo sem formação nem inscrição nas Ordens, a realização de atos que, atualmente, só podem ser exercidos por profissionais comprovadamente habilitados para o efeito e inscritos nas respetivas Ordens.
“É uma desregulação total e uma tentativa de cortar o poder da Ordens”, critica, em declarações ao Observador, o bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas, Miguel Pavão. Ainda assim, depois de um período de troca de impressões com a tutela, as várias Ordens têm a expectativa de que o Governo recue na sua intenção inicial — as versões finais dos documentos referentes a oito destas profissões foram aprovadas no final da semana passada em Conselho de Ministros e ainda não foram enviadas às respetivas Ordens. O Observador contactou por telefone a Presidência do Conselho de Ministros, pedindo o acesso à versão final dos estatutos já aprovados, que saiu da reunião do última quinta-feira, mas a posição do ministério de Mariana Vieira da Silva é a de que só depois de enviados à Assembleia da República esses documentos serão tornados públicos. Mas ainda não há calendário para esse envio para o Parlamento, e também não houve disponibilidade para esclarecer se a norma alvo de maior contestação por parte das várias ordens consta, ou não, da versão final.
No meio deste processo legislativo — e também sem conhecer a versão atual aprovada pelo Governo —, um dos bastonários ouvidos pelo Observador alerta: “Estamos a lidar com a saúde das pessoas, é preciso haver responsabilidade.”
Aquilo que as várias ordens conhecem até agora, e que lhes foi apresentado formalmente, é apenas a proposta inicial do Executivo. E essa, defende o bastonário da Ordem dos Psicólogos, “desregulava a profissão”. “Qualquer pessoa poderia exercer a profissão, sem nenhum requisito prévio”, acrescenta Francisco Miranda Rodrigues, admitindo que “foi com enorme surpresa e estupefação” que a Ordem recebeu a proposta de alteração dos estatutos. Os psicólogos contestaram a alteração proposta pelo Governo no que diz respeito ao acesso à profissão (tal como terão feito várias Ordens envolvidas neste processo — dos Biólogos aos Contabilistas Certificados, Despachantes Oficiais, Fisioterapeutas, Nutricionistas, Psicólogos, Médicos Veterinários e Assistentes Sociais, como reconheceu o secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, André Moz Caldas, no final da semana passada). O bastonário dos Psicólogos, sublinha que, “para avaliar alguém, do ponto de vista da Psicologia, são precisas competências desenvolvidas ao longo de muitos anos”, o que, defende Miranda Rodrigues, só pode ser feito por profissionais.
“Como é possível desproteger assim as pessoas?”, questiona o responsável, adiantando que não foi o Ministério da Saúde, entidade com a qual já tinha existido conversas, a enviar o documento, mas sim a Presidência do Conselho de Ministros e o Ministério dos Assuntos Parlamentares. De meados de abril a meados de maio, durante mais de um mês, as várias Ordens apresentaram os seus contributos ao Ministério da Saúde e, garantem ao Observador vários dos intervenientes nestas negociações, esta questão nunca esteve em equação.
Depois, quando as propostas de revisão dos estatutos foram enviadas às Ordens — uma fase que coube ao Ministério dos Assuntos Parlamentares, que está a coordenar o processo, juntamente com a Presidência do Conselho de Ministros —, os diplomas passavam a incluir, pela primeira vez, a polémica medida de desregulação do acesso às profissões. “Se tal não for clarificado ou restringido, parece resultar da proposta legislativa que qualquer cidadão, sem qualquer formação académica ou profissional ou sequer com obrigação de seguro de responsabilidade civil profissional passa a poder exercer atos de uma profissão regulamentada”, refere o documento da Ordem dos Médicos Dentistas em que é tomada uma posição sobre a versão preliminar dos Estatutos, a que o Observador teve acesso.
A iniciativa de introduzir a norma que liberaliza o acesso às profissões e o seu exercício, assumem os bastonários ouvidos pelo Observador, terá partido, por isso, do núcleo político do Governo, algo que acabou por surpreender as várias classes profissionais, que não esperavam que tal intenção constasse no documento enviado já a meio do mês de maio, e que resultava de um “trabalho intenso” (nas palavras de um dos bastonários) que o Ministério da Saúde e as Ordens fizeram durante várias semanas.
Medida permite acesso a profissões “a qualquer cidadão”
“Recebemos o documento com muita surpresa, continha um conjunto de normas que nunca estiveram em cima da mesa. A mais importante, que pode atentar contra a saúde pública, é a possibilidade de que os atos dos nutricionistas possam ser exercidos por outros, sem estarem inscritos na Ordem”, realça, ao Observador, a bastonária da Ordem dos Nutricionistas, Alexandra Bento. Para a responsável, esta intenção “levanta problemas sérios: faz com que qualquer cidadão possa desempenhar tais atos. É inaceitável”, critica.
O bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas acusa o Governo “de não medir as consequências da falta de controlo sobre as profissões”. E se a intenção do Executivo fosse passar a assumir a regulação, retirando esse poder à Ordens, Miguel Pavão explica por que tal ideia seria inviável. “As Ordens são importantes para o controlo e regulação — o Estado nunca o fará tão bem porque é lento e inoperacional”, diz.
Entretanto, no último Conselho de Ministros, que decorreu na quinta-feira, o Governo aprovou então os novos estatutos de oito ordens profissionais (Biólogos, Contabilistas Certificados, Despachantes Oficiais, Fisioterapeutas, Nutricionistas, Psicólogos, Médicos Veterinários e Assistentes Sociais), remetendo para “as próximas semanas” a aprovação dos restantes.
O Executivo garante que se aproximou das reivindicações das Ordens, nomeadamente no que diz respeito aos atos próprios, mas a verdade é que as Ordens ainda não tiveram acesso à versão final dos estatutos. “A perceção que temos é a de que houve recetividade para alterar a norma. Temos expectativa de que seja vertida no documento”, sublinha a bastonária dos Nutricionistas, Alexandra Bento. Também o bastonário dos Psicólogos, Francisco Miranda Rodrigues, tem a mesma perceção e confessa-se “expectante” para conhecer a versão final dos estatutos.
Também os fisioterapeutas esperam que tenham sido eliminados, na redação final, “os pressupostos que poderão levar à interpretação de os atos próprios dos fisioterapeutas poderem vir a ser exercidos por quem não é fisioterapeuta”.
Mas qual seria a intenção do Governo em desregular o acesso às profissões, esvaziando, de certa forma, as competências das Ordens Profissionais? “Há Ordens que são muito incómodas para o poder político”, diz, ao Observador, a bastonária dos Enfermeiros, entidade que não esteve no primeiro grupo de Ordens Profissionais a verem os estatutos aprovados e, por isso, ainda não recebeu a proposta do Executivo.
Membros externos nas Ordens? “O Governo quer fim da independência”, acusa bastonária dos Enfermeiros
No entanto, Ana Rita Cavaco critica outra alteração decorrente da nova Lei-Quadro das Ordens Profissionais, que prevê a criação de um órgão de supervisão independente, com membros externos às Ordens (independentes, na ótica do Governo), pessoas que, diz, poderão influenciar questões disciplinares. A Ordem dos Enfermeiros mostrou a sua oposição à ideia mas o Governo, lamenta a responsável, vai mesmo avançar com a alteração, que teve o respaldo do Tribunal Constitucional. “O Governo quer que as Ordens deixem de ser independentes”, acusa Ana Rita Cavaco.
“Este processo começa com a narrativa de haver menos dificuldades no acesso a profissões reguladas”, lembra Francisco Miranda Rodrigues. É, aliás, já antiga a intenção de alterar a orgânica e o funcionamento das Ordens Profissionais, nomeadamente no que diz respeito aos requisitos exigidos para o exercício das profissões. “Não é um ataque às Ordens, é um ataque a obstáculos que têm vindo a ser colocados à liberdade de exercício destas profissões”, defendia, há cerca de um ano e meio, ao Expresso, o então secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro, Tiago Antunes, quando o Governo levou à Assembleia da República a alteração da Lei das Ordens, apoiando-se nas “sucessivas recomendações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e da Autoridade da Concorrência”.
Nessa altura, o secretário de Estado argumentava que algumas alterações eram impostas por Bruxelas e que, não sendo concretizadas, poderiam comprometer o acesso de Portugal a uma parte dos fundos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Já em 2022, o líder parlamentar do Partido Socialista, Eurico Brilhante Dias, referia à TSF, a propósito das críticas feitas por várias Ordens à nova lei-quadro, que seria preciso “combater o vírus de corporativismo que muitas vezes se instala na sociedade portuguesa”.
De imediato, o presidente do Conselho Nacional das Ordens Profissionais, António Mendonça, reagiu com a garantia de que as Ordens não eram um “entrave à entrada nas profissões”.
As alterações propostas pelo Governo não se restringiam ao setor da Saúde. Também os contabilistas certificados, por exemplo, já contestaram a desregulação da profissão. A bastonária, Paula Franco, acusou o Governo de querer acabar com a profissão ao propor que qualquer pessoa possa submeter as declarações fiscais, deixando de ser necessária a assinatura de um contabilista certificado nas demonstrações financeiras e declarações fiscais “que possuam ou que devam possuir contabilidade organizada”.
Entre as alterações propostas, e depois aprovadas, na nova lei-quadro das Ordens Profissionais estavam a introdução de estágios profissionais remunerados. Estágios que passam a ter uma duração máxima de 12 meses, podendo prolongar-se para lá desse período temporal apenas em casos excecionais. O Governo argumenta que se trata de alterações que pretendem impedir os estágios não remunerados, que são comuns, e os estágios muito longos (que são um “calvário”, dizia Tiago Antunes), acabando com as restrições de acesso ao mercado de trabalho, que afetam, segundo o Governo, sobretudo os profissionais mais jovens.
Outra das alterações, já referida, é a criação dos órgãos de supervisão independentes em cada uma das Ordens. O Governo argumenta que a obrigação de incluir membros independentes nos órgãos internos das Ordens já existia, mas não era cumprida, pelo que o Governo se viu obrigado a introduzi-la na nova lei da Ordens. Já as Ordens falam em “ ingerência de poder”, nas palavras da bastonária dos Enfermeiros. Na nova lei, está previsto que a avaliação final do estágio profissional seja feita por um júri que inclua elementos externos à atividade profissional em causa. Também o órgão disciplinar terá de contar com elementos externos à profissão. Isto para além da obrigatoriedade de criar o já referido órgão de supervisão.
Mas não é apenas a desregulação ao acesso às profissões que as Ordens contestam. Criticam também o prazo de consulta que lhes foi dado pelo Governo para avaliar as propostas de alteração dos estatutos, fase posterior à aprovação da lei das Ordens. Segundo apurou o Observador, as versões iniciais da proposta, que continham a polémica desregulação do acesso à profissão, chegaram às várias Ordens a 18 de maio, sendo que estas entidades tinham apenas cinco dias, até 23 de maio, para se pronunciarem. “Os contributos foram pedidos sempre com timings muito apertados”, sublinha a bastonária dos Nutricionistas, Alexandra Bento. “Tudo isto tem sido feito de forma muito acelerada”, defende também o bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas, Miguel Pavão.