O PS apresentou esta semana uma nova proposta de lei para despenalizar a eutanásia. Uma das autoras da lei, a deputada Isabel Moreira, recusa que o novo texto não responda às dúvidas de Marcelo Rebelo de Sousa e explica essa aproximação com a mudança para “doença grave e incurável”. A deputada espera que a lei possa ser aprovada e promulgada o mais rapidamente possível e lamenta ainda a posição do PCP quanto ao conflito na Ucrânia, acreditando que “se está a criar uma ferida emocional entre os portugueses e o partido”.
Isabel Moreira: “Está a abrir-se uma ferida emocional com o PCP”
Disse na apresentação do projeto da eutanásia que esta formulação “responde positivamente ao veto de Marcelo”. É uma maneira de dizer que agora o Presidente da República não terá motivos para vetar esta lei?
É uma maneira de dizer que, no nosso entender, as dúvidas suscitadas pelo Presidente da República são resolvidas com esta formulação que procurou precisamente responder a essas dúvidas.
Na proposta há uma alteração que passa por retirar “doença fatal” do conceito de “doença grave ou incurável.” Essa não é precisamente a questão que tem separado o presidente do Parlamento?
Gostava de explicar, porque tem sido aproveitado pelos detratores desta legislação, que vai para a terceira legislatura, que na letra e no espírito da lei nunca esteve a hipótese de só estar apto a pedir a morte medicamente assistida alguém que estivesse na iminência da morte, daí o problema da expressão fatal. De tal maneira que, na versão enviada para o Presidente da República e que depois seguiu para o Tribunal Constitucional, também existiam variações linguísticas, devido a alguma deficiente revisão formal do texto final. Na altura, isso não foi um problema para o Presidente da República e lendo o acórdão do Tribunal Constitucional fica claríssimo que o tribunal sabe que está a discutir um diploma que não diz respeito apenas a situações de doença fatal. No diploma que reformula os conceitos a pedido do Constitucional, há um artigo, o 2º, que tem as definições. Como todos os juristas sabem, quando num diploma há um artigo que diz “para efeitos deste diploma consideram-se” e depois elenca um conjunto de conceitos é esse artigo que vale para efeitos de interpretação ao longo de todo o diploma. No texto que foi para o Presidente da última vez, como não existiu correção da redação final, que foi até impugnada pelo CDS, o diploma foi com deficiências na redação final. Tinha as definições corretas, mas ao longo dos artigos existiam alterações e isso foi, do nosso ponto de vista, aproveitado pelo Presidente para vetar com aquela fundamentação, que na altura mereceu a crítica do PS, que não vamos agora repetir, porque não nos pareceu propriamente um veto político.
O que se fez agora foi voltar às definições e não foi deixar cair [a expressão doença fatal], foi deixar claro que a nossa definição bate certo em todas as vezes em que surgem ao longo do diploma e para irmos ao encontro da dúvida do Presidente da República pouca gente tem referido isto: no artigo 2º em vez de se dizer doença grave ou incurável passa-se a dizer doença grave e incurável, portanto não é verdade que não se tenha feito uma aproximação à dúvida do Presidente da República.
E portanto não alarga a abrangência da eutanásia?
Não, de forma alguma. Nunca se alargou, pelo contrário. Estas definições de morte medicamente assistida, de suicídio medicamente assistido, do que é a eutanásia, do que é doença grave, agora, e incurável, entre outros, seguiu passo a passo as indicações do acórdão do Tribunal Constitucional. Quando se revê um diploma seguindo esse acórdão, aquilo que se faz é seguir as pistas. Houve sim uma deficiente revisão formal do diploma enviado, até porque quando é aprovado, com larguíssima maioria, desce à comissão e há uma redação final global, que foi impugnada pelo CDS e foi de facto com essa variabilidade linguística que deu azo à possibilidade de veto
É uma espécie de clarificação do espírito do legislador, este texto?
Na primeira versão de todas, enviada ao Presidente, já havia alguma variabilidade nos conceitos e o Presidente da República não levantou nenhum obstáculo. Só desta vez é que prestou atenção a essa variabilidade e não estou a contestar isso, mas agora o que fizemos foi assegurar que não há variabilidade, apesar de ser para nós seguríssimo que para efeitos de interpretação vale sempre o artigo das definições.
O PS já recusou uma nova ronda de audições e clarificou que não alarga a abrangência. Acredita que — apesar da maioria absoluta — outros partidos podem colocar entraves ao processo legislativo?
Se não tivesse havido dissolução da Assembleia da República seria uma confirmação do veto e, aliás, se for ler o professor Gomes Canotilho nesta matéria ele entende que mesmo após a dissolução não era necessário apresentar um novo projeto lei — que bastaria confirmarmos. Nós não quisemos seguir essa via, para que não haja qualquer acusação de falta de democraticidade, mas isto é apenas uma correção linguística e é de resto exatamente o mesmo diploma. É tudo igual. Portanto, seria um pouco esdrúxulo ouvir todas as entidades que ouvimos na legislatura passada. Há audições que são obrigatórias, basta descer à 1ª comissão, portanto poderá existir um conjunto de audições, mas não se justifica ter o mesmo grau e intensidade que se teve no passado, quando fizemos este diploma com todos os artigos em que um a um foram objetivo de audições, escrutínio e pensamento. E tudo isso será aproveitado, naturalmente.
Eurico Brilhante Dias já apontou para setembro a votação do diploma. Espera que até ao final do ano este documento possa receber a luz verde do Presidente da República?
Gostava que fosse o mais rápido possível. Isto é um diploma que teve uma maioria muito expressiva no Parlamento e quem trabalha nele há muitos anos, como é o meu caso, está especialmente conhecedora da expectativa que muitas pessoas que estão num enorme sofrimento e que não têm, até pela situação que vivem, força física ou condições para se fazerem ouvir e para se manifestarem.
Isso foi-lhe apontado na campanha? Pessoas que a abordaram para não se esquecer?
Sim, mas não só. Tenho tido contactos por escrito e por telefone de pessoas que esperam desesperadamente por esta autonomia, por esta possibilidade de escolherem sem perseguição penal a morte medicamente assistida. Infelizmente já existiram pessoas com quem contactava que morreram sem essa possibilidade.
É conhecida a posição da Ordem dos Médicos, de ser contra esta solução. Isso leva-a a recear que, depois da aprovação da lei, existam obstáculos na regulamentação e aplicação da prática da eutanásia?
Não creio, porque a Ordem dos Médicos não representa a posição de todos. Existe um movimento grande de médicos pela escolha, mas sobretudo porque a Ordem tem todo o direito à sua posição e eu respeito-a, mas se a lei for aprovada, promulgada e entrar em vigor, é uma lei da República e todos têm que a respeitar.
Noutros assuntos, pela primeira vez é deputada durante uma maioria absoluta do PS. Que sinais é que o partido deve dar para seguir a frase de António Costa da “maioria absoluta não é poder absoluto”? Os debates quinzenais são obrigatórios?
É claro que não é poder absoluto, vivemos numa democracia, há separação de poderes e há “checks and balances“. Para não dizer o que já toda a gente disse, acho que é importante que o Governo, o grupo parlamentar e o PS não percam a noção da ligação à sociedade civil, no seu todo: às organizações participativas, às ONGs e que essa consciência da importância da escuta e do envolvimento da sociedade civil, na participação da tomada de decisão e na concretização das políticas. Esse é um elemento absolutamente fundamental. Quando um partido tem maioria absoluta e se esquece da sociedade civil é um erro trágico e estou segura que não vai acontecer.
Acha que aconteceu na anterior maioria absoluta do PS?
Não tenho grande capacidade de análise porque naquilo que foi a minha movimentação, eu estava do lado de lá, era ativista e aquilo pelo qual eu lutava correu bem. era uma ativista pelo casamento entre pessoas do mesmo sexo e esforçamo-nos muito para que o PS integrasse esse assunto no programa eleitoral. na altura, quando ganhou, já foi sem maioria absoluta, mas eu tive a sensação de ser auscultada, embora no nicho onde estava. Senti-me ouvida, mas não tinha uma vida política ativa como tenho agora. Tinha uma vida política, mas que tinha começado nesse momento e depois era essencialmente universitária.
Apoiou João Ferreira nas presidenciais. Desiludiu-a a posição de João Ferreira quanto a este conflito?
Não a do João Ferreira, desilude-me a do PCP e portanto, naturalmente, a de todas as pessoas do PCP que alinham nessa posição que considero suicidária. Penso que não se trata de uma adesão a Putin, que representa tudo o que é indecifrável ao olhar para o PCP, desde logo porque é financiador de partidos de extrema-direita, mas é uma não capacidade de leitura do que mudou. Este anti-americanismo violento, a posição histórica anti-NATO parece cegar um partido que podia ter escolhido a via do silêncio, mas que continua a não ter a consciência de que cada vez que fala, nos termos em que fala, causa uma enorme perplexidade — porque existe um invadido, crimes de guerra, entre outros –, que nos causa a nós coletivamente dor emocional. Estamos demasiado envolvidos nisto. isto é a defesa do nosso modelo de democracia e está a mexer connosco. Está a abrir uma ferida emocional entre os portugueses e o PCP. Daí a tentativas de considerar que o discurso do PCP pode constituir um crime de ódio ou tentativas de penalizar, juridicamente, o PCP, longe de mim. Para mim é um absurdo e não faz o menor sentido
Para terminar voltava ao assunto inicial. Se o Presidente da República continuar a vetar a lei da eutanásia é um sinal de bloqueio político?
O Presidente da República tem todos os poderes a partir do momento em que optámos por um processo legislativo novo e, por isso, longe de mim — que sou uma democrata e respeito a separação de poderes — de forma antecipada fazer qualquer comentário a um dos três poderes do Presidente: vetar politicamente, enviar para o Tribunal Constitucional ou promulgar.
Mas tem mantido distanciamento, Marcelo Rebelo de Sousa, entre a função de presidente e a opinião pessoal?
O Presidente optou por não fazer qualquer comentário, penso que é a postura correta. Na altura usará um dos três poderes possíveis. Aguardaremos.