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Internato médico fica com vagas por preencher. A nova geração de médicos “não quer ser escravizada” no SNS

São mais exigentes com os seus direitos, querem conciliar vida profissional e familiar e recusam viver dentro do hospital — estes são alguns dos motivos para haver vagas vazias nos internatos médicos.

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Em janeiro, Laura Teixeira viaja para a Alemanha. Não vai sozinha e leva consigo alguns amigos, colegas do curso de Medicina. É lá que, aos 25 anos, vai fazer o seu internato de ginecologia/obstetrícia depois de ter completado o curso em Portugal e de ter rumado do Porto até Faro para fazer o ano de formação geral num hospital público. Isso foi suficiente para perceber que aquilo que queria o Serviço Nacional de Saúde não lhe consegue dar: uma boa carreira associada a uma boa qualidade de vida.

Este ano, pela primeira vez desde que há mais candidatos do que vagas, ficaram por preencher 50 lugares de internato médico — os seis anos de formação num hospital do Serviço Nacional de Saúde que permitem a um médico tornar-se especialista. A maioria dos lugares que ficaram vazios são em Medicina Interna e em Medicina Geral e Familiar. O Hospital de Santa Maria, em Lisboa, foi um dos que não conseguiu cativar jovens médicos para todas as vagas disponíveis. Sobraram-lhe 10 de Medicina Interna.

Laura é uma dessas jovens que disse não a um internato no SNS. Fez a Prova Nacional de Acesso (que lhe dá a nota com que será seriada nas vagas do internato) a que se seguiu o ano de formação geral no Centro Hospitalar Universitário do Algarve. A nota que conseguiu (105) até era suficiente para poder ter alguma escolha entre as vagas disponíveis, mas durante o ano de formação geral, a semente cresceu. Por um lado, falou com colegas que já se tinham mudado para a Alemanha. Por outro, viu em primeira mão como é a vida de um médico interno por aqui. E não gostou.

Federação Nacional dos Médicos aponta dezenas de vagas por preencher no internato médico e diz que situação é preocupante

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“As condições não eram o que eu queria. Há falta de pessoas, os internos fazem muito mais do que as 40 horas semanais, a maior parte delas em horas extras que não são pagas”, conta, lembrando que há ainda aquilo a que os jovens médicos chamam de curriculite. “Para o exame da especialidade, temos de ter artigos publicados, investigação feita, presença em congressos… Entre hospital e currículo são bem mais do que 80 horas semanais”, argumenta a jovem médica.

Com base na Prova Nacional de Acesso, feita sempre em novembro antes do ano de formação geral, os candidatos são seriados. Este ano foram 2.260 para 1.921 vagas, 18 delas cativas para formação de médicos militares, segundo dados do Ministério da Saúde. Em seguida, a escolha começa de cima para baixo. O estudante que tem a seriação mais alta pode escolher de entre todas as vagas. Aquela que ele escolher fica trancada e o segundo classificado já só terá 1.920. E por aí fora. Laura estava em 1.059.º lugar.

“Eu não quero passar os meus próximos seis anos a trabalhar 80 horas por semana. Quero ter vida pessoal e familiar e, no fim da especialidade, terei 31 anos. Vi o que era a vida dos meus colegas em Faro, e vi o que se passa no Hospital de São João, no Porto. É igual. Não quero isso para mim.”
Laura Teixeira, jovem médica que escolheu fazer o internato na Alemanha

As especialidades mais apetecíveis, como cirurgia, dermatologia e urologia desaparecem rapidamente, escolhidas pelos médicos que têm melhor classificação. À medida que as vagas vão desaparecendo, sobram as menos apelativas, como as que implicam maior número de horas de urgência. E, claro, a probabilidade de encontrar a vaga na especialidade que se quer, no hospital que se quer, vai diminuindo.

“Eu sou do Porto e é difícil conseguir ficar no Norte. Se vou acabar no Algarve ou no Alentejo, ou nas ilhas, por que motivo não hei-de ir para a Alemanha?”, questiona. O plano, para já, é fazer lá a especialidade. Depois disso, verá se regressa, ou não.

Segundo os números do Ministério da Saúde, do total de candidatos admitidos, escolheram vaga 1871 médicos internos, 325 não compareceram ao processo de escolhas e 64 desistiram.

No que se refere aos candidatos que faltaram, “32 pretendiam mudar de especialidade ou local de formação, 14 já são médicos especialistas, 115 estão a frequentar o internato de formação geral de 2021, 46 frequentaram em 2020 e 118 concluíram o internato de formação geral em anos transatos”. Destes 325 candidatos que faltaram, 171 realizaram nova prova nacional de acesso à formação geral, que se realizou no passado mês de novembro.

“O Ministério da Saúde procurará sempre garantir que o número de vagas para a formação específica consideradas em cada ano obedece ao princípio de adequação das necessidades do SNS às capacidades formativas”, respondeu, por escrito, o gabinete da ministra Marta Temido, questionado sobre se há soluções pensadas para evitar que a situação deste ano volte a acontecer.

Quanto aos motivos, o ministério considera que a escolha de vaga de especialidade é naturalmente um processo decisivo para os médicos internos, até porque irá ditar o seu futuro por muitos anos, pelo que, não tendo possibilidade de escolher a especialidade que previamente elegeram para ser a sua profissão, alguns optam por não escolher nenhuma vaga e outros, embora escolhendo-a, candidatam-se depois a um novo concurso para mudança de especialidade.

“Isto não significa, naturalmente, que o SNS não seja atrativo ou que condições de internato oferecidas em algumas das unidades de saúde condicionem as escolhas, mas antes que os médicos internos traçam os seus objetivos e, mesmo perante alguns contratempos, não desistem de os procurar atingir. A situação, aliás, não é inédita, tendo já acontecido no passado.”

Posição bem diferente ouve-se do lado dos sindicatos e da Ordem dos Médicos, que consideram estarmos perante uma situação alarmante. “O que estamos a viver merece uma reflexão mais aprofundada. Há uma incapacidade para se reconhecer que há falta de médicos. A realidade quando confrontada com a propaganda ganha sempre”, diz Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos. A solução, para si, é a que já repetiu centenas de vezes: investir no SNS.

A vida dos internos: 70 dias em horas extraordinárias

Bernice tem 823 horas extras acumuladas desde janeiro, Alexandre parou de contar em maio quando chegou às 200 e André tem um número redondo, 900. São todos internos, em diferentes especialidades, e em diferentes anos do internato. Apesar da paixão pela profissão, queixam-se do mesmo: o desrespeito pelos médicos. Os três estão no Santa Maria, em Lisboa, mas sabem que o que ali vivem não será diferente noutros sítios.

Laura Teixeira confirma. “Eu não quero passar os meus próximos seis anos a trabalhar 80 horas por semana. Quero ter vida pessoal e familiar e, no fim da especialidade, terei 31 anos. Vi o que era a vida dos meus colegas em Faro, e vi o que se passa no Hospital de São João, no Porto. É igual. Não quero isso para mim.”

Carlos Mendonça, presidente do Conselho Nacional do Médico Interno

Octavio Passos/OBSERVADOR

Outro detalhe assustava Laura. Quando terminasse o internato, teria de fazer o exame de especialidade, também ele seriado, à milésima. Apesar de não ser possível ser colocada noutra especialidade, poderia ir enviada para qualquer ponta do país, depois de seis anos a criar raízes. Também não estava para isso.

“Com os internos é assim: devem sair às 20h00, saem às 4 da manhã. Não estão escalados no fim de semana, mas falta alguém e são chamados para fazer banco”, conta Laura. Na Alemanha, vai ganhar mais, não leva trabalho para casa, o horário é cumprido e as horas extra são pagas.

Bernice está cansada. Tão cansada que prefere falar pouco. “Os internos servem para tapar buracos. Ponto.”

André fala com mais vivacidade. “Ser interno é ser vítima de um desrespeito completo pelas leis laborais e pelas regras do internato. É cumprir tarefas que não são nossas. É fazer trabalho administrativo. É não ter tempo para fazer investigação porque não nos dão dispensa para fazê-lo porque isso significa que vamos faltar nas escalas.”

O rol de queixas continua. Ser interno, diz, é marcar férias e descobrir que está escalado dois dias de urgência ou estar a acumular funções, em simultâneo em enfermaria e em consulta. As horas não chegam e ou entra muito antes de começar o horário, ou sai muito depois dele terminar. É por isso que já conta 900 horas extraordinárias desde o início do ano — e não é caso único.

“É exigido cada vez mais dos internos, chegamos a ter internos responsáveis por uma urgência com mais de 100 camas e a pessoa mais diferenciada que está ali é um interno do 5.º ano. Isto não devia acontecer”, queixa-se. O problema, diz André, é geral no SNS, mas há unidades que estão piores porque a gestão está a piorar.

O radiologista Carlos Mendonça, médico interno do 3.º ano, confirma alguns destes cenários. “A carga de trabalho na vertente clínica, na generalidade, ultrapassa as 40 horas”, diz o presidente do Conselho Nacional do Médico Interno. “Acresce a carga de trabalho formativa, para publicação, investigação, ida a congressos, e nas 40 horas semanais não está contemplado o tempo para essas vertentes.” É fácil chegar às 80 horas de trabalho semanal.

“A situação dos internos é gritante”, acusa, por seu lado, Jorge Roque da Cunha, líder do Sindicato Independente Médicos. “Muitos deles acumulam centenas de horas extraordinárias num ano. Chegar às 600 horas é habitual, o que, num horário de 40 horas semanais, corresponde a cerca de 70 dias extra de trabalho.”

“Ser interno é ser vítima de um desrespeito completo pelas leis laborais e pelas regras do internato. É cumprir tarefas que não são nossas. É fazer trabalho administrativo. É não ter tempo para fazer investigação porque não nos dão dispensa para fazê-lo porque isso significa que vamos faltar nas escalas.”
André, médico interno no Hospital de Santa Maria, em Lisboa

No grupo de amigos de Alexandre, nove, todos médicos internos, dois estão de baixa e a ponderar mudar de especialidade. “A vida de interno desgasta muito as pessoas, pela carga bruta de trabalho, pela carga emocional e por todo o extra que nos cai em cima”, afirma, recordando que até requisição de transporte de doentes tem de fazer quando há falta de assistentes operacionais.

Isso afeta também o ritmo de trabalho e de atendimento dos doentes. “Se só tenho um assistente operacional a apoiar três médicos, cada um deles em vez de fazer 15 exames vai fazer metade do que poderia ou até menos.”

A fuga do SNS: sem direitos, mais vale ser tarefeiro

“Quando se fala em resiliência, o que se quer dizer é ser-se escravo. E a nova geração não quer ser escravizada no SNS.” As palavras do bastonário da Ordem dos Médicos fazem referência, sem dizer o nome, às da ministra Marta Temido, e que foram muito mal recebidas pela classe. Se for caso disso, estes jovens preferem sair do país, aponta Miguel Guimarães. E Laura Teixeira é disso exemplo.

Emocionada, Marta Temido pede desculpa pelo que diz ser um “mal-entendido” sobre médicos “resilientes”

Não fazer o internato não quer dizer que não possam praticar medicina. Passam a ser os chamados médicos indiferenciados e muitos, acredita o bastonário dos Médicos, acabam a fazer consultas gerais, serviços de urgência no SNS como tarefeiros — onde por menos horas ganham mais do que os 1.200 euros líquidos de um interno  —, enquanto outros poderão dedicar-se à investigação, à gestão, havendo vários caminhos paralelos. “No 6.º ano já há estudantes de Medicina que começam a ver sítios fora do país para ir fazer o internato”, garante o bastonário.

Catarina Dourado, presidente da Associação Nacional de Estudantes de Medicina

FRANCISCO ROMÃO PEREIRA/OBSERVA

É isso mesmo que Laura Teixeira vê quando olha para os seus colegas. “Há tendências a crescer, cada vez conheço mais gente que vai emigrar, ou que vai procurar empregos em empresas farmacêuticas, de software médico ou até mesmo de gestão médica.”

Para Laura, é normal ver os jovens médicos a fugir de um internato em Medicina Interna no Santa Maria. “Sabem que ali há menos qualidade de vida e querem fugir das más condições. Penso que é mesmo uma questão geracional: há mais preocupação das pessoas da minha idade com a qualidade de vida”, sublinha a jovem médica.

Em algumas especialidades, mais de metade dos médicos trabalha no privado. Em radiologia, são quase 60%

Miguel Guimarães tira a estes jovens um raio-x e faz o mesmo diagnóstico: “Esta nova geração tem uma forma diferente de estar na vida e diz ‘não queremos, não vamos’.”

A nova geração de médicos, “extraordinariamente bons”, tem facilidade em ir fazer a especialidade noutro país, diz Roque da Cunha, onde as condições de trabalho serão melhores, até porque estes jovens são mais exigentes e para eles “a vida não se cinge a viver no hospital”, querem ter tempo para a família.

No entretanto, lembra o líder do SIM, podem trabalhar como tarefeiros onde chegam a ganhar 3 vezes mais do que como internos. “Como é que podemos continuar a consentir nisto em vez de mexer na grelha salarial? Há incompetência do Ministério da Saúde em motivar e captar estes jovens.” O futuro, acredita, será a repetição deste ano, se nada for feito para o evitar. “Quando o Ministério da Saúde não recebe sindicatos e se perde com críticas à Ordem dos Médicos, não é de esperar grandes mudanças.”

No seu caso, tem dois colegas que decidiram ir para a Irlanda onde irão preencher vagas de especialidade que não quiseram preencher em Portugal. “Estão a três horas de Lisboa de avião, ganham mais, têm mais férias, e menos horas de serviço… Não é uma decisão difícil.”

Alerta, alerta, toquem todos os alarmes

“Quando são os recém-licenciados que deixam de ocupar vagas, em hospitais de topo, é um sinal de super-alerta.” O bastonário Miguel Guimarães fala das 10 vagas de Medicina Interna (ficaram 31 por preencher a nível nacional) que ficaram sem candidato no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte (que engloba Santa Maria e Hospital Pulido Valente). Um dos motivos prende-se, na sua opinião, com a atitude das administrações dos hospitais em relação aos médicos. “Quando o porta-aviões do SNS, o Hospital de Santa Maria, fica com vagas por preencher algo está muito mal.”

Catarina Dourado ainda está de queixo caído. Entre os estudantes de medicina ninguém esperava este cenário e, quando a presidente da Associação Nacional de Estudantes de Medicina comenta o assunto com os colegas, tudo o que ouve são palavras de espanto. “Ninguém esperava isto. É um grito de alerta e não podemos ficar com ilusões de que está tudo bem. Para um jovem médico não será fácil tomar esta decisão de não terminar a sua formação.”

Tal como outros, é da opinião de que esta nova geração tem os horizontes mais abertos e que mais facilmente pensa em ir para o estrangeiro, embora não acredite que seja essa a primeira escolha da maioria.

“A carga de trabalho na vertente clínica, na generalidade, ultrapassa as 40 horas. Acresce a carga de trabalho formativa, para publicação, investigação, ida a congressos, e nas 40 horas semanais não está contemplado o tempo para essas vertentes.”
Carlos Mendonça, presidente do Conselho Nacional do Médico Interno

“Ninguém esperava isto”, diz também João Martins, presidente da Associação de Estudantes de Medicina da Faculdade de Lisboa, quase como se tivesse combinado palavras com a colega Catarina. “É o contrário do que esperávamos, quando sabemos que há mais candidatos do que vagas.”

Por ter sido uma situação surpreendente, o aluno de 5.º ano acredita que não há uma resposta certa que justifique o vazio destas 50 vagas. “Terá de haver múltiplos motivos, é preciso estudar o que aconteceu e perceber se é uma tendência que vai manter-se ou não.”

Quanto ao estrangeiro, repara que entre os colegas há mais quem pese na balança fazer o internato — e até a vida — fora de Portugal. “Hoje há mais gente a ponderar porque conhecem mais casos de pessoas que o fizeram e a quem correu tudo bem. E mesmo através das associações de estudantes vão-se conhecendo melhor as oportunidades no estrangeiro.” No final, defende que o debate que afasta os médicos das vagas de internato é complexo, mas era importante tê-lo.

O que não acredita é que a sua geração esteja mais afastada do SNS. Poderão estar mais afastados de alguns contextos que lhes são oferecidos. E sendo a escolha da especialidade uma decisão que pesa para a vida toda, podem preferir esperar um ano, repetir o exame, para conseguir a vaga certa, no hospital certo.

Laura Teixeira concorda. “Ninguém entrou em Medicina a pensar ir trabalhar para o privado, mas acaba por ter de ponderar essa solução. Eu queria muito ir para o SNS, mas só 5% das vagas é que interessam, as outras 95% não garantem qualidade de vida.”

Carlos Mendonça diz que o facto de as vagas que ficaram por preencher serem na região de Lisboa e Vale do Tejo também não será um acaso. “O custo de vida nestas zonas do país associado ao ordenado de um interno, 1.840 euros brutos, que darão cerca de 1.200 líquidos, acaba por não compensar.”

Se os pés são de barro, a queda será breve

Mesmo sabendo que as coisas estão complicadas nos SNS, Noel Carrilho confessa que ficou surpreendido com as vagas por preencher. “É um choque perceber que quem avalia as condições das formações específicas acha que mais vale aceitar outras propostas”, diz o presidente da FNAM (Federação Nacional dos Médicos).

“O que aqui é novidade é que houve jovens médicos que olharam para as vagas de internato e concluíram que essa perspetiva não era compensadora. É o apodrecer do SNS na sua base”, diz o médico. Recordando que um internato são vários anos de formação, considera que a sua escolha é uma grande pressão nos jovens. “E há três fatores a pesar: as condições de formação, as condições de trabalho e as perspetivas de vida.”

Vagas por preencher é sinal desolador e revelador da situação do SNS, avisa Ordem dos Médicos

É por isso que usa a mesma palavra que as várias gerações de médicos ouvidos pelo Observador escolheram. “Isto é um sinal de alerta máximo, não sei o que possa vir a seguir.” Houve alertas anteriores, “que foram ignorados”, como as vagas de especialistas que ficam por preencher no SNS.

“É o dizer não”, diz Noel Carrilho, resumindo assim a posição dos jovens médicos. “Já não é um aviso, é uma consequência de que está degradado todo o sistema. É a base da base, são os alicerces, a formação, onde tudo começa, se nem os médicos do futuro o SNS atrai, o sistema colapsa.”

E se há zonas do interior que sofrem com a clássica falta de médicos, Lisboa e Vale do Tejo, pelo valor do custo de vida, estão a tornar-se as novas zonas de carência. “Esta é uma geração que valoriza aquilo que são os seus direitos de vida de conciliar vida profissional com pessoal, e isso é legítimo. Durante muito anos, e mal, os médicos foram sendo afastados de uma vida pessoal saudável”, considera o líder da FNAM.

O que vai mal no internato de Santa Maria?

Embora observe problemas em todo o SNS, Jorge Roque da Cunha aponta o dedo à administração do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, e acredita que a forma de gerir médicos naquele centro hospitalar tem muito a ver com o facto de ninguém querer parte das vagas.

“A tutela tinha obrigação de fazer uma reflexão sobre o que se passa ali, questões como o não pagamento de horas extraordinárias, a relação que se mantém com os médicos, o tipo de serviço que é pedido aos internos”, frisa. O problema, naquele centro hospitalar, terá de passar pela administração, na opinião do líder do SIM, já que os “tutores em Santa Maria são altamente qualificados e já deram provas de que são capazes”.

Questionado sobre o Observador, sobre os motivos que levaram a que as 10 vagas de medicina interna ficassem vazias e se as condições de internato oferecidas pelo centro hospitalar estarão relacionadas com isso, a resposta oficial do Lisboa Norte é a de que a medicina interna é “uma área assumidamente prioritária”.

“É uma especialidade estruturante e absolutamente determinante na resposta clínica aos nossos doentes, tendo assumido desde o primeiro momento um papel crucial e continuado na área Covid-19 – nos últimos dois anos, tratou mais de três mil doentes com infeção por SARS-CoV-2 – sem descurar todo o conjunto de doentes não-Covid, também a nível regional e nacional.” Tudo isto, considera o Centro Hospitalar na sua resposta enviada por escrito, é “mérito do profissionalismo e dedicação das suas equipas, que contam com o empenho do centro hospitalar na criação de condições adequadas para assegurar essa resposta”.

Sobre os problemas concretos que possam existir com o seu internato de Medicina Interna, afirma que “analisa os dados de acesso ao internato médico e a avaliação por especialidade numa vertente global e transversal, evitando visões casuísticas e circunstanciais.” No entanto, assume que “importa de facto adensar a reflexão específica sobre a realidade da Medicina Interna, em que no presente processo de escolhas houve, a nível nacional e especificamente no CHULN, um conjunto de vagas não preenchidas. Este processo já foi iniciado, assumindo um carácter participado.

Com menos 10 internos a entrar no Santa Maria, “altamente necessários”, Roque da Cunha diz que, daqui a 5 anos, teremos menos 10 internistas formados, o que leva a uma diminuição da capacidade assistencial. “Não é uma gota de água, é significativa.”

A casa toda a arder

O médico Alexandre Valentim Lourenço destoa da maioria e não está surpreendido. “Há vários anos que digo que isto vai acontecer. O esquema de escolhas tem sido errado e agora chegámos aqui.”

O presidente do Conselho Geral do Sul da Ordem dos Médicos lembra que todos os anos saem das faculdades de medicina 1.700 médicos para 1.900 vagas de internato. Aos médicos formados em Portugal juntam-se mais de 200 a 300 licenciados fora do país, dos quais dois terços são portugueses, os demais são estrangeiros.

As mudanças legislativas de 2018 impedem que, depois de dar início a um internato, um médico desista dele sem consequências. Quem o faça, fica impedido de entrar no concurso do ano seguinte. Assim, Valentim Lourenço acredita que quem tem boa nota para escolher a especialidade que quer, se a viu escapar entre dedos, prefere adiar a entrada por um ano, fazer um novo exame, e tentar de novo. Pelo caminho, até pode trabalhar como tarefeiro, ganhando muito mais do que interno.

Por outro lado, se olhar para o fim da tabela de candidatos, defende que se encontram médicos com notas demasiado baixas que não deveriam sequer ter permissão para aceder ao internato. “Há médicos com notas muito baixas a entrar nas especialidades e isso devia acabar. Devia haver uma nota mínima de admissão.”

Valentim Lourenço insiste que onde entram 15 jovens para fazer o internato em Medicina Interna não saem obrigatoriamente 15 especialistas: “uns desistem, outros escolhem outra especialidade”. Se a situação se for repetindo, ano após ano, os hospitais ficam sem médicos formadores e perdem a idoneidade. “Chego a um ponto em que abro as portas da escola e os professores não estão lá.”

Soluções? Valentim Lourenço aponta três medidas essenciais: elevar o PIB de 5% no SNS, através de um pacto de 5 anos que o coloque na média da OCDE (7,2%) e que permitiria pagar melhor às pessoas e equipar os hospitais O segundo ponto passa por reforçar as regras de gestão hospitalar, dando-lhes mais autonomia, e requalificar o SNS que, na sua opinião, “não é atrativo para quem quer trabalhar bem”.

“Sem equidade, quem tem dinheiro trata-se nos privados e parte da população, a mais desprotegida, fica com bons, maus ou nenhum serviços de saúde consoante a região do país. Mas quando esta situação chega ao Santa Maria, é sinal de que tenho a casa toda a arder”, conclui o médico.

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