[Esta reportagem foi publicada a 1 de novembro de 2017 e recuperada a 15 de novembro de 2018, depois de ter sido noticiado que a chefe de gabinete do PAN na Assembleia da República, Cristina Rodrigues, é dada como suspeita pela PJ de estar entre os encapuçados daquele grupo]
Desde o contacto inicial ao primeiro encontro passaram cerca de três semanas. A IRA, acrónimo para Intervenção e Resgate Animal (não confundir com o Irish Republican Army) existe há um ano, tem 54.870 seguidores no Facebook, já fez dezenas de resgates de animais na zona da Grande Lisboa, e até uma batalha contra o gigante espanhol El Corte Inglès venceu, depois de se ter mobilizado contra uma campanha de compra de animais a prestações. Ainda assim, os seus membros continuam a fazer questão de se manterem no anonimato — e, até agora, de recusarem todos os pedidos de entrevista que lhes foram feitos.
https://www.facebook.com/intervencaoeresgateanimal/photos/a.334628990210963.1073741826.334623276878201/509028542771006/?type=3&theater
As instruções, enviadas via Facebook, são precisas e a roçar o militar: às 20h30 de uma noite de fim de setembro os jornalistas do Observador serão apanhados por uma “viatura 4×4” numa bomba de gasolina em Lisboa para então seguirmos para a zona de Massamá, onde o grupo vai proceder ao “sequestro” de dois cavalos subnutridos e maltratados pelos donos. “Não tragam nada que vos identifique; tatuagens tapadas; calçado desportivo; roupa prática; cabelo apanhado ou uso de boné. O restante será explicado logo, aguardem no interior do posto de abastecimento.”
Já depois de recebermos o resto do briefing por parte do fundador do grupo, no exterior de um ginásio nos Olivais, onde a IRA tem sede, somos apresentados aos restantes membros — formais no trato, ar de quem vai para uma missão em zona de guerra. “Irados” é como se autodenominam. Ao todo são nove em Lisboa mais outros cinco na zona Oeste. Nesta noite só sete participarão no resgate, cinco partem de Lisboa, os outros dois já estão em Massamá, “para detetarem qualquer tipo de movimento”.
Um dia antes, alguns já tinham estado no local e falado com o proprietário dos animais. Por isso mesmo, temem que ele possa dar sumiço aos cavalos. Ou pior: “Ainda há pouco tempo circularam na Internet fotografias de um cavalo que estava a ser maltratado pelos donos. Antes que alguém o pudesse resgatar, desapareceram com ele. Quando apareceu, estava o corpo de um lado e a cabeça do outro; decapitaram o animal. A ideia deles é conseguirem ganhar dinheiro com os cavalos. Não conseguindo vendê-los e ganhar esse dinheiro rápido, também não têm dinheiro para os alimentar e maltratam-nos”, explica um dos elementos.
Têm em média 35 musculados anos, muitos são casados, outros têm filhos, todos têm empregos diurnos o mais díspares possível: são seguranças privados, gerentes de ginásios, polícias, contabilistas e técnicos administrativos. Em comum, explicam, têm uma amizade construída ao longo de mais de 17 anos e alicerçada na prática de desportos de combate, e, claro, no amor pelos animais.
Dizem que é isso que os faz sair de casa quase todas as noites da semana para verificarem as denúncias que lhes chegam via Facebook (em média recebem uma centena de mensagens por dia); tratarem do resgate de animais em risco; supervisionarem os adotados nas novas casas; e também para acompanharem alguns casos sociais, como o da septuagenária da zona do Intendente que há anos acumula lixo e gatos em dois apartamentos arrendados, num problema flagrante de saúde pública.
“O que vamos fazer hoje é um sequestro de um animal. Se chegarmos lá e o dono tiver dado sumiço ao animal, poderemos fazer um sequestro do dono até ele nos contar onde está o animal. Não somos a PSP, não somos o SEPNA [Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente], não somos a GNR nem a Câmara Municipal de Lisboa — as nossas ações justificam os fins que pretendemos: o bem-estar animal. Um país onde existe todo o tipo de menosprezo pelos direitos dos animais não merece nada menos do que um grupo com este tipo de atitude”, explica o fundador do grupo.
Sabem que aquilo que fazem — invadir propriedade privada e levar animais de que não são donos — é ilegal. “Por lei não podemos fazer nada. Podemos chamar as autoridades e o veterinário municipal e rezar para que os animais estejam em espaço público, para que o resgate possa ser ordenado. Problema: os canis municipais estão todos a abarrotar. Já para não dizer que os equinos, como os cães de guarda, não têm os mesmos direitos na lei, porque não são animais de companhia. Começámos a visualizar demasiadas fotografias de equinos maltratados, subnutridos e a morrer e pensámos que tínhamos de tomar alguma atitude.”
Não se importam nem um pouco de transgredir, garantem. Nem mesmo aqueles que precisam de cadastro limpo para poder trabalhar, como os agentes da polícia ou os seguranças privados: “As autoridades não podem entrar em casa de uma pessoa sem mandato. Mesmo que ouçam um cão a ganir, se a pessoa não abrir a porta, eles não podem entrar. Entramos nós”, diz o fundador da IRA. O facto de já ter visto animais maltratados a morrer à fome e à sede, com foices espetadas no pescoço ou até com açaimes tão apertados que se lhes fundiram na pele e na carne justifica tudo, acredita.
Também assegura que não têm receio daquilo que podem encontrar do outro lado das portas que derrubam. “Medo? Aquele mamute tem 120 kg, o outro deve ter uns 100 kg, outros dois elementos que não estão cá hoje também são enormes”, justifica, de dedo apontado para o grupo de amigos. “Tenho alguns conhecimentos que me permitem entrar em confrontos e sair deles quase ileso com alguma facilidade; conto com o apoio de outras pessoas igualmente experientes na área dos desportos de combate… Claro que é sempre um risco, pode haver armas de fogo do outro lado, por exemplo, mas se formos a pensar nos riscos não saímos de casa. É uma coisa controlada, arriscamos, mas garantimos a nossa segurança, até agora nunca ninguém ficou ferido. É aí que traço a linha, no dia em que algum membro se ferir com gravidade, acabo com isto.”
Caça à mula em Belas (ou quando os resgates correm mal)
Vestidos de negro, t-shirts com o logótipo do IRA e a palavra “INTERVENÇÃO” escrita a toda a largura nas costas, partem para Massamá em dois carros, com o jipe a rebocar uma transportadora com capacidade para dois cavalos. Ao longo do IC19 vão comunicando via rádio. Não é o caso mas, se as houvesse, pagariam as portagens em dinheiro. A ideia é manterem sempre a atividade do grupo abaixo de qualquer radar: “Tentamos manter-nos no anonimato o máximo possível por duas questões: salvaguardarmo-nos enquanto entidades jurídicas e evitar que nos transformemos em muro das lamentações e destino de todas as queixas e denúncias”.
“Há coisas que fazemos quase à semelhança de um filme de Hollywood, mas têm uma razão de ser. Levantamos sempre dinheiro antes de sairmos, não pagamos nada com cartões, comunicamos em canais fechados de rádio e, quando nos aproximamos dos locais, entramos em ‘modo dinâmico’, ou seja, pomos os telemóveis em modo avião. Claro que é possível detetar os equipamentos na mesma, só tirando as baterias é que não. Mas também não somos propriamente criminosos ou assassinos, não estou a ver a PJ a utilizar este tipo de meios para nos intercetar e capturar…”, justifica o fundador.
No porta-bagagens do jipe, que comprou de propósito para poder resgatar uma maior quantidade de animais de cada vez, há um machado e um alicate de corte grande (os dois com autocolantes IRA), uma série de lanternas e uma matrícula com a sigla do grupo, para cobrir a placa original. Mais balaclavas pretas, lenços com caveiras mexicanas estampadas e máscaras de esqui.
Quando chegam à zona de Belas, já sabem que os animais, cinco cavalos e uma mula, não estão mesmo no local. “Ontem fizemos uma abordagem ao dono, para saber se o animal estava naquele estado por negligência ou por doença. Chegámos à conclusão de que era negligência: fez um mau negócio, trocou um cavalo pela mula, que já estava muito velha, mas continuou a utilizá-la para trabalho. É a mentalidade do até cair para o lado, até morrer. Inicialmente acolheu-nos de forma hostil, depois colocámos ali um bocadinho de assertividade, mostrei-lhe algumas consequências legais, e correu melhor. Mas entretanto teve um dia inteiro para desaparecer com os cavalos”, explica o fundador da IRA. “É um dos problemas de termos as nossas vidas e só podermos fazer isto à noite”, lamenta outro dos “irados”.
Por casualidade, no mesmo instante, avistam dois dos homens com quem tinham falado no dia anterior, um primo e um amigo do dono dos cavalos, a descer a rua, deserta àquela hora. Num ápice, estão junto a eles: “Olá!!! Lembram-se de nós?”. Ainda com roupas de trabalho, sujas de óleo e de tinta, os homens desfazem-se em desculpas. Que não sabem dos animais, muito menos do dono deles. A medo, entram nos carros da IRA, separados, um em cada lado. No jipe, o primo vai desfiando uma série de explicações que ninguém pediu, sobre uma operação stop a que fugiu há quinze dias e um pássaro que quer entregar para adoção:
— Levei um balázio aqui no peito, foi mesmo aqui. Tava com o álcool. Tenho de estar lá dentro agora dois anos e meio, vou aos fins de semana…
— Onde é que está a mula?
— Não sei, ele tirou-a dali mas eu não sei. Não quero arranjar problemas para o meu lado… Estava ali à rasca para mijar, vi o seu colega e disse: ‘Ai, queres ver, vêm-me bater, agora’. Mas falei, eu não fujo. Também tenho pena dos animais, tenho um pássaro lá em casa, é uma fêmea, está sempre a cantar e eu não consigo dormir e o meu filho também está sempre a acordar. Para que é que eu vou mandar aquilo para a rua, a voar?! Não, dou a vocês, para vocês darem a outras pessoas. Eu também gosto de cães e não faço mal aos animais…
— Não?! Mas apanhas uma cadela, de vez em quando…
— Não, não, eu não bebo. Isso era dantes, se estiver bêbado pego num carro qualquer, arranco aí à maluca…
No bairro, de casas clandestinas, armazéns, oficinas e hortas improvisadas em descampados, junto ao IC16, também não encontram o homem que procuram. Com a matrícula do jipe tapada, interrogam o pai do dono dos animais, que entretanto o primo ajudou a identificar, e um outro familiar. Arrancam com as tábuas de madeira que serviam de porta ao estábulo a céu aberto onde estavam os cavalos mas nada, só dois cães acorrentados — dão-lhes água. Acabam por desistir: “A gente vai acabar por encontrar. Vimos aqui todos os dias se for preciso. E não há necessidade, estamos aqui todos numa de resolver isto”, ameaça um à laia de despedida.
A ideia inicial do grupo é fazer como nos desenhos animados: fingirem que vão embora mas ficarem à espreita. Acabam por decidir seguir para a Amadora, mesmo ali ao lado. Em caso de dúvida, é sempre o fundador quem desempata: “Hoje já não vai adiantar nada… Há mais um cavalo para salvar. Já estamos a acompanhar o caso há duas semanas, mas desaparece sempre que lá vamos. Hoje recebemos nova fotografia da polícia municipal a dizer onde é que ele estava. Não é de forma oficial, mas as autoridades apoiam-nos. E as câmaras municipais, através dos veterinários, também. Fazemos o dirty job, aquilo que eles não podem fazer”.
Ao frio e ao vento, no cimo de um monte em Carenque, na Amadora, tentam o resgate durante mais de meia hora, enquanto um segundo cavalo, preso no descampado, junto aos arcos do aqueduto romano que ali se inicia, não pára de correr, coicear e relinchar, como que a dar o alerta aos donos, que poderão ou não viver num par de casas de construção clandestina que se avistam a escassas centenas de metros. E que poderão ou não reagir mal quando virem que sete homens estão a tentar meter um dos seus cavalos num atrelado. O ambiente é tenso, a operação tem de ser rápida, mas o animal teima em não colaborar.
Engodam-no com pão e com bolachas; tentam tapar-lhe a cabeça; tiram a lona que cobre a armação metálica do reboque; ligam para um especialista a pedir dicas; agarram nas patas dianteiras do animal e mostram-lhe como subir a rampa, um passo de cada vez. Nada. O cavalo recusa-se a entrar no atrelado. Já passa da meia-noite quando o grupo dá a intervenção por terminada: “É preciso ter paciência, mas nós não temos tempo para ter paciência. Fico fodido quando não dá em nada. Infelizmente, há muitas noites assim”.
“Quem maltrata os animais, terá consequências”
Claro que o que não faltam são resgates que correm bem. Como o de Kira (perdeu o “Sha” do registo original depois do salvamento), uma cadela american staffordshire que era obrigada pelo dono a participar em lutas ilegais e a ter ninhadas consecutivas e que hoje vive a salvo, com uma nova família.
Esse foi, há pouco mais de um ano, o primeiro salvamento da IRA, que na altura nem sequer existia. “Criei a página do Facebook para promover a adoção do segundo resgate que fiz sozinho, perto do meu trabalho. Ganhou proporções que nunca imaginei, de repente eu, que costumava ter uns 70 likes por publicação na conta pessoal, tinha mil e tal partilhas. Logo depois comecei a receber pedidos e denúncias”, recorda o fundador do grupo, que entretanto foi arregimentando os amigos para a causa e formou o grupo, fechado.
Ao todo, sem contar com carro, despesas de deslocação, drone (que utilizam para localizar os animais) e câmara GoPro (que levam como regra, para terem provas dos resgates), diz que, sozinho, já gastou cerca de 2.500 euros em equipamento, entre transportadoras, rádios, máscaras, cordas, mosquetões, lanternas, marretas e machados.
Ainda assim, tal como não quer voluntários, também recusa terminantemente os donativos em dinheiro, só aceita ração e areia para os animais resgatados. O único financiamento que o grupo tem vem da venda de camisolas, t-shirts e autocolantes com o logo IRA. “Vendemos umas 50 sweats por mês, cada uma a 25 euros. Já existem inúmeras associações em Portugal que precisam dos donativos para sobreviver. Acho que se não têm meios financeiros para a atividade que exercem, não deviam exercê-la. Depois, há pessoas que andam nisto pelo enriquecimento ilícito, simulam resgates, inventam animais e pedem donativos. Também queremos combater as pessoas que estão nisto pelo dinheiro e não pelos animais”, justifica.
A forma como o fazem? Exposição pública, com nome e dados pessoais, números de telefone incluídos, partilhados na internet. Como fazem, aliás, com as pessoas que apanham, efetivamente ou por interposta denúncia, a maltratar animais.
No início de outubro, o caso de um husky siberiano deixado no carro num dia de extremo calor, em Palmela, foi enviado para a página da IRA, com fotografia a acompanhar. A matrícula do carro, bem como o nome, localização e número de telefone do proprietário foram partilhados depois, pelo grupo, no mesmo post.
No total, a publicação contou com mais de mil likes, 219 partilhas e 155 comentários. Se a maior parte deles são favoráveis à publicação dos dados do dono do cão, também há quem questione a necessidade do método, por poder apelar à violência. Resposta da IRA: “Espero que tenha a noção de que não existimos para paninhos quentes. Quem maltrata os animais, terá consequências. Quem não concordar pode retirar o like da nossa página”.
Contactado pelo Observador, o dono em questão, garante que só recebeu um par de sms sobre o assunto e que nem sequer eram ofensivos. Problema: também assegura que só deixou a cadela no carro, estacionado à sombra e com os vidros abertos, durante os cinco minutos de que precisou para passar no supermercado e comprar umas quantas latas de comida para um gato que tinha resgatado uns dias antes. “A Nina apareceu-me há dez anos com uma bala numa das patas, que estava partida. Tinha um ou dois anos e estava muito debilitada, está comigo desde essa altura e a clínica veterinária que a trata pode atestar isso. Nunca esteve em situação de abandono nem de sofrimento. Gostava que a pessoa que tirou a fotografia, e a quem expliquei tudo isto, tivesse observado a cena com outros olhos.”
Uma dona, mais de 30 gatos. E lixo, muito lixo
Para além dos resgates, a IRA, que não tem instalações para acolher animais, mas estabeleceu protocolos com clínicas veterinárias e conta com a ajuda de famílias de acolhimento temporário (FAT’s, na gíria do ativismo animal) e de famílias de acompanhamento remunerado, também segue alguns casos sociais. O de Lídia, 75 anos, mais de 30 gatos, é o mais grave de todos. Por lei, em cada habitação, podem viver no máximo quatro animais.
Chegou-lhes também por denúncia, de vizinhos desesperados: num rés-do-chão no Intendente, a mulher acumula lixo e animais há pelo menos dois anos. O senhorio já tentou de tudo, ofereceu-se para pagar a limpeza do apartamento, ameaçou-a com uma ordem de despejo — não aconteceu nada. Ou aconteceu: primeiro um incêndio, alimentado a papel, embalagens vazias e lixo diverso, que destruiu uma das paredes da casa; depois um segundo arrendamento, na mesma zona, para alojar ainda mais gatos.
A PSP tentou, a técnica de ação social da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, acompanhada por uma funcionária do departamento de Higiene Urbana da Câmara Municipal de Lisboa, também — Lídia não abre a porta de casa a ninguém. Só aos membros da IRA, que nos últimos quatro meses têm vindo a levar os gatos para a Casa dos Animais de Lisboa (CAL), para serem esterilizados. “O objetivo é controlar a colónia e depois proceder à adoção dos animais. Acionar os meios legais para proceder ao despejo demora tempo e, enquanto o processo está a decorrer em tribunal, ela faz o que quer e coloca em risco a saúde pública e a vida dos outros moradores. Apesar de tudo, é coerente no diálogo — acho que por isso é que o delegado de saúde não consegue interná-la ou declará-la como incapacitada cognitivamente”, explica o fundador do grupo.
A barafustar, pequena, franzina, cabelo grisalho preso num carrapito, vem à porta na noite de outubro em que a visitamos. À visão do chão coberto de lixo, a uma altura de meio metro, e do móvel preto onde, explica outro membro do grupo, Lídia costuma despejar diretamente as latas de comida húmida, que vão depois escorrendo até se misturarem com o resto do entulho, decidimos que é impossível entrar. Perceberemos uns 200 metros à frente, no tal segundo apartamento, no interior de um típico pátio lisboeta, que há sempre forma de tudo piorar.
São umas 21h30. Chegamos no momento em que uma vizinha despeja um balde de água e lixívia na soleira da porta do lado — “Vocês têm de tirar isto daqui! Por favor! Eu não posso abrir a minha janela, eu não posso ter roupa estendida, vocês têm de nos ajudar”, implora antes mesmo de saber com quem está a falar.
Assim que a porta gira nos gonzos, recebemos na cara uma baforada de ar pútrido, escapa um cheiro nauseabundo, vemos uma nuvem de insetos e, para lá dela, uns sete, oito, nove gatos, magros, a coçarem-se desesperadamente. O lixo no chão tem a altura de pelo menos um metro. Dizem os membros do grupo, que já entraram no espaço, devidamente equipados com fatos anti-contaminação, que há ali um lanço de escadas. Não se consegue distinguir nada. Só lixo e gatos, lixo e gatos. E depois uma banheira de bebé, vermelha, que Lídia traz para a rua, carregada de dejetos dos animais.
Lá dentro, descalça os chinelos enquanto tenta apanhar os dois gatos ainda por esterilizar. De pés nus, vai praguejando e oscilando no discurso, tanto grita que está farta dos animais — “Quero ver se eles morrem!!!” — como fala de outros gatos, que viu algures na vizinhança e quer ir buscar. Diz que foi o senhorio que lhe pegou fogo à casa — “Ou então foi o vizinho de cima, com a beata!” –, quer saber quando lhe vão trazer latas de “paté”, para alimentar os bichos. Questionada sobre o lixo que acumula, responde o mesmo de sempre, a despachar: “Amanhã vou tirar aquilo tudo dali”. Escusado será dizer que nunca tira.
Ao Observador, Paula Nunes, técnica de ação social da junta de freguesia de Santa Maria Maior, confirmou o acompanhamento do caso e realçou o papel da IRA na sua — se não resolução — pelo menos contenção.
Recebeu a denúncia do caso (através do grupo) no passado dia 31 de maio, deu conhecimento do mesmo ao Ministério Público, através de um auto da PSP com quem foi ao local, seis dias depois: “Nós aqui na junta trabalhamos com as pessoas, não com os animais, e nem sequer temos nenhum processo social com esta senhora, mas isto é um caso de saúde pública, não podíamos não fazer nada. Falei com a PSP, com a Santa Casa da Misericórdia, com a Câmara, com a CAL, com a Unidade de Saúde da Baixa. Ofereci-me para fazer outra denúncia, mas, para ter algum peso e não ficar no fundo da pilha, preciso de ter acesso ao dossier da senhora, que já teve outros casos no passado. É a CAL que o tem, estou à espera há meses que me digam alguma coisa”, acusa a técnica de ação social.
O Observador tentou entrar em contacto com a diretora clínica da Casa dos Animais de Lisboa, sem sucesso. Entretanto, dias depois desta conversa e mais de quatro meses após a queixa inicial, Paula Nunes foi chamada à Divisão de Investigação Criminal para prestar declarações como testemunha no caso. “Agora vão ouvir todas as testemunhas. Mas continuamos a precisar de resposta da CAL. Esta senhora precisa de efetuar um tratamento, o resgate e esterilização dos animais não chega, porque se lhe tirarem estes ela vai arranjar outros”.
O fundador da IRA concorda: é preciso tratar a doença, não o sintoma, por isso mesmo é que faz questão de explicar aos donos dos animais maltratados que resgata por que motivo o faz. “O que nós pretendemos, além de salvar os animais, é explicar a quem lhes faz mal por que é que não o podem fazer. Caso contrário, no dia seguinte estamos lá outra vez, a resgatar outro animal”, diz. Ainda assim, também acredita que o segredo para acabar com os maus-tratos a animais, de companhia ou não, pode passar pela esterilização da população animal — e sua consequente diminuição. Tornar cães e gatos um luxo só à disposição de alguns — não por serem caros mas porque são raros, difíceis de conseguir e de manutenção elevada –, eis a proposta do grupo.
“A esterilização é a cura para o maltrato dos animais. Se for um privilégio, se for difícil ter um animal (porque há poucos, porque são precisas licenças e cursos de formação, e porque tudo isso custa bastante dinheiro) ninguém vai tratar mal os animais”, explica o fundador. Que até já tem um plano a nível nacional para o conseguir levar a cabo: transformar um autocarro em clínica ambulatória de esterilização, sair da zona de influência da IRA e percorrer o país todo a ajudar animais. O que têm feito ao longo da última semana, que passaram a recolher alimentos, medicamentos, mantas e afins para os animais afetados pelos incêndios, é uma espécie de estágio. Já em junho, aquando do fogo de Pedrógão Grande, tinham feito a mesma coisa.