Continua a encenar. E enquanto houver um espetáculo “com alguma coisa para dizer”, vai encenar. Tem hoje 73 anos. Apesar do tanto que fez, João Lourenço questiona se perdurará na história do teatro em Portugal. E responde: “Tenho um passado comigo, mas não quero ser aferido pelo passado. Interessa-me, sim, ser aferido pelo que faço no presente.”
A estreia como ator foi cedo, aos oito anos. Fascinara-se por Raul de Carvalho no Teatro Nacional e, apresentado a ele, foi desafiado em seguida para representar na Emissora Nacional. “E nunca mais parei.” Certo dia, regressado de uma tournée no Brasil, e tendo lá contactado com o moderno teatro “pujante” que então despontava, resolveu ele mesmo, “farto de ditaduras”, fundar um grupo independente de teatro que afrontasse o Estado Novo: e nascia em 1967 (com Irene Cruz, Rui Mendes e Morais e Castro) o Grupo 4. A censura riscou-lhes textos inteiros. Mas voltariam sempre, com outros “ainda mais violentos”. “Hoje, ouço que os censores eram estúpidos. Não eram”, explica.
Pouco a pouco, e só depois de a custo (“passaram dezanove anos e muitos presidentes da Câmara”) ter erigido um primeiro teatro que se considerou “inoportuno” — o Teatro Aberto —, foi-se afastando da profissão de ator e voltando-se só à encenação. Nunca quis cargos no Estado nem ligação a partidos.
Está desgostoso com a política. Sobretudo com os annus horribilis que quase encerraram o teatro que dirige e viu nascer há 40 anos. “Tenho gente muito nova comigo no teatro. Mas muito boa. Só assim é que se consegue, com tão pouca gente, aguentar.” Em 2017, por ocasião do quadragésimo aniversário, o Presidente da República atribuiu a Ordem da Instituição Pública ao Teatro Aberto, sendo a primeira vez que tal ordem é atribuída a uma companhia.
Estreou-se enquanto ator na Emissora Nacional. Tinha oito anos. Foi um feliz acaso, não foi?
Foi. Naquela altura não era habitual miúdos – na verdade, com oito anos, já não me sentia assim tão “miúdo” – entrarem nestas coisas. Hoje é bastante diferente. Mas na década de 1950 não era habitual, não. Os meus pais não tinham qualquer ligação ao teatro ou ao cinema. O meu pai, por exemplo, era corretor da bolsa. Mas sempre foram pessoas ligadas à cultura, assistiam a teatro, concertos, cinema.
E levavam-no muitas vezes, mesmo sendo um “miúdo”…
Levavam-me. Ainda me lembro como se fosse hoje de ir com os meus pais ao Teatro Nacional. E sentado na plateia sentir-me admiradíssimo, entusiasmado, com um rei que vi no palco. O rei era o Raul de Carvalho. No final o meu pai disse-me: “Eu conheço-o bem, ele costuma ir lá ao escritório, queres que vos apresente?” E apresentou-me ao Raul de Carvalho. Estávamos a conversar e ele disse ao meu pai que a Odette de Saint-Maurice, na Emissora Nacional, procurava um miúdo da minha idade, com a minha voz. O meu pai perguntou-me se queria experimentar e aceitei. Mas fui logo avisado que não poderia faltar à escola. [Risos] Lá apareci à Odette e fiz o meu primeiro folhetim na rádio.
A rádio fascinava-o? Estamos a falar de um tempo em que a televisão ainda estava a surgir em Portugal e quase ninguém tinha uma em casa.
Era um fascínio, era. E ainda é. Gosto muito de rádio. E naquele tempo, mais até do que hoje, era um fascínio tentar adivinhar quem era o locutor ou ator do outro lado, que corpo e que rosto teria aquela voz. Mas, sim, fiz muitos folhetins na Emissora Nacional, no Rádio Clube Português, na Rádio Graça… E comecei a contactar, a conviver de perto com os atores todos.
Não tardaria a estrear-se também nos palcos. E logo no Teatro Nacional. E logo na importante companhia Rey Colaço-Robles Monteiro. Foi na peça “D. Inez de Portugal”, em 1957, encenado, nem de propósito, por Robles Monteiro.
Foi a Amélia [Rey Colaço] que me convidou, sim. Tinha eu 12 anos.
Mas já queria, tão cedo, ser ator? Não se assustou com o convite? Uma coisa é estar na rádio, “protegido”; outra é pisar o palco do Teatro Nacional e olhar a plateia nos olhos.
Não me assustou, não. Sempre levei aquilo a sério, apesar da idade. Afinal, era a profissão daquela gente, daqueles atores, e levavam-na a sério. Mas claro que tudo era novo para mim. Acho que foi nessa peça que primeiro me comecei a interessar por atores, os atores em si. Mas perguntavas-me se sabia já o que era ser ator. Não sabia, não. E ainda hoje não sei bem… [risos]
Então?
Ainda fico arreliado quando ouço alguém dizer, pejorativamente, que alguém está a fazer teatro ou está a ser ator. E dizem-no como sinónimo de falsidade. É o contrário: o ator é mais verdadeiro quando está no palco. Por exemplo, agora que estamos aqui a conversar, não estou a ser eu e não estás a ser tu. Estou de certa forma a “representar”, a pensar antes de te responder às perguntas E também tu. Não te estás a apresentar como és, na intimidade; estás a apresentar-te como jornalista. Percebes? Todos nós “representamos” um pouco na vida. O ator não. No palco, não. É quando está no palco que menos representa e é mais verdadeiro. Não tem que esconder nada. Entrega-se sem espelhos.
E o público reconhece quando é verdadeiro.
E o público reconhece se ele é verdadeiro ou não. E quando está a ser verdadeiro, está a ser verdadeiro — coisa que não é na vida. É claro que está a interpretar um personagem. E pode ser bom, mau, um assassino, um benfeitor. Não importa. Ele empresta tudo de si, as vivências, àquele personagem. Se aquele ator tem algum caráter que esconde, dentro de si, no palco pode enfim libertá-lo. Acho sempre que o ator no palco é muito mais verdadeiro do que é fora dele. E comecei a perceber isso desde miúdo, assistindo a ambos os lados.
Quer na contracena, quer nos bastidores. É isto?
É isso. Sempre fui atento a tudo. Sentia-me um pouco aquele miúdo do filme do Ingmar Bergman [“Persona”, de 1966] que olhava com atenção para o cenário e para tudo – o Bergman sempre foi um autor, um homem de teatro, de que gostei muito. Mas, sim, sempre fui um miúdo curioso. E aprendia muito com todos os encenadores, os bons e os maus, e com os atores com que contracenava.
Não só em miúdo…
Não, não. Não: sempre. Até que um dia deixei de ser dirigido e passei a dirigir eu próprio. Mas ver os outros sempre me interessou muito. Ainda interessa. Continuo a assistir a muito teatro lá fora e cá, teatro de todo o género. Interesso-me por novas companhias, novos encenadores. Vejo como estão a pensar o teatro de hoje.
E o que é que pensa deles?
Penso que há espaço para todos. Mas talvez haja, por vezes, algum excesso de… experimentalismo. E isso pode desnortear algumas vezes o público. Tem que haver isso, experimentalismo, mas não apenas. O público tem que ter escolha, vários tipos de teatro onde ir.
Mas sempre houve “experimentalismo”, certo? Quando começou a encenar, em 1973, havia…
Havia, sim. E eu próprio o continuo a fazer, à minha forma. Ainda agora, na peça “Noite Viva”, misturo teatro e cinema. Antes, na peça “Amor e Informação” tinha não-sei-quantas peças dentro da peça. E procuro trabalhar sempre próximo de gente muito nova. Tenho gente muito nova em cena e a dirigir o teatro comigo. E aprendemos uns com os outros. Continuo a aprender como se faz. Sabes: tenho um passado comigo mas não quero ser aferido pelo passado. Orgulho-me dele. Mas intereressa-me, sim, ser aferido pelo que faço no presente. Sempre fui assim.
Ouvi-o dizer certa vez que “as coisas que fazemos não são para nós, são para entregar aos outros”. Será também por isso que se rodeia de “gente muito nova” no Teatro Aberto?
É, é. É assim. Está connosco a Marta Dias, por exemplo, que trabalha comigo [na direcção de palco], que encena também, e percebeu às tantas que tinha alguma coisa para mostrar sozinha. E mostrou. E continua connosco enquanto quiser. E queremo-la connosco. Hoje em dia o teatro faz-se com as pessoas que querem estar juntas. Tenho gente muito nova comigo no teatro. Mas muito boa. Só assim é que se consegue, com tão pouca gente, aguentar o Teatro Aberto.
Todo o teatro é uma “escola”. Ao longo dos anos muita gente trabalhou consigo aqui, no Teatro Aberto, aprendeu e seguiu, depois, percursos noutros lugares. Isso orgulha-o?
É verdade. Mas não me sinto professor deles. Aliás, muitas vezes fui convidado para ser professor no Conservatório e acabei por nunca querer. Desde logo porque tenho muito respeito pelo ensino. A minha avó era professora primária. Foi ela quem me ensinou a ler e escrever muito cedo. Lembro-me que o primeiro livro que li foi “Os Miseráveis”, do Victor Hugo. Tinha umas figuras e tinha que o ler até chegar às figuras. Mas voltando ao ensino… Tenho um defeito: gosto de ver as coisas com um fim. Mesmo como ator, era ensaiar, estrear e fazer. Como encenador, igual: ensaiar, estrear e fazer. Portanto, ensinar para só daí a uns anos ver o resultado, não consigo. Sei encenar, sei trabalhar com as pessoas, mas sempre com um fim à vista. Sempre evitei ser professor por isso. Mas talvez o que dizes é verdade, talvez as pessoas tenham aprendido connosco no Teatro Aberto. Fico contente por ver que há colegas que têm percursos bonitos e estiveram connosco, começaram aqui. Mas se aprenderam alguma coisa é um problema deles. [Risos] Eu aprendi também.
Falando de encenação agora. Quando escolhe um texto, quando começa a trabalhar a versão de um espetáculo, tem logo aí noção do que quer fazer?
Comecei a ficar perplexo – hoje já não – quando surgiram os primeiros subsídios e era preciso escrever as candidaturas. Eu vi espetáculos absolutamente extraordinários escritos. Mas ainda nem tinham começado os ensaios. Percebes? O espetáculo não é para estar no papel. É impossível ter um espetáculo no papel. Trabalho com a [dramaturgista] Vera San-Payo de Lemos. Há muitos anos que o nosso método de trabalho é o mesmo. Primeiro, surge um texto que nos pode suscitar algum interesse. E cada um lê. Depois, é preciso ver se aquele texto nos serve, se serve a companhia e aquilo que queremos dizer. Nós não fazemos um espetáculo porque é bonito; o espetáculo tem que ter alguma coisa a dizer aos espectadores. E é preciso estar com atenção ao que acontece à nossa volta. Havendo um texto, é preciso trabalhar na versão. E é no trabalhar da versão que está já muita da encenação: a luz, o cenário… Antes de começar a ensaiar há muito trabalho prévio. Nunca sei como é que vai acabar a peça. Mas tenho uma base muito definida. Tenho a estrutura da peça. Só depois é que dirijo os atores, fazendo improvisação, estudando marcações. Os atores não podem andar no palco de um lado para o outro. É como na vida: as pessoas têm distâncias entre si, têm o seu círculo, todos temos o nosso círculo – aproximamo-nos mais, menos, consoante a outra pessoa é. Tudo isto está na dramaturgia. E vai ser sempre diferente em cada peça.
O João diz o teatro “precisa de tempo”. Ainda há tempo?
Há. Mas também não se pode levar muito, muito tempo. Tudo custa hoje muito dinheiro. Mas há um tempo mínimo para fazer as coisas bem. Esse tempo tem é que ser aproveitado e tem que haver trabalho prévio. Não se começa a trabalhar quando começa o ensaio. Isso não. As pessoas que trabalham comigo sabem-no. Depois tem que haver tempo para experimentar coisas, para improvisação, trocar papéis, fazer marcações, construir o personagem. Às vezes os atores que nunca trabalharam comigo, sobretudo os novos, ficam espantados. Mas ainda é assim que trabalho. Há vários degraus para subir até chegar à interpretação. Mas gosto de trabalhar com esta gente mais nova, gosto de trabalhar com gente com disponibilidade para experimentar. E geralmente opto por espetáculos onde me interrogo se os vou conseguir fazer ou não. E tendo sempre a dificultar aquilo, quero sempre dificultar. E corto. E modernizo.
Mas já aconteceu achar que não era capaz?
Estou sempre muito aflito antes de um espetáculo estrear. [Risos]
Ainda durante os ensaios, portanto?
Geralmente, são sempre os piores momentos. Quando já está, já está. Às vezes ainda se fazem ensaios para corrigir os tempos. De dois em dois dias vejo o espetáculo e fazem-se correções. Mas a criação acabou. A criação depois da estreia é dos atores. Às vezes as pessoas julgam que é repetição. Não é. Digo sempre aos atores que não é.
É sempre algo novo.
Sempre! O olhar do outro ator é novo. Mas têm que ser os próprios atores a descobrir a “novidade”. O ator não pode saber o que o outro lhe vai dizer. Ele sabe. Mas não pode.
A repetição retira a “verdade” a que se referia antes.
O ator, o bom ator, renova-se todas as noites. E o público também ajuda. Porque é outro. É novo. Umas vezes está muito calado, outras participa muito. Às vezes o ator sai de cena e diz: “Isto correu tão mal hoje”. Não, não correu. Correu maravilhosamente bem. A noção que o ator tem do espetáculo nunca é a verdadeira. Isso digo-te já que não é. Geralmente, quando eles dizem que correu muito bem, não correu.
Disse-me que de dois em dois dias vê o espetáculo. Sei que gosta de assistir na plateia, à frente. Mas sei também que, lá sentado, sente-se público e nunca encenador. Mas está sempre atento ao público: se este se recosta, boceja. É assim?
Sim, é. Não gosto de espetáculos que aborreçam o público. No entanto, se o público vem ao teatro apenas com a intenção de passar o tempo, desatento, aí não me interessa se está aborrecido ou não. Mas quando vejo a maioria do público cansado, a pensar noutra coisa, não gosto disso. Mas nunca, nunca mesmo, seja em que espetáculo for, o encenador deve pensar que tem de agradar ao público. Percebes? É errado. O espetáculo tem que me agradar em primeiro lugar. E a quem o faz. Se me sentir maçado, o público vai sentir-se maçado. Lembras-te do “Top Dogs” que fizemos aqui?
Lembro. Era do Urs Widmer, não era?
Era. A plateia andava. Os próprios espectadores empurravam a plateia. Era bastante divertido o espetáculo. Mas sentei-me na plateia e percebi que estava tudo errado. E a culpa era minha! Então, sentei-me com os atores e disse: “Vamos fazer isto de maneira diferente”. E percebi isso porque, sentado na plateia, consigo abstrair-me do encenador e ser público. Às vezes é preciso retirar do espetáculo o que não é essencial. Às vezes, num texto do Brecht ele explica a mesma coisa duas e três vezes ao público. Hoje não é preciso. Não é preciso repetir. Hoje o público é mais veloz, mais hábil, e percebe à primeira.
Mas o próprio texto original, às vezes, tem didascálias e mais didascálias. O encenador pode sentir-se algo “espartilhado”, não? Menos livre para o corte…
Isso é o autor a querer muito que aquilo seja como ele pensou. Mas as palavras têm que lhe sair da mão. Percebes? O espetáculo que é escrito não é um espetáculo para levar a cena. O autor deseja ver assim. Mas os outros vão encenar de maneira diferente. Se o autor está contra, que escreva outra coisa. [Risos] Um espetáculo tem autor, tem versão – que é o dramaturgista que faz –, tem encenador, tem cenografia, tem intérpretes, os atores, tem o público. Tem muitas, muitas fases. E o autor não pode querer “manipular” aquilo por forma a evitar essas fases.
Quando preparei esta entrevista sabia de antemão que não a podia ter… preparada. Porque o João deixa-me “contracenas”. Eis uma: “Nós não fazemos um espetáculo porque é bonito; tem que ter alguma coisa a dizer aos espectadores”. A escolha de um espetáculo sempre partiu de algo que precisava dizer, questionar, que queria que o público questionasse consigo?
Ainda é assim. Cada vez mais. É talvez por isso que trabalharmos textos de autores contemporâneos. E trabalhamos textos completamente diferentes. Isso para o percurso de um encenador não é muito bom. [Risos] O encenador tem o seu estilo. Mas sou contra o estilo, a favor do espetáculo. E gosto de experimentar. O meu estilo oscila. Mas a preocupação é sempre a mesma, a preocupação de dizer alguma coisa. Não quero fazer sempre igual. Não quero ter sempre cenários iguais, a mesma luz. Como encenador, isso prejudica-me. Não sei, talvez… E talvez não esteja na história do teatro em Portugal por causa disso. Mas também não faço questão de estar.
Voltando ao início da conversa e à infância. Como é que reagiram os seus pais quando lhes explicou que queria ser ator?
Bem. Desde que fosse para o liceu, acabasse o liceu, conseguisse ter notas razoáveis, não faltasse muito, reagiam bem. Tive uns pais excepcionais. Se não penso neles todos os dias, penso quase todos. E estive com eles sempre até ao fim. E guardo-os sempre com grande saudade. O que queriam era ver-me feliz, a fazer o que me fazia feliz.
Estudou no Passos Manuel. Alguma vez pensou ser outra coisa que não ator?
Talvez advogado. Mas ainda bem que não.
Não se perdeu um bom advogado, portanto?
Não. [Risos] Tive muito cedo a toga perto de mim – o Morais e Castro tirava-a e punha-a constantemente lá no teatro. Mas ainda bem que não fui. O estímulo sempre foi este. E aprendi desde muito cedo a gostar de muita coisa no teatro: a gostar da luz, dos cenários, da pintura dos cenários, da pintura que a luz tem, da música também. Acho que é tudo isso que me leva a ser encenador.
Isso… e a digressão brasileira com a companhia do Vasco Morgado. Certo? É pouco depois de regressar, em 1967, que surge o Grupo 4. E presumo que descobrir o moderno teatro brasileiro o tenha influenciado a criar a sua própria companhia em Portugal?
Influenciou. Foi mesmo muito importante. Eu aí conheci o Opinião, conheci…
O Arena, o Oficina.
Exatamente. Vários teatros. Era muito amigo do Vasco. Ele era um sonhador do teatro, não era só um empresário. Vi muitos espetáculos em Londres, Paris ou Madrid com ele. E, pronto, fiz a digressão brasileira na companhia dele. Mas não entrei na primeira peça. A primeira peça esteve alguns três meses em cena. E a segunda, em que entrei, uns vinte dias. Então, estive durante aquele tempo a contactar com outras companhias brasileiras, a contactar com aquilo que estava a despontar depois da Ditadura dos Generais, o teatro novo, o cinema novo. A televisão e as novelas estavam a começar…
Chegou a participar numa, em 1971, do Lauro César Moniz: “Os Deus Estão Mortos”…
Exatamente, exatamente. Estava a despontar muita coisa no Brasil de então. E havia lá um movimento fantástico de força, de pujança daqueles atores. Quando voltei do Brasil, decidi-me e expliquei ao Vasco Morgado: “Não estou para isto, não estou para ditaduras assim, tenho que fazer um teatro diferente, tenho que fazer um teatro meu…”
E fez: com a Irene Cruz, o Rui Mendes e o Morais e Castro.
E criou-se o Grupo 4.
Eram amigos vocês?
Conhecia-os. Conhecia principalmente o Morais e Castro da rádio, de trabalhar com ele na rádio. E sempre me deu provas de integridade. Mas nós éramos todos da mesma geração, tínhamos todos trinta-e-tal, sabia o que andavam a fazer e o que é que tinham feito. Não foi por acaso. Então, encontrámo-nos, começámos a falar e resolvemos fazer um grupo independente de teatro, sem nenhum subsídio de ninguém. A única pessoa que nos ajudou foi o senhor Mayer…
O Adolfo Lima Mayer.
Sim, que era o proprietário do Tivoli.
Tivoli que era completamente diferente do que hoje é…
Completamente. Aquilo era um cinema de referência em Lisboa. Faziam-se lá as famosas sessões culturais das seis e meia. Eu conhecia-o vagamente…
Mas ele conhecia-o bem.
Sim, sim. Sim. Conhecia bem. E tinha algum apreço por nós, jovens. Então, abriu-nos a porta do Tivoli. Não aceitámos ir para um teatro do Vasco Morgado, mesmo sendo ele meu amigo, porque não queríamos que o Estado nos impusesse nada. No Tivoli tínhamos mais à-vontade. Não tínhamos subsídios.
O vosso público à época era sobretudo de estudantes. Verdade?
É verdade. Era quase todo estudante, era. E entre os estudantes, vim a saber mais tarde, estava por exemplo o [Francisco] Lucas Pires. Era um homem nos antípodas do que eu sou politicamente mas foi um dos melhores ministros da Cultura que houve. “Eu via sempre os espetáculos do Grupo 4”, confidenciou-me ele. Mas sempre foram, de facto, espetáculos para um público universitário.
Chegou a ter problemas com censura na altura, não chegou?
Muitos. Muitos, muitos.
Os vossos espetáculos “rompiam” a moral e os bons costumes do Estado Novo.
Houve espetáculos completamente proibidos. Nós tivemos um espetáculo que, muito perto de estrear, foi completamente proibido.
Fora o que era riscado, perdendo o texto muito do sentido.
Isso era o mais comum.
Mas o que é que fizeram em relação a esse espetáculo proibido antes da estreia? Aceitaram e pronto?
[Risos] O que é que fizemos? Nós obrigámos a censura a explicar-nos porque é que foi proibido.
Recorda-se de qual era o espetáculo?
Hmmmmm… um espetáculo do [Fernando] Arrabal, creio.
Continue.
Portanto, eles reuniram-se e disseram-nos o porquê.
E qual foi o “porquê”?
A peça tinha sido aprovada, com muitos cortes, mas tinha. E nós até explicámos que o texto do Arrabal tinha sido apresentado em Cascais pouco tempo antes. A resposta deles foi esta: “Mas Cascais… é Cascais”. Supostamente, em Lisboa teria uma “dimensão” que em Cascais não tinha.
Surreal.
Surreal! Como se o público não fosse o mesmo, em Lisboa ou em Cascais. E o espetáculo foi proibido. Hje em dia ouço que os censores eram estúpidos, todos estúpidos. Não eram nada. Eram arrogantes, sim, cortavam coisas estúpidas, sim. Mas não eram nada. Habitualmente, nós tínhamos três censores a quem apresentávamos o espetáculo. E depois era aprovado ou não era. Naquele dia, quando defendemos o espetáculo, apareceram vinte. Vinte! [Risos] E estava lá o “Cabeça de Alfinete” – que era o mais inteligente de todos eles. Quando o vimos lá sentado, dissemos: “Está tudo desgraçado…” [Risos] Nós representámos aquilo de maneira “levezinha”, baixávamos o tom em determinadas coisas. Era tudo um “jogo”. Percebes? Então, ele levanta-se e diz: “Estou a ver que os colegas estão a ser levados pelo que estes senhores do Grupo 4 estão a dizer. Se isto continuar assim, eu demito-me da Comissão de Censura!” Pronto, estava realmente tudo desgraçado. [Risos] E lá continuou ele: “O que estes senhores querem provar é que Portugal é, na verdade, um campo de concentração, querem provar que a população está dominada e não tem liberdade, querem provar que o responsável pelo campo de concentração é o nosso grande doutor Oliveira Salazar! Tenho dito…” E saiu. Bom, alguma razão ele tinha… [Risos]
Então e depois?
Depois, foi-nos mesmo proibida a peça. E ainda bem. Porque em seguida resolvemos apresentar uma peça ainda mais violenta! Resolvemos chamar-lhe “As Irmazinhas”. Aquilo eram três freiras interpretadas por homens, três assassinos. Isto durante uma revolta num lugar imaginário. Eles raptavam uma senhora. Quando a revolução mudou, mataram-na. Quando a revolução mudou novamente, elevaram-na à condição de santa. Aquilo, no fundo, no fundo era uma crítica à igreja por dentro. Percebes?
E não foi proibido?
Não. Nós sabíamos que o padre que estava à frente da igreja em Fátima, o Moreira das Neves [, “braço-direito” do Cardeal Cerejeira], tinha que aprovar ou reprovar todos os textos relacionados com a igreja. Então, fomos falar com o Moreira das Neves, claro. E explicámos: “Olhe, isto já aconteceu antes, fomos censurados, agora temos um bandidos vestidos de freiras mas não queríamos ser censurados outra vez…” É verdade que estávamos a mentir, não eram só uns “bandidos vestidos de freiras”. Mas aquilo também não era confissão, não é? [Risos] Mas ele também nos mentiu quando disse que não sabia de nada – ele sabia e até já tinha o texto. O que estava a acontecer era uma… uma… uma…
Negociação.
[Risos] Uma negociação, precisamente. Ele lá viu que a peça até tinha interesse e aprovou-a, pronto. Algumas pessoas, alguns censores, ficaram com os cabelos em pé, claro. E mais em pé ficaram quando, na véspera da estreia, nós anunciámos o espetáculo da seguinte maneira: “’As Irmazinhas’, de Eduardo Manet, um autor cubano pela primeira vez em Portugal”. Mas já não havia nada a fazer: o espetáculo estava carimbado e estrearia mesmo. Nós tínhamos dez, quinze, vinte inspectores da PIDE à volta do Tivoli naquele dia. Eu fazia de madre superiora, impecavelmente vestido de freira, o Morais e Castro fazia outra freira e o Rui Mendes era a noviça – ele era o mais velho de nós mas tinha e continua a ter aquele ar de miúdo. Sabes o que é que aconteceu?
Não…
O teatro bateu-nos palmas durante minutos a fio. E ainda nem tínhamos começado a falar. Portanto, vê tu bem o que aquilo representava de romper!
Há aqui uma história “curiosa” durante a ditadura que gostava que me contasse. Na véspera do 25 de Abril é-vos, Grupo 4, comunicado que o Teatro Aberto não poderia ser construído na Praça de Espanha por ser, e cito, “inoportuno”. Inoportuno?
Antes, o terreno para construir o teatro foi-nos cedido por um presidente da Câmara que era um homem de cultura.
O engenheiro Santos e Castro…
O engenheiro Santos e Castro, exatamente. Estávamos lá de direito, pagávamos uma renda. A certa altura o Santos e Castro é nomeado Governador Geral de Angola. Isto numa altura em que já estávamos a fazer terraplanagem e tínhamos tudo aprovado. Quem é que substituiu o Santos e Castro?
O engenheiro Silva Sebastião…
Exatamente. E comunica-nos que o projeto de construção do teatro fora “reprovado por inoportuno”. Nessa altura já tínhamos asnas e pensámos, como forma de protesto: “Vamos deixar as asnas aos Paços do Concelho, sentamo-nos lá e se acabarmos presos, acabámos, paciência!” Antes disso, no dia 24 de abril, fui conversar com o [Pedro] Feytor Pinto [director de Informação de Marcello Caetano] e naquele mesmo dia ficou agendada uma segunda conversa, com o Presidente do Conselho para a semana seguinte, conversa onde apresentaria o nosso desagrado. Como está bem de ver, não houve conversa nenhuma – e ainda bem. [Risos] O teatro acabou por ser aprovado e foi mesmo construído.
Esse teatro é o antigo Teatro Aberto. E deixaram-no quando o então presidente de Câmara Municipal de Lisboa, o Nuno Kruz Abecassis, resolveu que construiria naquele espaço o novo edifício do Banco de Portugal. É assim?
Exatamente! [Risos] Ele chamou-me à Câmara e perguntou-me: “Como é que é?” Bom, não podíamos ficar dentro do Banco de Portugal, isso é certo. Então, ele sugeriu pagar-nos uma indemnização pelo terreno…
Tinham o direito de superfície, sim.
Precisamente. E pagámos aquele teatro do nosso bolso, sem ajuda de ninguém. Ele sugeriu-nos construir um teatro em Benfica ou noutro lado. Mas não queríamos sair da Praça de Espanha. Então, sugerimos utilizar o dinheiro que nos pagariam — a Câmara pagaria a outra parte – e construir “um teatro para a cidade”. Foi assim que nasceu este Teatro Aberto, dezanove anos e muitos presidentes da Câmara depois. Foi o João Soares quem o acabou. É alguém [Soares] que deveria estar à frente da Cultura em Portugal…
Quando fala dos anos sem ministério da Cultura, fala como “anos horríveis”. São menos agora?
O Teatro Aberto foi o mais visado nesses anos como tão bem sabes. Era mesmo para acabar. Eles queriam acabar connosco. Foram mesmo annus horribilis, sim.
Mesmo sendo o João Lourenço um optimista…
Sim, mesmo assim. Mas quando as coisas são graves, não desisto: luto por elas. Sempre fui assim.
Sentiu-se magoado na altura?
Senti, senti bastante. Custou-me muito. Custou-nos muito.
A verdade é que, em 2017, por ocasião dos quarenta anos do Teatro Aberto, o Presidente da República atribuiu-vos a Ordem da Instituição Pública. Foi a primeira vez que tal ordem foi atribuída a uma companhia. Valeu a pena “lutar”…
Houve reconhecimento, houve. O professor Marcelo Rebelo de Sousa era – e continua a ser – espectador do Teatro Aberto. Ele considerou-nos um “porto seguro” do teatro. Achei realmente bonitas as palavras do Presidente da República. Está a ser o Presidente que sempre esperei que viesse a ser. E não é por nos ter atribuído a Ordem da Instituição Pública; é pelo que está a fazer a este país, pelo otimismo que tem e maneira como ele olha para nós. E quanto ao Governo, estou na expectativa do que é que vai fazer. São pessoas que gostam de Cultura. Estou um bocadinho na expectativa…
Mas tem esperança que algo de bom aconteça, depreendo?
Acho sempre que se pode fazer mais e melhor. Mas fiquei um bocadinho aflito quando soube quanto dinheiro do Orçamento do Estado vai para a cultura. Acho que a cultura precisa mesmo de mais dinheiro. Então e os hospitais? Então as escolas? Com certeza! Mas a cultura também precisa — “migalhas” para a cultura não.
Fala-se muito dos mecenas como alternativa ao Estado no apoio à cultura. É alternativa?
Aos mecenas cá, à portuguesa, só interessa apoiar — e mal — o Teatro Nacional D. Maria II, o Teatro Nacional de S. Carlos… Porquê? Para conseguirem benefícios. Percebes? Não é realmente a cultura que interessa aos mecenas. “Nós entregamos isto se vocês entregarem aquilo.” Enfim.
Alguma vez foi desafiado para um cargo político ou estatal?
Fui desafiado para integrar um partido ou outro, é verdade. Mas não aceitei. E não aceitei porque era “obrigado” a votar sempre naquele – e sempre gostei de escolher pela minha cabeça. Mas é evidente que fui algumas vezes convidado para assumir o Teatro Nacional. Mas não aceitei também. A não ser uma vez, uma vez aceitei…
Aceitou? Não sabia…
Sim, aceitei. Foi durante o Governo da Maria de Lurdes Pintassilgo. Aceitei ser diretor do Teatro Nacional com o Luís Freitas Branco: ele assumiria o Teatro Nacional e eu o D. Maria II. O governo durou noventa dias. O Freitas Branco pertencia ao Estado. Mas eu não. E a aprovação demoraria algum tempo. Quando finalmente chegou, a Aliança Democrática vence as eleições. A Pintassilgo ainda me disse para aceitar na mesma o cargo mas não podia.
Diz que “escolhe sempre pela sua própria cabeça”. É por isso que se afasta do Grupo 4 e funda, em 1982, o Novo Grupo? O anterior grupo politizou-se, é isso?
É, é. É. Foi um problema de… orientação. O Grupo 4 estava orientado para um lado mais político com o qual eu não concordava. E expliquei ao Morais e Castro, ao Rui Mendes e à Irene Cruz que me afastaria. Afastei-me do Grupo 4, é verdade, mas não do teatro, do espaço em si, que tinha construído juntamente com eles. E aí é que eu tenho, curiosamente, o convite para ir para a Alemanha. E trabalhei no Berliner Ensemble. Acho que foi preciso coragem para, com um teatro acabado de fazer — tinha nove, dez meses –, com um tremendo êxito como foi o “O Circulo de Giz Caucasiano” em cena, afastar-me de tudo. Mas sou mesmo assim.
A propósito de “O Circulo de Giz Caucasiano”: o texto é Brecht, claro. Antes, falou-me do Berliner Ensemble – onde encenou uma versão de “A Mãe Coragem e Seus Filhos”, também Brecht. Encenou-o tantas e tantas vezes no Teatro Aberto e não só. Mas diz que não é um “especialista”…
[Risos] Sempre que enceno Brecht digo: “Acabou! Foi a última vez…” Mas lá acabo por voltar a ele. Há sempre um texto do Brecht que responde a determinadas coisas que precisamos de dizer. Talvez haja algum texto do Brecht que ainda surja, não sei. Mas não me sinto brechtiano, se é isso que perguntas. Sinto-me apenas uma pessoa que conhece muito bem o teatro dele. E que está à-vontade a trabalhar o teatro dele. E que percebe quando ele quer dizer-nos alguma coisa. É isso.
O teatro que sempre se predispôs a apresentar e a trabalhar é teatro “contemporâneo”. A verdade é que muitos destes espetáculos de Brecht, por exemplo, remontam a uma época diferente: de privação, de medo e de controlo, de luta, resistência… Mas continuam a ser muito atuais. Isso quase que devia ser preocupante, não?
Entendo-te. Mas quando hoje se faz Brecht tens que lhe retirar aquilo que está colado àquele tempo, a resposta à sociedade daquele tempo. Percebes? É preciso retirar isso para conseguir dar uma resposta às histórias do presente. Se encenarmos exatamente como ele escreveu, não estamos a dar essa resposta. Não quero com isto dizer que tenha que ser muito, muito modificado. Não tem, infelizmente não tem.
A partir de 1974 vai-se afastando gradualmente da profissão de ator e assumindo-se sobretudo como encenador. Pensou voltar a representar alguma vez?
À distância, vejo que foi um erro da minha parte.
Então?
Foi, foi. Foi um erro. Outros colegas continuaram a representar e a encenar. Mas naquela altura achava, talvez de maneira naif, que não podia estar a encenar e, depois, estar a representar com os colegas que encenei – porque isso era estar em ambos os lados e não deveria estar. São pensamentos que hoje me fazem sorrir. Mas foi realmente pena não ter continuado a fazer as duas coisas. Mas foi assim.
Pergunto-lhe: o que é que ainda tem do miúdo que se “entusiasmou” com aquele rei no Teatro Nacional?
[Longa pausa] O sonho. Poder sonhar. Acho que o teatro, como um livro, como o cinema, a pintura, faz-nos sonhar — mais até o teatro do que os livros, o cinema ou a pintura –, faz-nos pensar. Quando estamos a assistir a um espetáculo temos que imaginar muita coisa. No teatro podemos dizer que há relva, que há uma catedral, e não está lá nada e nós imaginamos o que quisermos. A imaginação sempre foi para mim importante, desde miúdo. E, portanto, ainda hoje existe em mim. E isso que tenho do miúdo: sonhar com histórias. E depois comecei a ver que essas histórias seriam as histórias da minha vida – e as histórias da vida de todos nós. E comecei a ver que era importante contar essas histórias no teatro.
O Fernando Assis Pacheco escreveu que “um homem tem que viver com um pé na Primavera”. O que é que ainda quer fazer?
O Assis Pacheco era um homem de que eu gostava muito. [Pausa] Não quero fazer nada que já tenha feito.