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Artigo publicado originalmente em outubro de 2018 e atualizado em outubro de 2023, a propósito dos cinco anos da morte de Jamal Khashoggi
Um jornalista saudita entra num consulado do seu país em Istambul e nunca mais ninguém sabe do seu paradeiro. As autoridades do consulado dizem que voltou a sair. A noiva, que estava à porta, garante que não. Onde está? Ninguém consegue responder. No mesmo dia, 15 elementos dos serviços secretos sauditas aterram na Turquia em dois jatos privados. Têm hotel marcado para três noites, mas voltam a sair do país no mesmo dia. O que foram lá fazer? Ninguém sabe. Mais um dado: duas horas e meia depois de o jornalista ter entrado no consultado, as câmaras de vigilância do edifício registam a saída de seis carros com matrícula diplomática, com 15 passageiros a bordo, seguidos de uma carrinha de vidros escuros. Quem eram e para onde foram? E o que transportavam na carrinha? A resposta é igual às anteriores.
Estas eram as interrogações que pairavam naquela primeira semana de outubro, do ano de 2018, em torno de Jamal Khashoggi. O jornalista saudita, crítico das ações do príncipe herdeiro Mohammad bin Salman (MbS) e alvo de pressões na Arábia Saudita que o levaram a exilar-se nos Estados Unidos, ia apenas pedir um papel ao consulado do seu país em Istambul — mas acabou por não sair de lá com vida.
Logo à altura, as autoridades turcas admitiam que pudesse ter sido morto, talvez até dentro das quatro paredes daquela missão diplomática. Inicialmente, Riade negou responsabilidades. O Washington Post, jornal onde Jamal escrevia regularmente colunas de opinião, publicou uma coluna em branco e prometia não descansar até saber o que aconteceu.
We are holding a spot for Jamal Khashoggi in Friday’s newspaper https://t.co/gBro1ilFZC pic.twitter.com/eCLKqJYHwT
— Washington Post Opinions (@PostOpinions) October 5, 2018
Não demoraria muito até a suspeita ser confirmada. Naquele dia 2 de outubro, Jamal Khashoggi entrou no consulado saudita, onde foi morto por um grupo de 15 homens, vários deles próximos do príncipe regente MbS. Khashoggi foi asfixiado. Depois de morrer, o seu corpo foi desmembrado com uma serra e transportado para fora do edifício. Agora, cinco anos depois, a família e amigos do jornalista continuam sem saber onde estão os seus restos mortais.
E, embora MbS continue a rejeitar ter ordenado o homicídio e garantir que foi uma missão não autorizada dos seus agentes, os serviços de informação norte-americanos declararam em 2021 que é “extremamente improvável” que uma operação deste tipo tenha ocorrido “sem a autorização do príncipe herdeiro”. Os contornos exatos do envolvimento do Bin Salman continuam por apurar, mas não há dúvidas de que o jornalista saudita se tinha tornado há muito persona non grata no seu próprio país.
Isso mesmo contou o próprio ao Observador, numa tarde de outono de 2017. A viver em Washington há apenas um par de meses, estava em Los Angeles de visita quando recebeu um email de uma jornalista de um país distante como Portugal, pedindo-lhe para comentar as mudanças que MbS estava a introduzir no seu país. Jamal, jornalista de 59 anos de idade e muitos de experiência, aceitou. Estava sempre disponível para falar sobre o seu país.
“A minha mulher preferiu estar segura do que estar a meu lado”
Dias depois, Jamal Khashoggi atendeu a chamada do Observador: “Good morning”, disse a voz do outro lado, num inglês impecável, apenas traído pelo ligeiro carregar do “erre”. Jamal aceitou falar sem qualquer limite de tempo, respondendo a todas as perguntas. Na conversa, não se limitou à clínica e fria análise política: partilhou a sua história pessoal, incluindo mesmo detalhes da sua vida íntima.
“Foi muito difícil tomar esta decisão [de vir sozinho para os Estados Unidos]. Os meus filhos já são crescidos e têm bons empregos, mas foram proibidos de sair do país. O meu casamento desfez-se devido ao facto de eu ser publicamente crítico do regime. A minha mulher preferiu estar segura do que estar a meu lado”, confessou, tomando ele próprio a iniciativa de falar sobre a sua família e o seu divórcio. Os seus filhos adultos a viver na Arábia Saudita — confessou Jamal à medida que a conversa se encaminhava para o final, com a voz ligeiramente tremida — tinham medo de partilhar os artigos de opinião do pai nas redes sociais.
Revolução na Arábia Saudita: “É como ver os Tudors em fast forward”
A decisão de sair do país, contou, foi tomada depois de receber um telefonema de Saud al-Qahtani, homem próximo da Família Real, por vezes apelidado de “Steve Bannon” saudita. “Foi um telefonema muito educado em que ele me disse que tinha instruções para me proibir de continuar a escrever a minha coluna de opinião”, resumiu o jornalista. Jamal já tinha assistido às pressões feitas sobre outros colegas jornalistas, com menos anos de carreira ou estatuto que o seu. E até ele próprio já tinha recebido avisos de que não deveria tweetar sobre determinados temas. Curiosamente, alguns dos 15 homens que viriam a matar Khashoggi faziam parte do Centro Saudita para os Estudos e Assuntos dos Media, liderado por Al-Qahtani.
O telefonema que ditou o fim da sua coluna no jornal foi a pressão final que o fez temer pela sua liberdade: Jamal fez as malas, despediu-se dos filhos e partiu. Chegado aos EUA, não demorou a conseguir um lugar como colunista no Washington Post. O seu primeiro texto não deixou margem para dúvidas sobre o que pensava da situação no seu país: “A Arábia Saudita nem sempre foi assim tão repressiva. Agora é insuportável”, lia-se no título.
O exílio, contudo, não lhe trouxe alívio. Para além das saudades dos filhos e do seu país, começou a temer pela sua segurança. “Eles gostariam de me ver fora de cena”, confessou à jornalista da New Yorker Robin Wright, em agosto. Antes disso, já tinha tocado ao de leve nessa possibilidade no telefonema que teve com o Observador, embora não entrando em pormenores: “O príncipe é cheio de auto-confiança, mas não quer ter nenhuma oposição, não quer ouvir nenhuma opinião que lhe seja desfavorável. Acha que pessoas como eu podemos distorcer a sua mensagem — e, por isso, quer-nos fora do seu caminho”, sentenciou.
Também já tinha comparado o que está a acontecer em Riade a uma série de televisão sobre uma corte sangrenta do passado, numa frase que deu o mote ao texto final: “Conhece ‘Os Tudors’?”, perguntou casualmente. “O que está a acontecer na Arábia Saudita é como ver ‘Os Tudors’ em fast-forward. É ver as coisas a acontecerem da noite para o dia, estar tudo a mudar e de uma forma sem precedentes.”
Foi uma das várias críticas que estava habituado a fazer ao regime de MbS, denunciando a “vaga de detenções” no país e as tentativas de “humilhação pública” a intelectuais e líderes religiosos que discordem do príncipe herdeiro. Mas Jamal também sabia ser equilibrado: foram várias as situações em que reconheceu mérito à nova liderança saudita, como no caso da autorização para as mulheres conduzirem ou na reabertura dos cinemas. “Não sou um extremista”, declarou numa entrevista à Economist. “Acredito no sistema — quero apenas um sistema com reformas. Quero que o sistema me deixe ter voz e me autorize a falar”, declarou.
Jamal não se via a si mesmo como um exilado político, garante a editora do Washington Post Karen Attiah: “A missão dele era muito clara: ele só queria poder escrever e ser um jornalista”.
De dissuasor de Bin Laden no Afeganistão a jornalista rebelde no Bahrain
Jamal Khashoggi nasceu na cidade saudita de Medina, em 1958. Filho de um comerciante de têxteis, estudou jornalismo nos Estados Unidos, licenciando-se pela Universidade do Indiana. Começou a carreira no jornal saudita de língua inglesa Saudi Gazette e no final dos anos 80 trabalhava já para o influente Asharq al-Awsat, jornal saudita baseado em Londres. O seu trabalho na década de 90 daria nas vistas, cobrindo países como o Afeganistão e o Kuwait.
Durante esse período, entrevistou várias vezes Osama bin Laden, à altura guerrilheiro nas montanhas afegãs. O jornalista do Washington Post David Ignatius esclarece que Khashoggi chegou a criar laços de amizade com Bin Laden, tendo tentado demovê-lo de perseguir a via da violência para defender o Islão. “Não conseguiu”, escreve Ignatius. “Mas ele nunca evitou reconhecer o mal que a Al-Qaeda trouxe à Arábia Saudita e ao mundo. Escreveu uma coluna para o Daily Star, em Beirute, a 10 de setembro de 2002, com o título ‘Um mea culpa saudita’. Numa altura em que muitos sauditas estavam a tentar arranjar desculpas para os atentados da Al-Qaeda, Khashoggi descreveu o 11 de setembro como um ataque aos ‘valores da tolerância e da coexistência’ e ao próprio Islão.”
Embora seja um antigo membro da Irmandade Muçulmana, Khashoggi sempre foi próximo da Família Real saudita. Trabalhou como conselheiro do príncipe Turki bin Gaisal — ex-diretor dos serviços secretos sauditas e embaixador nos Estados Unidos entre 2005 e 2006. Mas isso não o impediu de tentar sempre manter a independência jornalística, o que chegou a trazer-lhe alguns dissabores ainda antes do seu exílio. Em 2003, já tinha sido despedido do cargo de diretor do jornal Al-Watan — dizem alguns por existir desconforto com a sua “política editorial”. Em 2007, voltou a ocupar o cargo, sendo novamente despedido três anos depois. Foi então escolhido para diretor do canal de televisão Al Arab, sediado no Bahrain. Em 2015, o canal foi encerrado: oficialmente, citaram “razões técnicas e administrativas”, mas a decisão pode não ter sido alheia ao facto de Khashoggi ter autorizado uma entrevista a um membro da oposição política no Bahrain.
Em 2017, já com MbS a pôr em marcha a sua transformação da sociedade saudita, chegou o telefonema que ditou o exílio de Jamal. Um ano depois, o jornalista parecia ter conseguido reconstruir parte da sua vida: tinha comprado uma nova casa e estava de casamento marcado com uma mulher turca, Hatice Cengiz, mestranda em estudos políticos do Golfo Pérsico. Foi precisamente por causa desse casamento que Khashoggi se dirigiu, naquela terça-feira, ao consulado saudita em Istambul: o jornalista ia apenas pedir uma certidão de divórcio da sua ex-mulher — aquela que tinha recusado acompanhá-lo para os EUA –, ditando assim o fim do seu casamento.
A visita ao consulado que se revelou fatal
A visita ao consulado era, por isso, de rotina. Uma das pessoas com quem almoçou nesse dia, Azzam Tamimi, recordou ao New York Times como o jornalista tentou reconfortar os amigos, que temiam que Jamal sofresse represálias ao entrar no consulado pelas suas posições críticas de MbS. Os funcionários do consulado, disse o jornalista nesse almoço, “são sauditas normais e os sauditas normais são boas pessoas”.
Jamal foi depois com Hatice até ao edifício do consulado. À porta, deixou o seu telemóvel com a noiva, Hatice Cengiz, já que é proibido entrar com o aparelho. Mas, por precaução, deixou um aviso a Hatice: caso não regressasse, ela deveria contactar um conselheiro do Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan. Foi isso mesmo que acabou por acontecer 11 horas depois, quando a noiva deu o alarme.
Horas depois, as autoridades turcas reagiram oficialmente ao alerta. Primeiro, um conselheiro do Presidente declarou à agência Reuters que acreditava que Khashoggi fora assassinado no consulado. Depois, o Presidente turco confirmou publicamente que o caso estava a ser investigado: “As entradas e saídas da embaixada, as movimentações no aeroporto e os registos de câmaras de segurança estão a ser analisados. Queremos ter resultados rápidos”, disse.
Três fontes (dois turcos e um responsável de um Governo árabe) declararam ao New York Times que a tese de que Khashoggi teria sido assassinado no consulado era a que tinha mais força. Turan Kislakci, líder da Associação de Media Turco-Árabe, foi ainda mais longe: “Eles confirmaram duas coisas: que ele foi morto e que o seu corpo foi desmembrado”, declarou. A noiva de Jamal fez um post no Twitter, onde disse não conseguir crer nessas notícias: “O Jamal não está morto. Não consigo acreditar que ele foi morto”, escreveu.
جمال لم يقتل ولا اصدق أنه قد قتل …! #جمال_الخاشقجي #اختطاف_جمال_خاشقجي pic.twitter.com/5SHyIEqqiT
— Hatice Cengiz خديجة (@mercan_resifi) October 6, 2018
Três dias mais tarde, ainda antes de as autoridades turcas abordarem a possibilidade de homicídio, o próprio príncipe MbS comentou o caso, numa entrevista à Bloomberg, declarando que Khashoggi teria saído do consulado menos de uma hora depois de ter entrado. “Ele é um cidadão saudita e estamos muito interessados em saber o que lhe aconteceu”, disse, rejeitando responsabilidades no desaparecimento e garantindo total abertura para que o consulado seja alvo de buscas por parte das autoridades turcas. “Não temos nada a esconder”, acrescentou, desafiador.
Mas as informações que reforçavam a tese de que Khashoggi fora assassinado continuaram a cair, a conta-gotas. Dias depois do desaparecimento, o jornal turco Sabah noticiava que dois jatos privados que transportavam 15 elementos dos serviços secretos sauditas aterraram em Istambul no dia em que Khashoggi entrou no consulado — um antes de ele ter entrado, o outro mais tarde. Os passageiros do primeiro voo ter-se-ão instalado num hotel perto do consulado saudita; os do segundo terão ido ter diretamente ao edifício do consulado. Ambos os grupos partiram da Turquia no próprio dia.
Para além disso, havia ainda a informação de que os funcionários turcos do consulado tiveram dispensa do trabalho nesse dia, de forma inesperada. E juntava-se a tudo isto os registos das câmaras de segurança, que foram analisados pelas autoridades turcas e que, segundo o The Guardian, desapareceram inicialmente do consulado de Istambul. Neles, é possível ver um grupo de seis veículos a abandonar o consulado cerca de duas horas e meia depois de o jornalista ter entrado no edifício — os 15 agentes iam nesses carros. Para além deles, saíram ainda uma carrinha negra de vidros fumados e um outro carro, que se dirigiram para a residência oficial do cônsul saudita, onde ficaram durante quatro horas.
Cinco anos depois, não há consequências da morte de Khashoggi
De imediato, várias organizações de defesa dos direitos humanos denunciaram que estava em causa uma tentativa do regime de MbS silenciar um dos seus críticos mais destacados. “O caso produz uma onda de choque entre os defensores dos direitos humanos e dissidentes da Arábia Saudita em todo o lado, com a erosão de qualquer ideia de que é possível procurar um porto seguro fora do país”, declarou a Amnistia Internacional, definindo este possível assassínio político como “um terrível novo ponto baixo”.
Cinco anos depois, a ONG faz um balanço negro da situação. “O caminho para ser alcançada justiça por esta morte continua totalmente obstruído”, declarou a Amnistia num novo comunicado publicado esta segunda-feira, apelando a que seja aberta uma investigação judicial ao homicídio em qualquer país, ao abrigo do Direito Internacional. “É chocante que, em vez disso, a comunidade internacional continue a estender a passadeira vermelha aos líderes da Arábia Saudita, colocando os interesses diplomáticos e económicos acima dos direitos humanos.”
Em concreto está a postura de governos como o norte-americano. Em 2021, os serviços de informação dos Estados Unidos responsabilizaram MbS pela morte de Khashoggi e o secretário de Estado, Antony Blinken, afirmou que as “ameaças e ataques” da Arábia Saudita a “ativistas, dissidentes e jornalistas” não serão “toleradas pelos Estados Unidos”. Na prática, porém, nada mudou na relação entre Washington e Riade.
A título de exemplo está o caso do processo movido pela noiva de Khashoggi, Hatice Cengiz, contra Bin Salman. Em novembro do ano passado, o Departamento da Justiça praticamente inviabilizou esse caso judicial, ao decretar que o príncipe herdeiro da Arábia Saudita tem imunidade, por ter sido entretanto nomeado primeiro-ministro do país. A decisão foi tomada a pedido do Departamento de Estado norte-americano, liderado por Blinken, noticiou a CNN.
“Nós, sauditas, merecemos melhor”
Jamal Khashoggi costumava definir-se não como ativista, mas sim como jornalista. No entanto, tinha consciência do caráter político da decisão que tomou ao sair do país em protesto. Não foi a primeira vez que viu abusos no seu próprio país que o preocuparam: no passado, reconheceu, ficou muitas vezes calado, por medo. “Fiz uma escolha diferente desta vez. Deixei a minha casa, a minha família e o meu trabalho e estou a levantar a minha voz”, escreveu na sua primeira coluna no Post. “Quero que saibam que a Arábia Saudita nem sempre foi como é agora. Nós, sauditas, merecemos melhor.”
Isso mesmo disse Jamal ao Observador, naquela manhã de outono em que estava em Los Angeles a conversar por telefone com uma jornalista portuguesa, do outro lado do mundo. “Se calhar, eu sou só um velho sem importância. Espero mesmo que [MbS] seja bem sucedido, mas acho que sozinho vai acabar por falhar”, lamentou-se, depois de ter partilhado a “sensação” de desconforto com que por vezes acordava. Mas não quis entrar em pormenores e recusou sempre lamentar-se. “Não quero parecer um tipo da oposição zangado”, confessou.
A sua preocupação, explicou, estava apenas com os seus compatriotas: “Eu acredito no sistema, acredito no papel da Casa de Saud [família real]. Só gostava que eu e os outros sauditas pudéssemos participar. Andam a ser tomadas decisões importantes sem ouvir ninguém e acho que isso não é justo”, disse, talvez numa tentativa de simplificar as suas preocupações profundas para uma audiência estrangeira.
“Não é justo”, repetiu o jornalista uma última vez, deixando a frase perdurar do outro lado da linha antes de se despedir, agradecer e desligar.