Já foi dado como morto, mas as notícias da sua morte eram exageradas. Volodymyr Saldo, traidor para os ucranianos, herói para os russos, era, até há poucas horas, o homem forte de Moscovo na cidade de Kherson, libertada pela Ucrânia nesta sexta-feira. A 12 de setembro, depois de ter sido hospitalizado de emergência, Saldo foi dado como morto.
“Volodymyr Saldo morreu. Ele é eterno na nossa memória, na memória daqueles que vierem depois de nós. Apresento as minhas condolências à família de Volodymyr Vasilyevich. O sonho de Saldo de libertar Kherson tornar-se-á realidade”, escrevia Kiril Stremousov, que até ao início de novembro era vice-governador de Kherson, o seu número dois no iorganismo administrativo da região.
Ironia do destino, Saldo não morreu, mas Kiril Stremousov, o seu vice, sim. A 9 de novembro, era o chefe da administração russa em Kherson que fazia o obituário do colega. “Kirill era o mais patriota de nós — ao ponto do fanatismo. A sua morte motiva-nos a continuar o nosso caminho”, dizia Saldo. Kiril Stremousov morreu num acidente de carro.
O caminho de que fala Saldo é o de empurrar Kherson, região ucraniana, na direção da Federação Russa, apesar de o político ser ucraniano de nascimento. Nasceu em Zhovtneve, no verão de 1956, no tempo da União Soviética. O seu oblast, Mykolaiv, fica apenas a duas horas de caminho de Kherson, capital da província com o mesmo nome, onde fez currículo na política, muito antes da invasão russa.
Foi eleito por três vezes autarca da cidade — em 2002, 2006 e 2010 — e a sua simpatia pelo Kremlin nunca foi escondida. Em 2012, a sua carreira política levou-o até à Verkhovna Rada, o parlamento ucraniano, onde foi eleito deputado pelo Partido das Regiões, fundado em 1997. Até à revolução ucraniana (Euromaidan em 2014), o partido pró-russo — com o apoio do qual Viktor Yanukovych se tornou Presidente da Ucrânia — tornou-se o maior do país. Desde 2014, o partido não voltou a apresentar-se a eleições.
Em 2014, Saldo foi sempre contra as manifestações dos ucranianos que exigiam a demissão do Presidente pró-russo Yanukovych e que, em contrapartida, queriam uma aproximação ao Ocidente. Saldo nunca hesitou em defender Viktor Yanukovych, colega de partido, deposto depois de quase 100 dias de protestos.
Já depois da ocupação russa, a 14 de março, Saldo escrevia na sua conta oficial de Facebook: “Eu não traí a minha alma, a minha alma é Kherson, e Kherson é a Ucrânia.” Apesar disso, a 11 de junho, estava entre os primeiros 23 moradores da cidade a receberem passaportes da Federação Russa, como relatou a Radio Svoboda.
A 24 de fevereiro, Saldo mostrou as verdadeiras cores. E não eram azul e amarelo
Ser mais próximo de Moscovo do que dos países do Ocidente não teria de ser sinónimo de apoiar a ocupação russa. No caso de Saldo, foi. Depois da invasão russa, a 24 de fevereiro, Saldo mostrou de que lado estava e participou em comícios pró-Rússia em Kherson, como escreve a imprensa ucraniana. Apesar disso, inicialmente, a sua posição era contra a criação de uma república popular de Kherson, semelhante às que tinham nascido em Lugansk e Donetsk em 2014.
Kherson foi ocupada logo no início da invasão, a 2 de março. Por essa altura, Saldo participou em reuniões de colaboracionistas russos, de onde nasceu o chamado Comité de Salvação pela Paz e Ordem. A ideia — russa, não ucraniana — era que aquele organismo se tornasse a nova autoridade de Kherson. Em abril, a importância de Saldo para Moscovo ficou clara: no dia 26 foi nomeado chefe da administração russa.
Três dias depois, a Ucrânia acusava-o oficialmente de traição. O anúncio foi feito pela Procuradoria Regional de Kherson que lhe apontava o crime de traição cometida sob a lei marcial: “De acordo com a investigação, o deputado do conselho da cidade passou para o lado do inimigo durante a ocupação russa.”
O nome do governador juntou-se aos de generais, magistrados e até um amigo de infância de Zelensky— e responsável pelos Serviços de Segurança ucranianos — afastados das suas funções e em relação aos quais foram abertas investigações por suspeitas de traição, por diferentes motivos.
O envenenamento, a morte e a anexação russa
As primeiras notícias sobre problemas de saúde de Saldo surgiram no início do verão, a 13 de julho, com o próprio a relatar alguns dos acontecimentos no seu canal de Telegram. “Depois de uma reunião com o governo da região de Kherson, o ministro da Saúde veio ter comigo e insistiu para que fizesse imediatamente um exame médico”, escreveu o político numa altura em que já estava hospitalizado.
“Eu, claro, recusei, mas o ministro trouxe consigo médicos que, depois de fazerem um exame, insistiram na minha hospitalização imediata. Depois de discutir com os meus colegas, decidi concordar com as sugestões médicas”, escreveu no Telegram. Passados poucos dias, as notícias apontavam para o agravamento do seu estado de saúde. As agências estatais russas falavam em envenenamento, ideia que, mais tarde, seria rejeitada pelo seu círculo mais próximo. A hipótese de um ataque de coração chegou a ser ponderada, mas os exames médicos revelaram não ser esse o problema.
Em estado grave e em coma induzido, a 5 de agosto, Saldo acabou por ser transferido para um hospital em Moscovo, anunciava a agência Baza. Cerca de um mês depois, era dado como morto pelas principais agências de notícias russas como a Ria Novosti, a Gazeta ou o Canal 24. As notícias da sua morte acabaram por ser desaparecer da internet.
Duas semanas depois de Kiril Stremousov ter feito o elogio fúnebre do amigo, Saldo aparece no Kremlin, vivo e de boa saúde, embora visivelmente mais magro. Era dia 30 de setembro e Vladimir Putin anunciava oficialmente a anexação de quatro regiões ucranianas: Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporíjia.
“Existem quatro novas regiões russas. As pessoas que moram nessas quatro províncias estão a tornar-se cidadãos russos para sempre”, acrescentou o Presidente russo, depois de terem sido feitos referendos ilegais, não reconhecidos pela comunidade internacional, sobre a vontade da população de se unificar com a Federação Russa.
Ao lado de Putin estiveram Saldo, Yevgeny Balitsky (Zaporíjia), Denis Pushilin (Donetsk) e Leonid Pasechnik (Lugansk). Todos eles passaram a ser governadores das respetivas províncias.
Sequestrado ou sequestrador? O incidente na República Dominicana
Na história de Saldo, muito antes da invasão russa, há um episódio que continua sem ser esclarecido até hoje, devido às versões contraditórias. No verão de 2016, um parceiro de negócios acusou Saldo de o ter raptado, o que lhe valeu ser detido na República Dominicana e condenado a uma pena de cadeia de três meses. O crime teria sido cometido naquele país.
Quando regressou à Ucrânia, a história contada pela família e advogados de Saldo era outra: foi Denys Pashchenko, também ucraniano, quem o raptou e, segundo o relato do político, esteve mais de 50 dias acorrentado a uma cama. Durante esse tempo, Pashchenko gravou vários vídeos de Saldo, onde o obrigava a dizer que era colaborador da Rússia. O seu objetivo era trocar as confissões por um resgate, segundo Saldo.
A fuga para a Crimeia e a evacuação de Kherson
Em outubro deste ano, Saldo volta a ser notícia. Por essa altura, as forças ucranianas estavam a reconquistar cada vez mais território na região e as autoridades russas decidem pôr em andamento a evacuação de Kherson. A 10 de outubro, a imprensa ucraniana dá conta de que Saldo já não está na cidade. “Saldo fugiu para a Crimeia”, escrevia o Most Kherson, baseando-se nas imagens de um vídeo partilhado nas redes sociais pelo ucraniano.
Nos dias seguintes, os vídeos de Saldo no Telegram continuam. “Tive de tomar a difícil, mas correta decisão de anunciar a transferência da população das localidades de Berislav, Belozersky, Snigirevsky e Aleksandrovsky para a margem esquerda do Dnipro”, devido ao risco de ataque ucraniano, explicava.
As suas últimas publicações são de 10 de novembro, véspera da entrada dos militares ucranianos em Kherson, depois de oito meses de ocupação. Saldo estava num encontro em Henichesk, cidade no sul do oblast de Kherson, a três horas de distância da capital da região, onde, entre outros, estiveram presentes membros das comissões do Senado e da Duma.
O desejo de Saldo, apesar da evacuação, mantinha-se: “Nesta reunião, estamos a planear o futuro da região de Kherson como parte da Federação Russa”, escreveu no Telegram, distanciando-se cada vez mais dos dias em que dizia que Kherson era Ucrânia.