Foram vários dias de suspense mas, afinal, fica tudo na mesma, pelo menos a julgar pela vontade dos especialistas. Os políticos foram esta sexta-feira ao Infarmed para ouvir os peritos recomendar que a matriz de risco não seja alterada e o choque entre critérios — os políticos e os sanitários — voltou a sentir-se, particularmente na intervenção de Marcelo Rebelo de Sousa, descrita como “assertiva” ou “dura” por várias fontes presentes no encontro.
No final da reunião, o Presidente não hesitou em mostrar fortes reservas sobre as recomendações de cautela dos especialistas, numa altura em que a vacinação já surte efeitos visíveis e por isso, no entender de Marcelo, já deveria haver condições para a economia poder recuperar terreno. Mas, ao que o Observador apurou, os especialistas mantiveram-se firmes e aconselharam maioritariamente prudência, atentos ainda aos fatores de risco que persistem, das novas variantes do vírus às dúvidas sobre quanto dura a imunização garantida pelas vacinas. Já o primeiro-ministro não se colocou de nenhum dos lados da barricada, não tendo, desta vez, colocado questões nem feito comentários durante toda a sessão.
As reservas do presidente ficaram claras durante a intervenção em que, depois de agradecer aos especialistas presentes na reunião, expôs as suas dúvidas. E não foram poucas. Marcelo estava, sobretudo, interessado em perceber como é que não houve durante a reunião qualquer explicação sobre se existe ou não correlação entre o aumento de casos e a pressão sobre o SNS — isto porque neste momento os casos aumentam sobretudo entre os mais jovens, que inspiram menos cuidados, até porque os mais velhos estão vacinados. Preocupação nº1: explicar esta mudança aos portugueses, uma vez que foi o próprio Marcelo — como fez questão de frisar — que sempre usou o critério da pressão sobre a Saúde para pedir sacrifícios aos portugueses, um pedido que, com as vacinas em jogo, perde sentido.
Preocupação nº2: o presidente já tinha defendido durante a semana que, havendo dados novos relevantes — o avanço do processo de vacinação e a proteção quase completa dos mais velhos — a matriz que avalia o risco da pandemia deveria ser alterada para responder a estes novos critérios. Desta vez foi mais longe e, sempre insistindo que está sintonizado com a “perceção pública”, explicou: é preciso ter em conta a “pobreza, insolvência, falência” e outras situações que “atingem os direitos fundamentais das pessoas” e, numa situação em que a situação sanitária parece salvaguardada, é “menos evidente” para os portugueses a lógica dos critérios adotados”.
Ou seja, como o Presidente defendia esta semana, “a vida tem de continuar” — e, como frisou no Infarmed, os conselhos ali são tomados tendo em vista sobretudo critérios sanitários, mas em última análise as decisões são políticas. Por isso, é aos decisores políticos — “sobretudo ao Governo” — que cabe a preocupação com a “legitimação” dessas decisões aos olhos da população.
Já à porta fechada, conforme o Observador apurou, os peritos responderam a Marcelo (e ao CDS, que expressou preocupações semelhantes) e mantiveram as suas posições: o vice-almirante Gouveia e Melo, responsável pela vacinação, lembrou que é por causa disso mesmo que há uma tentativa de acelerar o processo de imunização, esperando que em agosto — data para atingir a meta dos 70% de adultos vacinados — a economia possa estar liberta; Raquel Duarte, responsável pelos esboços do plano de desconfinamento, frisou que a sua proposta também tem em conta as preocupações com economia e até com a saúde mental da população, mas que não se devem ignorar as ameaças existentes.
Andreia Leite, que na reunião foi a responsável por defender a continuidade da mesma matriz de risco, lembrou esses perigos, como os ciclos de vacinação ainda por completar, as sequelas que a Covid-19 pode trazer mesmo a pessoas mais novas ou a falta de certezas sobre o tempo que a imunização trazida pela vacina dura. Genericamente, os peritos pareceram, assim, mais cautelosos e interessados em “ganhar tempo”.
Listas para vacinas estão desatualizadas e incluem mortos
A vacinação continua, assim, a ser a “melhor arma” do país, como frisou Marta Temido à saída da reunião. Mas foi também sobre esse processo que os responsáveis presentes no Infarmed colocaram algumas questões, incluindo sobre as dificuldades apontadas pelo vice-almirante Gouveia e Melo: quanto mais a vacinação avança em grupos e faixas etárias específicas, mais difícil é encontrar as pessoas que faltam.
À porta fechada, o coordenador task-force assumiu que um dos problemas é a falta de atualização das listas, dado que continuam a ser sinalizadas pessoas que já morreram ou que trocaram de morada. Outra questão, colocada por Armindo Monteiro, da Confederação Empresarial de Portugal, são as queixas de pessoas mais velhas que não têm cartão de cidadão mas sim bilhete de identidade, pelo que não têm número de utente para o SNS — mas Gouveia e Melo esclareceu que podem pedir um provisório.
Vírus vai “viver entre nós”
Outra das novidades que saíram da reunião teve a ver com os dados que indicam que, enquanto a variante britânica parece mais estabilizada em Portugal (caiu dos 90%), a variante indiana representa 4,6% dos casos sequenciados em maio, o que significa que o número real deverá ser “muito maior” e que já deverá haver transmissão comunitária.
Os peritos recomendaram cuidado com as fronteiras, Marcelo relativizou, mas houve sobretudo uma mensagem que os especialistas quiseram passar: é preciso atenção às novas variantes, mas tendo presente que, com o crescente grau de imunização da população, é expectável que o vírus comece a mudar para tentar contornar o ‘obstáculo’ da vacina.
Uma mensagem de cautela sem alarmismos que combina com a intervenção de Henrique Barros, não por acaso uma das que Marcelo elogiou: a doença pode estar a tornar-se endémica, o que significa que, entre vacinação e habituação às medidas de higiene, a população pode estar a habitua-se a conviver com um vírus que chegou para “viver entre nós”.