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Cardoso Pereira questiona porque se chama defesa da floresta contra incêndios, quando a floresta é só a terceira prioridade
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Cardoso Pereira questiona porque se chama defesa da floresta contra incêndios, quando a floresta é só a terceira prioridade

ANDRÉ CARRILHO / OBSERVADOR

Cardoso Pereira questiona porque se chama defesa da floresta contra incêndios, quando a floresta é só a terceira prioridade

ANDRÉ CARRILHO / OBSERVADOR

Investigador. "O Estado recuou demais, debilitou-se, na sua função de gerir a floresta"

Cardoso Pereira, professor do ISA, diz que o Estado tem perdido a capacidade de intervir na floresta. É resultado da falta de prioridade política dada à prevenção. O dono do fogo é a proteção civil.

José Miguel Cardoso Pereira foi um dos especialistas envolvidos na proposta para a defesa da floresta, onde se defendia o foco na prevenção. Este plano foi metido na gaveta em 2005 pelo Governo em que António Costa era o ministro da Administração Interna que lançou a reforma dos serviços de proteção civil e bombeiros. O investigador do Instituto Superior de Agronomia (ISA) diz que “nas últimas décadas, tem-se enfraquecido a capacidade do Estado para intervir e agora acordamos para o facto de que se foi longe demais e que era bom que tivéssemos um serviço florestal mais interveniente”.

O professor do ISA desvaloriza o “sucesso” do sistema de combate aos incêndios. “Quando a época de incêndios corre bem, o mérito é do sistema, quando corre mal a culpa é da meteorologia”. Ainda que as condições climatéricas sejam apenas uma parte do problema, fazem toda a diferença em áreas com muito combustível (vegetação para arder), explicam até dois terços da variação na área ardida. É essa conjugação que ajuda a perceber porque é que Portugal arde mais que os seus vizinhos. E como se deve resolver o problema? Com uma gestão da floresta feita durante todo do ano. Mas falta dinheiro para a prevenção, porque “as prioridades políticas” têm sido outras e porque o “dono do fogo é a proteção civil”.

Concorda com os que defendem, primeiro-ministro incluído, que o sistema nacional de combate aos incêndios tem sido eficaz?
Pode parecer eficaz, excetuando este evento excecional. Existiu uma combinação de fatores complicada e pouco comum. A excecionalidade que reconheço no caso de Pedrógão Grande foi o número de mortos. As circunstâncias naturais podem não ser comuns, mas não há ali nada de inédito, excecional ou extraordinário. Mas não era nada de que nunca se tivesse ouvido falar. O excecional foi a infeliz maneira como várias circunstâncias, naturais e as associadas à intervenção humana, levaram à morte daquelas pessoas.

Excluindo este evento, visto do ponto de vista da proteção civil, o sistema funciona razoavelmente bem. Normalmente morrem poucas pessoas a ardem poucas casas em Portugal. E quando morrem pessoas são frequentemente os bombeiros, cujo esforço e dedicação nunca é demais salientar, mas desse ponto de vista o sistema até funciona.

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A excecionalidade que reconheço no caso de Pedrógão Grande foi o número de mortos. As circunstâncias naturais podem não ser comuns, mas não há ali nada de inédito, excecional ou extraordinário.

E onde é que falha?
Há números que mostram que não perceber a natureza do problema leva a soluções erradas. Em 2003, houve 20 mil fogos e arderam 440 mil hectares. Só 1% dos fogos ultrapassou os cem hectares. Esse 1% queimou 400 mil hectares. Temos um sistema que consegue manter abaixo dos 100 hectares 99% dos fogos, mas deixa escapar 1%, e que ainda assim, permite anos absolutamente trágicos (2005, 2003, 1998).

É razoável esperar que o sistema passe à perfeição? Dos 99% aos 100? Ou será melhor fazer o investimento, trabalhar o território, gerir a floresta, fazer a gestão do combustível para que o 1% que escapa não tenha consequências tão desastrosas? António Salgueiro (especialista no combate aos fogos em entrevista à Renascença) diz uma coisa que faz todo o sentido. Há situações em que não é possível combater os fogos. Não há meios, nem aéreos. A intensidade é de uma tal escala que a única coisa a fazer é recuar e salvaguardar as casas e as pessoas.

Foi o que aconteceu neste caso?
Não olhei para o problema, nem tenho as competências para isso. Mas António Salgueiro diz que se tentou ainda combater numa altura em que se devia estar a recuar e a defender as pessoas. Há situações em que o fogo é intratável e o que se deve fazer é pòr as pessoas a salvo, incluindo os bombeiros, e esperar por melhor oportunidade – menos combustível ou porque se prevê que vai ficar mais fresco.

Mandar água para um fogo desta dimensão e com estas temperaturas se calhar não funciona.
Não funciona, mas há uma tentação de mostrar e de sentir que se está a fazer alguma coisa. Em alguns casos, será para mostrar. O poder político não quer parecer pacífico, é preciso fazer alguma coisa. Noutros casos é porque as pessoas não conseguem estar paradas a ver sem fazer nada. Pode ser um risco e desperdício de recursos. É um fenómeno estudado na psicologia. Um psicólogo israelita que estudou estas matérias concluiu que se o guarda-redes estivesse quieto quando é marcado um pénalti defendia mais do que atirando-se para a bola. Imagine os adeptos verem isto. Era impensável.

Mandar água para um fogo desta dimensão -- Pedrógão Grande -- "não funciona, mas há uma tentação de mostrar e de sentir que se está a fazer alguma coisa. Em alguns casos, será para mostrar. O poder político não quer parecer pacífico, é preciso fazer alguma coisa. Noutros casos é porque as pessoas não conseguem estar paradas a ver sem fazer nada". 

Muitos jornais estrangeiros questionaram porque é que o nosso país arde mais do que os vizinhos do mediterrâneo. Há respostas para isso?
Também intriga os investigadores, embora tenhamos algumas ideias sobre de onde vem essa diferença. Temos uma conjugação de situações que é particularmente problemática.

A propósito deste evento, tem-se falado muito de meteorologia e de condições excecionais e o IPMA (Instituto Português do Ar e da Atmosfera) tinha previsto risco máximo, mas a meteorologia é uma só uma parte da história, e eu diria que uma parte razoavelmente secundária, se estivermos a falar do problema geral. Se o determinante fossem as condições meteorológicas estávamos preocupados com fogos em Mértola, Barrancos e Amareleja, onde praticamente não há fogos.

O que mais faz a diferença?
Temos condições bastante boas para a vegetação crescer, em boa parte do país, basicamente grande abundância de água e temperaturas que não limitam esse crescimento. No Noroeste, no Minho, temos o máximo da produtividade florestal, é onde o país é mais verde. O canto oposto é mais quente e seco. O máximo de incidência do fogo não acontece nesses extremos. O Minho acumula muita vegetação, mas não tem ondas de calor frequentes. O sudeste alentejano está muitas vezes quentíssimo, mas é seco, acumula pouca vegetação, e tem poucas pessoas.

Mapa das zonas afetadas pelo fogo de Pedrógão Grande. Imagens de satélite da NASA trabalhadas pelo ISA

Onde encontramos as situações mais desfavoráveis? No centro, centro norte, onde se acumula vegetação suficiente, e onde há verões quentes e secos relativamente longos. Em Espanha, a Galiza é a região com mais fogos, mas tem bastante menos do que nós. É muito mais fresca e húmida, a densidade populacional é muito menor e os fogos são essencialmente originados pela atividade humana.

Mas há outras razões?
Sim. Têm a ver com a atividade da população, que é geradora de ignições e com o sistema que lida com o problema, na componente do ordenamento e do combate. Ainda usamos muito o fogo para numerosas atividades no território. O pastores usam fogo para garantir a vegetação tenra para o gado miúdo (ovelhas e cabras), há queimas de resíduos da exploração agrícola. Na minha região, em Anadia, que é vinícola, o maior pico de fogos é no fim de setembro e outubro, quando já passou o auge do verão, é depois das vindimas. Temos um território, uma paisagem, que do ponto de vista do fogo é complicada e difícil de gerir. Outro problema é relação entre os aglomerados de populacionais e a floresta.

As aldeias no meio das serras…
É o interface urbano rural, a zona onde o casario contacta com a vegetação perigosa do ponto de vista do fogo. Em países como os Estados Unidos e a Austrália, essa interação vem das áreas urbanas, sítios ricos e dinâmicos onde as pessoas vão construindo casas no campo (segunda habitação), em zonas do tipo mediterrânico, bonitas e cheirosas. Em Portugal temos um bocadinho disso, em Sintra, na Arrábida. Mas temos outro processo, associado ao abandono rural. Nos nossos campos deprimidos é o contrário. A floresta e o mato têm vindo a aproximar-se e envolver o casario. Há muitas situações perigosas de grande proximidade entre os principais valores a proteger e a vegetação que é vista como uma ameaça.

Um membro do Governo dizia: “Assumidamente a primeira prioridade é proteger as pessoas, a segunda prioridade é proteger as casas, a terceira é proteger a floresta”. Concordo e partilho a hierarquia de valores. Mas não posso deixar de interrogar. Porque é que o sistema se chama de defesa da floresta contra incêndios? Se a floresta é a terceira prioridade, não faz sentido esta designação. 

Como lidar com esse problema?
Um membro do Governo dizia: “Assumidamente a primeira prioridade é proteger as pessoas, a segunda prioridade é proteger as casas, a terceira é proteger a floresta”. Concordo e partilho a hierarquia de valores. Mas não posso deixar de interrogar. Porque é que o sistema se chama de defesa da floresta contra incêndios? Se a floresta é a terceira prioridade, não faz sentido esta designação. O sistema é de defesa das pessoas e das casas contra incêndios na floresta. Era mais transparente ter uma designação do tipo sistema nacional de proteção civil, porque o chamado sistema nacional de defesa da floresta contra incêndios tem a floresta como terceira prioridade. Estão-se a criar falsas expetativas nos produtores florestais e a induzir as pessoas em erro.

Devíamos separar as duas prioridades?
Ou integrar mais. Era essa a proposta do plano técnico de defesa da floresta apresentado em 2005 (por uma equipa do Instituto Superior de Agronomia) e que defendia a criação de uma estrutura única. Outra solução seria ter dois corpos separados, um para proteger o casario e as pessoas e outro para defender a floresta. Mas não me parece que fosse fácil articular o seu funcionamento no terreno. Faria mais sentido uma maior integração e um corpo pessoal técnico que trabalhasse na questão do fogo o ano inteiro. Uma parte do ano, fazia a gestão florestal. Na outra parte, apoiava os bombeiros no combate. Estamos a falar de profissionais com conhecimento técnico de risco de propagação e capacidade de previsão.

Onde estão esses profissionais? Parecem estar dispersos por várias entidades (sapadores florestais, ICNF – Instituto da Conservação da Natureza e Florestas, guardas florestais).
A sua leitura está correta. O plano previa ir buscar esse pessoal a vários corpos – guardas florestais, corporações de bombeiros, sapadores – para construir uma estrutura única de resposta ao problema. Há gente dispersa que vai tendo essas funções, mas são em estruturas que não têm dedicação exclusiva. E essas funções estão a ser realizadas a uma taxa muito abaixo do que seria seria desejável por questões orçamentais. E depois entra-se num círculo vicioso. Não há empresas na área, gente treinada. A estrutura (proposta em 2005) integrava a prevenção e o combate. Essa estrutura trabalharia o ano todo, fora da época dos incêndios faria o controlo do combustível na primavera e outono, tal como no inverno, faria trabalhos de silvicultura, gestão florestal e limpeza de caminhos.

ANDRÉ CARRILHO / OBSERVADOR

Mas não falta só organização, falta também dinheiro para a prevenção? Para o combate aos fogos, parece haver sempre dinheiro.
Falta dinheiro porque as prioridades políticas são outras, porque há falta de vontade de alocar verbas a essa área. No plano de desenvolvimento rural há instrumentos financeiros que poderiam ser usados para dar mais apoio à gestão florestal. Muitas destas medidas, como o tratamento de combustíveis (vegetação que ajuda a propagar o fogo) acabam por ser atribuídas a zonas que não são prioritárias. Um estudo da minha colega , Maria João Canadas, chama a atenção para uma coisa importante. A dimensão concebida para estas zonas (ZIF), oscila entre os 500 e mil hectares, é pensada na lógica de ser uma área grande para produzir resultados à escala de fogos que temos, Não é com intervenção de cinco ou dez hectares que se resolve alguma coisa.

Mas aí emerge um paradoxo complicado. Nas zonas onde o risco de fogos é maior, a propriedade é muito fragmentada, a população é envelhecida e mobilizar um número suficiente de proprietários para fazer uma gestão florestal partilhada de 500 ou mil hectares é extremamente difícil. É mais fácil na grande propriedade do Sul, mas não é onde está o maior risco de incêndio.

Uma proposta da reforma da floresta em cima da mesa aponta para o Estado tomar conta das terras sem dono. O que acha disso?
O cadastro dos terrenos (saber quem é o dono) é útil por muitas razões, nomeadamente fiscais. Mas também há concelhos que têm cadastro e não é por isso que deixaram de arder. Em teoria, não me parece má ideia, mas com o Estado debilitado na sua capacidade de intervir, é uma equação simples. Se damos mais competências ao Estado, o que inclui as autarquias, temos de dar mais meios. Nas últimas décadas, tem-se enfraquecido a capacidade do Estado para intervir e agora acordamos para o facto de que se foi longe demais e que era bom que tivéssemos um serviço florestal mais interveniente.

Mas a reforma proposta pelo Governo não vai nesse sentido.
Não. E o organismo com essas funções (ICNF) tem vindo gradualmente a assumir os seu decréscimo de protagonismo. As pessoas são sensatas e têm a noção da magnitude e dificuldade do problema. Não vão querer ser donos do problema do fogo quando percebem que entretanto foram incapacitados para lidar com ele. O dono do fogo é a proteção civil.

O secretário de Estado das Florestas chamava a atenção, e com razão, para o facto da floresta que temos ter sido construida ao longo do último século e que não é rapidamente que se altera, o que para mim só quer dizer uma coisa: já devíamos ter começado há muito tempo.

António Costa justificou que há dez anos fez a reforma da proteção civil para comprar tempo para fazer a reforma da floresta, mas não explicou porque não foi feita. Qual é o seu comentário?
Essa é uma lógica muito falha. O combate e a prevenção não são atividades antagónicas em que se possa trabalhar desarticuladamente. Agora fizemos uma coisa e ficamos à espera que os outros venham ter connosco. Precisamos de ter melhor prevenção e melhor gestão florestal para que o combate seja mais fácil e mais eficaz.

Um pinheiro precisa de 30 a 40 anos para render o máximo. Há uma grande parte do nosso território que não está 30 a 40 anos sem ter um fogo. Um eucaliptal chega à idade de render em oito a dez anos, e portanto as pessoas que tinham pinheiro que ardeu deitam contas à vida. Vou apostar em 30 ou 40 anos de sorte? Vou antes apostar em oito ou dez anos de sorte.

Essa melhor gestão pode ser feita por privados?
Pode ser feita por associações de produtores florestais, no âmbito de zonas de intervenção florestal. Onde vejo dificuldade, e até impossibilidade, é que seja feita por privados isolados. A escala da parcela da terra não é compatível com fogos de milhares de hectares. Não é fácil organizar os proprietários, mas também não tomo por garantido que fosse mais fácil uma solução que envolva o Estado. Não estou a excluir um papel mais ativo do Estado, o que digo é que se for atribuído que sejam também dados os meios, mas acho que não devemos entrar por esta dicotomia: os privados não fazem, o Estado tem de fazer.

Até que ponto a floresta que temos resulta das opções dos privados que querem, legitimamente, ter rentabilidade nas suas terras?
Uma boa parte da expansão do eucalipto nos anos 90 resulta do crescimento da indústria das celuloses que criou procura. Mas em boa parte a opção de reconversão do pinhal para o eucaliptal é uma reação ao risco de incêndio. Quando comecei a estudar no ISA havia cerca de 1,2 milhões de hectares de pinheiro bravo, hoje são 750 a 800 mil hectares. Um pinheiro precisa de 30 a 40 anos para render o máximo. Há uma grande parte do nosso território que não está 30 a 40 anos sem ter um fogo. Um eucaliptal chega à idade de render em oito a dez anos, e portanto as pessoas que tinham pinheiro que ardeu deitam contas à vida. Vou apostar em 30 ou 40 anos de sorte? Vou antes apostar em oito ou dez anos de sorte. O risco real e a perceção do risco, o medo do fogo, são grandes indutores da opção de abandonar o pinheiro bravo e optar pelo eucalipto.

O eucalipto já é a árvore que ocupa a maior área de floresta, mas se sobrepusermos o mapa do tipo de floresta com o mapa anual de área queimada, vemos que em proporção o eucaliptal é menos afetado que o pinhal. O mais importante não são as caraterísticas da espécie, mas sim o grau de gestão da floresta. Uma floresta economicamente mais rentável, mais valiosa, paga mais e permite suportar as suas operações de gestão.

Até acho que o Estado recuou demasiado, debilitou-se demasiado na sua função de gestão da floresta e do espaço rural em Portugal. Reverter isso é um processo tão longo como o de ordenar a floresta. E não há sinal de que esse seja o caminho.

Mas essa gestão florestal poderia também passar por uma maior diversidade de espécies, ainda que não tivessem o mesmo interesse económico.
Era claramente desejável que assim fosse, mas isso pressupunha uma diversificação dos setores económicos e das indústrias que usam a floresta. Porque é que não se plantam carvalhos? A propriedade é privada e as pessoas têm uma perspetiva de rendimento. Se plantássemos essas espécies, quem ia fazer o quê ? É bom que a floresta não arda, mas o objetivo último de ter uma floresta não é não arder, é render bens materiais e serviços ambientais e ecológicos.

Há países europeus que têm território florestal na posse do Estado, em percentagens mais altas. Entre nós até acho que o Estado recuou demasiado, debilitou-se demasiado na sua função de gestão da floresta e do espaço rural. Reverter isso é um processo tão longo como o de ordenar a floresta. E não há sinal de que esse seja o caminho.

Aqui há uns tempos, um autarca dizia que na freguesia dele não há esse problema. Quando não se sabe de quem é uma terra, ele vai lá, põe uma placa a dizer vende-se e coloca o seu número de telefone. E diz que dois ou três dias, aparece o proprietário furioso a perguntar. Seu desgraçado, quem é você que está a tentar vender a minha terra. É uma caricatura, mas mostra que há um maior conhecimento sobre os donos das terras a nível local

Qual é a sua opinião sobre o pacote florestal?
Há uma medida que me parece boa, mas que poderia ser melhor que é o plano para o uso do fogo controlado. Urge acabar com o slogan Portugal sem fogos, senão estamos numa contradição curiosa de políticas públicas. Não vejo razão especial para privilegiar o fogo cruzado, isto é o contra-fogo, faria mais sentido pensar num plano nacional de gestão dos combustíveis, para poder ir buscar dinheiro para roçar mato e ter rebanhos de cabras a comer arbustos. O cadastro de terras é útil, mas não sei se é uma condição necessária.

Aqui há uns tempos um autarca dizia que na freguesia dele não há esse problema. Quando não se sabe de quem é uma terra, ele vai lá, põe uma placa a dizer vende-se e coloca o seu número de telefone. E diz que em dois ou três dias aparece o proprietário furioso a perguntar: “Seu desgraçado, quem é você que está a tentar vender a minha terra”. É uma caricatura, mas mostra que há um maior conhecimento sobre os donos das terras a nível local do que por vezes se diz.

Faria sentido hoje voltar à plano técnico que o grupo de trabalho técnico apresentou em 2005 e criar uma entidade única com meios que incorporasse prevenção e combate?
Acho que é cada vez mais pertinente. O secretário de Estado das Florestas disse recentemente que essas questões foram sendo atendidas, colocando competências nos corpos dos bombeiros. Esperar que os corpos de bombeiros façam a gestão florestal não me parece a melhor solução. Alguns detalhes e a estrutura fina da proposta teriam que ser revistas, até porque um dos fatores que alterou a conjuntura foi a incorporação de algumas medidas da proposta técnica que estão em curso.

Essa estrutura era o instrumento de implementação de toda a proposta. Era o braço armado, não era um acessório como jantes de liga leve.

Tivemos dez anos de sucesso em que ardeu menos floresta, lembrou António Costa. Mas o problema voltou em 2016 e 2017. Há quem diga que o sistema foi vítima do seu sucesso.
É uma situação clássica que os americanos identificaram primeiro. A seguir à segunda guerra mundial ficaram disponíveis aviões que foram convertidos para o combate aos incêndios. E tiveram uns anos de esforço concentrado na supressão e umas décadas depois vieram a pagar as consequências. Com uma aposta intensiva na supressão o que é que se está a fazer? Não há fogo, mas a vegetação vai-se acumulando. E quando é que as coisas correm mal? Tipicamente quando as piores condições meteorológicas possíveis acontecem. Andamos décadas a acumular combustível (vegetação) para o ver arder nas piores condições.

Sobretudo na parte Norte do incêndio de Pedrógão Grande, que garantidamente não ardia desde 1995. Havia zonas que não ardiam há mais 22 anos (...) Mas há outro aspeto menos biofísico e que está relacionado com as interpretações. Quando a época de incêndios corre bem, o mérito é do sistema, quando corre mal a culpa é da meteorologia.

Vimos isso nos incêndios desta semana?
Sobretudo na parte Norte do incêndio de Pedrógão Grande, que garantidamente não ardia desde 1995. Havia zonas que não ardiam há mais de 22 anos. Na parte sul, uma parte tinha ardido em 2002 mas outra em 2005, também tinham 12 a 14 anos de combustível. Mas há outro aspeto menos biofísico e que está relacionado com as interpretações. Quando a época de incêndios corre bem, o mérito é do sistema, quando corre mal, a culpa é da meteorologia.

O verdadeiro sucesso seria uma época de incêndios correr bem com más condições climatéricas?
Há estudos que mostram que entre dois terços a três quartos de variação na área queimada se explicam à custa das variações da meteorologia. Estamos vulneráveis às condições do tempo. Tudo o resto que fazemos – quantos aviões, quando foi declarada a época de incêndios, quantas pessoas estiveram nas torres de vigia – explicam apenas um terço ou um quarto da área queimada.

E como se resolve essa vulnerabilidade?
Tendo paisagens que num tempo quente e seco não ardam tão ferozmente. Ou pelo menos que não ardam na proximidade das casas se formos assumir a inevitabilidade da lógica do Governo.

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