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A mão do juiz Pedro Godinho bateu na mesa do tribunal de Setúbal. Duas pancadas na madeira que pareciam querer fazer estremecer o corpo dos cinco arguidos que se sentavam à sua frente e que esperavam pela leitura das folhas pousadas naquela mesma mesa que iriam ditar o seu futuro. “Só o barulho incomoda. Foram 78 destas [pancadas no corpo de Jéssica]”, disse logo a seguir, sem tirar os olhos de Inês Sanches, Ana Pinto, Esmeralda Montes e Justo Montes — todos condenados à pena máxima aplicada em Portugal pelo crime de homicídio qualificado. E, para explicar a razão que levou o tribunal a chegar aos 25 anos de prisão, foi colocando questões. Duras. “Quantas mais [pancadas] tinha de levar para a culpa bater no teto? Quantas mais queimaduras? Quantos mais puxões? Foram arrancados cabelos a uma criança moribunda”, concluiu.
O juiz não ficou por aqui nas críticas. Foi essa a marca durante a leitura de toda a sentença. Não deixar nada por dizer. Nem à mãe de Jéssica, nem às três pessoas que ficaram com a criança em sua casa e lhe bateram até à morte, nem mesmo ao Estado, que também “falhou” com a criança. “Se o Estado tivesse sido Estado, não estaríamos aqui. Os pais falharam, o Estado falhou. Nem os pais, nem o Estado são dignos de representar Jéssica Biscaia”. Há muito que não se ouvia algo tão forte num tribunal.
Os arguidos, as acusações, as condenações e as absolvições
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- Inês Sanches, mãe de Jéssica Biscaia
Acusada pelo Ministério Público de um crime de homicídio qualificado e um crime de ofensas à integridade física qualificada.
Absolvida pelo Tribunal de Setúbal do crime de ofensas à integridade física e condenada pelo crime de homicídio qualificado por omissão a 25 anos de prisão.
- Ana Pinto, mulher que terá feito os serviços de bruxaria
Acusada pelo Ministério Público de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado, um crime de coação agravada na forma tentada, um crime de homicídio qualificado, um crime de rapto, dois crimes de rapto agravado, dois crimes de ofensas à integridade física qualificada.
Condenada pelo Tribunal de Setúbal a 25 anos de prisão pelo crime de homicídio qualificado por ação e omissão. Absolvida dos restantes crimes.
- Esmeralda, filha de Ana Pinto e de Justo Montes
Acusada pelo Ministério Público de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado, um crime de coação agravada na forma tentada, um crime de homicídio qualificado, um crime de rapto, dois crimes de rapto agravado, dois crimes de ofensas à integridade física qualificada.
Condenada pelo Tribunal de Setúbal a 25 anos de prisão pelo crime de homicídio qualificado por ação e omissão. Absolvida dos restantes crimes.
- Justo Montes, companheiro de Ana Pinto
Acusado pelo Ministério Público de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado, um crime de homicídio qualificado, um crime de rapto, dois crimes de rapto agravado, dois crimes de ofensas à integridade física qualificada.
Condenado pelo Tribunal de Setúbal a 25 anos de prisão pelo crime de homicídio qualificado por ação e omissão. Absolvido dos restantes crimes.
- Eduardo Montes, filho de Ana Pinto e de Justo Montes
Acusado de um crime de tráfico de droga agravado e um crime de violação agravado.
Absolvido pelo Tribunal de Setúbal de todos os crimes.
Aconteceu na maior sala daquele tribunal, onde não ficou sequer um lugar por ocupar esta terça-feira. Eram mais de 40 pessoas — entre curiosos, familiares e jornalistas. Sentaram-se para ouvir a leitura do acórdão que determinou a condenação pela morte de Jéssica. E foi preciso chegar à última sessão do julgamento dos arguidos para acontecerem algumas coisas pela primeira vez: o presidente do coletivo de juízes entrou antes dos arguidos detidos e não se ouviu um único comentário durante toda a sessão.
“A única que falou, e falou muito, foi a Jéssica”
Quatro dos cinco arguidos aguardaram julgamento na prisão e são precisamente estes que lá vão continuar nos próximos 25 anos. E o juiz Pedro Godinho quis garantir que todos — a mãe de Jéssica e os três membros da família Montes — saíssem daquela sala cientes do crime bárbaro pelo qual tinham acabo de ser acusados. A opção foi então deixar as folhas do acórdão de lado e explicar, por palavras simples, o que estava em causa. Era, para ele, muito simples: “Jéssica perdeu o direito à infância” no dia 20 de junho de 2022. E, para a Justiça, os culpados estavam ali sentados.
Durante o julgamento, só Esmeralda Montes, a filha de Justo e de Ana Pinto, optou por não falar. Manteve-se sempre em silêncio. Aliás, os olhos de Esmeralda só denunciaram aquilo que estava a sentir quando ouviu a procuradora do Ministério Público Cláudia Guerreira, na penúltima sessão, durante as alegações finais, pedir a condenação de 25 anos de prisão. Aí, sim, ouviram-se também as suas preocupações: “A minha filha”. E esta terça-feira, voltou a chorar quando ouviu o juiz confirmar as pretensões do Ministério Público.
Mas os restantes arguidos, mesmo quando falaram, não convenceram o coletivo de juízes. Os avisos foram dados durante o julgamento e confirmados esta terça-feira, quando o juiz, olhando para cada um dos arguidos, lhes explicou que os depoimentos foram contraditórios e que todos desperdiçaram a oportunidade de revelar o que realmente aconteceu durante as duas vezes em que Jéssica esteve em casa da família Montes. “Quem esteve lá não nos quis contar o que aconteceu e, quem contou, fê-lo com muitas mentiras.”
Para o tribunal, ninguém disse a verdade. Com uma exceção: “Este julgamento teve muitas peripécias, mas felizmente temos a ajuda da ciência. A única que falou, e falou muito, foi a Jéssica Biscaia. Falou por intermédio da autópsia e por intermédio do senhor perito que falou aqui em tribunal”.
O corpo da criança de três anos que morreu no ano passado revelou, de facto, o suficiente para a condenação pela pena máxima. As pancadas que o juiz Pedro Godinho deu na mesa foram talvez mais leves do que aquelas que foram dadas a Jéssica, enquanto esteve na casa de Esmeralda, Ana Pinto e Justo Montes. O Ministério Público precisou de nove páginas e 104 pontos para descrever as lesões e o perito do Instituto de Medicina Legal não teve dúvidas quando afirmou que “parece que andaram a jogar à bola com a criança”. “A escala de dor vai de 0 a 7. Eu diria 7”, acrescentou numa das sessões.
“Ana Pinto, Esmeralda Montes e Justo Montes sabiam que a violência que Jéssica estava a sofrer poderia resultar na sua morte”, continuou o juiz. Durante cerca de duas horas, as críticas a estes três arguidos não foram poupadas. “Não é preciso ser licenciado em Direito para saber que quem acolhe uma criança em sua casa assume o dever de garantir a sua segurança e defesa”, disse o presidente do coletivo de juízes, acrescentando que, independentemente do motivo que levou Jéssica Biscaia a casa da família Montes, estes tinham o dever de a proteger e não de a agredir.
“Sabiam que era uma criança indefesa, sabiam que as diárias e sucessivas agressões, incluindo cabeça e sola dos pés, provocariam grande sofrimento e tortura.” Jéssica apresentava lesões por todo o corpo e foi, como explicou o perito do Instituto de Medicina Legal numa das sessões do julgamento, abanada e atirada contra uma superfície dura várias vezes.
Inês Sanches. Versões diferentes e responsabilidade que “deliberadamente desprezou”
O juiz Pedro Godinho foi o único a falar nesta sessão — a nona do julgamento — e foi alternando entre questões, explicações e ombros encolhidos, como para quem é impossível entender o motivo que levou às violentas agressões a Jéssica. E também não consegue perceber por que razão Inês Sanches nunca levou a filha ao hospital, nem nunca apresentou queixa. Aliás, como foi dito esta terça-feira, Inês fez o percurso entre sua casa e a casa da família Montes várias vezes, durante os dias em que a sua filha foi agredida e, nesse caminho, o único momento em que os seus passos ganhavam mais velocidade era quando passava à frente do posto da GNR.
“A arguida Inês Sanches dirigiu-se a casa dos arguidos, constatou que a sua filha tinha queimaduras” e voltou para casa “sem contar a ninguém o que tinha visto”. “Inês Sanches sabia que era mãe de Jéssica e que tinha responsabilidade, que deliberadamente desprezou”, acrescentou o juiz, olhando para a mãe de Jéssica, que chorava.
O tribunal esperava que Inês Sanches tivesse sido capaz de contar o que realmente aconteceu e ajudasse a responder às questões que permanecem sem resposta. Mas a mulher, que continua detida na prisão de Odemira, contou apenas várias versões sobre uma alegada dívida, primeiro de droga, depois por serviços de bruxaria para manter a sua relação com o companheiro da altura. Nenhuma convenceu o coletivo. “Obviamente, o tribunal não se pode agarrar a isso. Demos como provado que terá havido uma dívida. Agora, de que é que era a dívida, não fazemos ideia. E não fazemos ideia por que é que a Jéssica foi entregue duas vezes no Beco do Pinheiro. E a ameaça também não faz qualquer sentido.”
Foi sobretudo pelas incongruências no depoimento de Inês Sanches que o tribunal considerou que o “enredo” descrito na acusação, sobre a dívida por serviços de bruxaria não foi dado como provado. Existiu, por isso, “falta de prova, apesar de alguns indícios”.
Provado ficou o facto de Inês Sanches não ter feito nada para ajudar a sua filha e esse foi o motivo que levou o tribunal a condenar a mãe de Jéssica pelo crime de homicídio qualificado por omissão. “Gostava da filha para a ter, como um objeto”, acrescentou o juiz, explicando depois que o crime de ofensas à integridade física não seria considerado na condenação por estar já previsto no crime de homicídio.
As dúvidas, a falta de prova e os crimes que não resultaram em condenação
Pelo caminho ficaram os crimes de violação, de rapto, de tráfico de droga e de coação, o que significa que Eduardo Montes, o único arguido que aguardava decisão em liberdade, acabou por ser absolvido dos dois crimes — violação e tráfico de droga — de que vinha acusado pelo MP. Mas estes crimes caíram, não por ter sido produzida prova em contrário, mas por não ter sido produzida prova suficiente para sustentar uma condenação.
“Não temos nada. Não foi possível apurar rigorosamente mais nada”, criticou o juiz. Por exemplo, sabe-se que Jéssica Biscaia foi exposta a drogas como cocaína, mas não se sabe de que forma, nem exatamente quando. Aqui “fica um ponto de interrogação”, concluiu o juiz.
Mas há uma dúvida maior. “A pergunta que não sai da cabeça é: porquê? Não é um animal, é um ser humano indefeso. Em parte nenhuma do mundo este factos seriam tolerados“.