Enviado especial do Observador, em Tóquio

O The Guardian resumia tudo apenas num título: “A única competição para a imbatível nos Jogos Olímpicos é ela própria”. Chapeau, numa só frase estava tudo dito. Ainda hoje aqueles seguidores mais puros da ginástica (e são mesmo muitos, percebe-se que a bancada de imprensa enche com pessoas que sabem o que estão a ver e dão um valor incalculável ao que têm à frente dos seus olhos) recordam a mítica Nadia Comaneci ou a multimedalhada Larisa Latynina como figuras que deixaram muito mais à modalidade do que os feitos que se podem quantificar mas aquela nota 10 da romena ou as 18 medalhas olímpicas da russa acabam por ser curtas quando colocadas, entre as devidas distâncias, com aqueles 142 centímetros de gente que nos mostrou o que é ser gigante.

Simone Biles tem um sem número de recordes na ginástica mundial e corporiza muito mais do que isso. É um espelho da dedicação, do risco, da grandeza, da perfeição. Por razões que nem ela nem nenhuma das mais de 100 companheiras deveriam algum dia ter conhecido na primeira pessoa, é também um espelho do momento que a ginástica norte-americana tem vivido nos últimos anos desde que o escândalo do médico Larry Nassar estilhaçou os princípios mais básicos que norteiam uma modalidade tão querida no país. A Simone e a tantas outras, quem devia proteger foi fintado ou, no limite, fechou aos olhos. E Simone continuou. Continuou todos os dias a acordar de madrugada para trabalhar e ser melhor do que a melhor que já era. Continuou a privar-se de um sem número de coisas para ser maior do que a maior que já era. Também por isso, estes Jogos seriam sempre diferentes.

A entrada no Ariake Gymnastics Centre provou aquilo que Simone Biles é mas também aquilo que Simone Biles nunca será: mais uma. Não é mais uma, ninguém a considera mais uma. É uma, única, the one. Contudo, este foi o dia em que Simone Biles (e a própria equipa dos EUA) provou que é humana como todos os outros. Aliás, o que faz dela uma extraterrestre resume-se ao que se passou este domingo em Tóquio: mesmo a errar, de forma mais ou menos visível, em todos os pontos de rotação, não falhou nenhuma das finais. Mesmo estando mais tensa e menos sorridente do que é normal, não deixou cair nem um objetivo. No solo, teve uma penalização e foi a segunda melhor, apenas atrás da italiana Vanessa Ferrari. No cavalo, teve uma penalização, conseguiu dar a volta na segunda tentativa e foi a melhor. Nas barras assimétricas, que é tudo menos a sua especialidade, ficou com o décimo lugar mas entrou em oitavo para a final. Na trave, com mais uma saída que foi tudo menos perfeita mas que ainda assim não mereceu penalização, acabou em sétimo e entrou em sexto para a final.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Em resumo, o dia imperfeito valeu-lhe mais do que na qualificação dos Jogos do Rio de Janeiro. É por isso que Simone representa tão bem a perfeição. E é assim que terá de estar no dia da final para voltar a ser Simone.

Entrando no meio das restantes companheiras mas sendo quase a única que se destaca até com uma estatura bem mais pequena do que as companheiras, a norte-americana tem uma série de rituais para descomprimir no momento da apresentação de todas as atletas em cada um dos aparelhos. Roda o pescoço, atira as pernas para a frente como se estivesse a dar um pontapé, estala os dedos. O número 392 é especial mas ao mesmo tempo igual às restantes companheiras (aliás, treinou até em conjunto com a seleção sem fazer uma preparação própria, como tinha acontecido antes), com os treinadores a correrem sempre para os cantos do tapete do solo para garantirem que não há qualquer queda mais abrupta que possa colocar alguma coisa em causa. No entanto, e depois de um trabalho quase irrepreensível, uma quase queda valeu-lhe no mínimo um susto que a fez sair para a zona das cadeiras com olhar meio receoso temendo o que poderia ser descontado. Os telemóveis, esses, nunca desligam. Parece mesmo que há um barulho diferente, um qualquer ruído que se sente quando está em ação.

Jade Carey, que conseguiu então a terceira melhor pontuação no solo, andava à procura da mochila e trocou a seguir algumas palavras com Simone Biles, que já estava na frente do grupo para começar a dar a volta até ao cavalo. Não é propriamente alguém que gosta de ser “servida”, ainda menos funciona como aquelas pessoas a quem fazem as vontades todas, mas era a única que não tinha a sua mochila ao ombro. Alguém levaria, entre os treinadores ou a fisioterapia, até porque os seus olhos já estavam focados no cavalo para esquecer aquele erro. Foi a primeira a chegar ali, foi a primeira a fazer o primeiro de três saltos de aquecimento, foi a primeira a ver o que se passava nas outras posições à volta. Simone estava confiante. Mais uma vez, Simone tinha razões para isso porque basta ser Simone, mesmo que não seja perfeita como Simone é, para ser melhor do que as outras.

Suniesa Lee foi a primeira, seguiu-se Grace McCallum e Jordan Chiles. Simone Biles era a quarta da série, ainda antes de MyKayla Skinner e Jade Carey, e mostrou num único momento como é humana mas ao mesmo tempo não parece ser deste mundo: depois de uma saída após a primeira tentativa onde quase foi para fora do colchão no momento de assentar o segundo pé após o salto, e mesmo perante isso, ficou com o melhor registo porque teve uma penalização de 0.3 mas uma dificuldade (6.000) e uma execução (9.266) que lhe conferiram na mesma esses 14.966. A seguir, a dificuldade baixou ligeiramente (5.800), a execução foi extraordinária (9.600) e essa liderança ficou ainda reforçada, sendo que as duas melhores a seguir seriam exatamente as companheiras de equipa MyKayla Skinner e Jade Carey. Segunda posição, segunda demonstração de superioridade.

Já com a mochila ao ombro desta vez, Simone Biles ficou ainda algum tempo à espera para saltar para as barras assimétricas, esperando a conversar de forma descontraída com as companheiras enquanto eram revistas as notas das atletas dos Países Baixos na trave (só MyKayla Skinner estava um pouco mais à parte). Era aí que o Team USA jogava “em casa”, com vários elementos da delegação sentados nas bancadas com bandeiras, sempre a apoiar a equipa feminina de ginástica. A apoiar a Team USA e a apoiar Simone Biles, claramente uma pequena grande figura que entrou no coração de todos e que, até por tudo o que aconteceu e só recentemente acabou por ser divulgado, é ainda mais protegida por tudo e todos. Após ter aquecido menos em exercício em relação às posições anteriores, fez um compasso de espera antes de entrar em ação e lá voltou a ser Simone Biles.

Enquanto esperava pela nota retirando as ligaduras especiais que protegem os pulsos nas barras assimétricas, vários fotógrafos que estavam nessa posição aproveitavam para dar mais uns passos ao lado para assegurarem mais umas imagens da campeã olímpica. De lado, de cima, de baixo. Por mais que se tenha, todos querem mais. No entanto, esse acabou por ser o resultado mais discreto de todos no cômputo geral, bem atrás da especialista Sunisa Lee, de quatro ginastas russas e de duas chinesas. Seguia-se a trave, a última das paragens. Antes de passar à ação, num compasso de espera pela análise à nota de Sunisa Lee, a americana chegou a bocejar de forma disfarçada. Depois, foi quase perfeita, a dominar a trave como se estivesse no solo e alargasse aquela barra onde colocava os pés. No entanto, e mais uma vez, a saída voltou a sair mal e foi penalizada na nota. O que deu isso? Nada. Vai a todas as finais. É favorita a ganhar em quase todas. Simone Biles teve um dia em que foi apenas mais uma humana mas é também por dias como este que se percebe que não é humana.