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Março de 2011. Na cidade de Paraná, no nordeste da Argentina, Candela Giarda, de 11 anos, adoece subitamente. A febre alta e as convulsões descontroladas obrigam a mãe, Roxana Sosa, a correr para o hospital pediátrico mais próximo com a filha. Em poucas horas, o estado de saúde de Candela agrava-se significativamente e a criança entra em coma e é ligada a um ventilador. Os médicos identificam uma gravíssima crise febril de epilepsia refratária, potencialmente fatal.
Nos dias que se seguem, Candela continua a ter fortes convulsões. “Nada funcionava”, diria mais tarde à imprensa argentina a mãe, recordando o episódio. A complexidade do caso levou os médicos a decidir transferir a criança para a unidade de cuidados intensivos de um hospital em Buenos Aires, pertencente à Fundação Favaloro, que, apesar da distância de quase 500 quilómetros, estaria mais bem preparado para lidar com o problema.
Mas o estado de saúde de Candela continua a piorar. “Desde que chegámos a Favaloro, piorou em vez de melhorar”, diria a mãe. A dada altura, quatro meses depois, os médicos concluem que já nada havia a fazer. A vida da criança estava decididamente perdida. A expressão usada pelos médicos foi “morte iminente”. A qualquer momento poderia acontecer — e aconteceria inevitavelmente. “Até me disseram para voltar a Paraná, para que ela pudesse morrer em casa.”
Roxana Sosa não se conformou com o prognóstico médico. Saiu do hospital e dirigiu-se a uma igreja católica nas proximidades, onde encontrou o padre José Dabusti, a quem contou o que se passava com a filha. Naquela noite de 22 de julho de 2011, tocado pela história, o padre dirigiu-se ao quarto do hospital onde Candela estava internada. Junto da cama da criança, Dabusti propôs a Roxana que rezassem pela vida de Candela, pedindo a intercessão do Papa João Paulo I, venerado pela Igreja Católica como “Servo de Deus”.
Nessa mesma noite, o estado de saúde de Candela melhorou inesperadamente. Os médicos não foram capazes de explicar o que tinha acontecido, mas a verdade é que, segundo o Vaticano, “houve uma rápida melhoria no choque séptico, que continuou com a subsequente recuperação da estabilidade hemodinâmica e respiratória”. Como explica a Agência de Notícias Católica, ao fim de duas semanas a criança deixou de estar entubada. No dia 5 de setembro, contra todas as expectativas e prognósticos dos médicos, Candela recebeu alta.
Impressionado pelo que tinha acontecido, o padre José Dabusti contactou o Vaticano para explicar às autoridades eclesiásticas o que tinha testemunhado. De Roma, recebeu indicações para escrever um relatório detalhado sobre a situação. Com as primeiras informações na sua posse, o Vaticano determinou a abertura de uma investigação pormenorizada, que incluiu entrevistas à família, aos médicos e a outras testemunhas, bem como um processo de validação de todos os aspetos da história.
A investigação durou uma década. Em 13 de outubro de 2021, o Papa Francisco anunciou que a Igreja Católica reconhecia oficialmente o caso de Candela como um milagre obtido através da intercessão de João Paulo I. Assim, aprovado um milagre, o antigo Papa, que liderou a Igreja Católica durante apenas um mês em 1978, poderia começar o seu caminho até aos altares da santidade católica. Este domingo, acontece no Vaticano a celebração de beatificação de João Paulo I, que vai passar a ser formalmente venerado pelos católicos de todo o mundo.
Papa aprova milagre e abre caminho à beatificação de João Paulo I
Com esta beatificação, chega aos altares da santidade um homem que participou no Concílio Vaticano II e personificou a transformação da Igreja Católica no final do século XX — mas que ficaria para a história como o “Papa de setembro”, por ter reinado durante apenas 33 dias, antes de morrer em circunstâncias pouco claras que durante décadas alimentaram teorias da conspiração que envolvem a máfia, a maçonaria, a CIA e os corredores do poder eclesiástico. Um homem, como descrevia esta semana a Associated Press, cuja morte eclipsou a vida.
O “candidato de Deus”
Era o verão de 1978. A morte do Papa Paulo VI, aos 80 anos de idade, após 15 anos à frente da Igreja Católica num dos períodos mais decisivos da história do cristianismo contemporâneo, mergulhou a instituição num novo momento. Foi a primeira vez desde o encerramento do Concílio Vaticano II que os cardeais de todo o mundo se juntaram em conclave para escolher um novo Papa. Os cardeais chegaram a Roma com um desafio em mente: como traduzir na escolha do novo Papa as profundas reformas operadas na Igreja Católica pelo concílio?
Do Concílio Vaticano II (1962-1965) tinha resultado uma Igreja mais pastoral, menos rígida, contrastante com a instituição de poder rigoroso que se tinha consolidado ao longo dos séculos numa espécie de monarquia absoluta centrada na pessoa do Papa. O sucessor de Pedro era agora encarado como o servo dos servos, um bispo como os outros, o garante da união em torno do qual gravitavam os bispos de todo o mundo, que exerciam de modo colegial a autoridade numa Igreja mais horizontal e aberta ao mundo.
A escolha dos 111 cardeais que entraram na Capela Sistina no dia 26 de agosto de 1978 foi rápida. Em apenas 26 horas, o cardeal italiano Albino Luciani, até então patriarca de Veneza, foi eleito. Luciani foi o primeiro Papa da história da Igreja Católica a escolher um nome duplo: João Paulo I, em homenagem aos seus dois antecessores imediatos, João XXIII e Paulo VI, os dois Papas do Concílio Vaticano II. O Papa Luciani foi o primeiro pontífice eleito já na era da nova Igreja Católica, moldada pelo concílio decisivo, e a própria escolha de João Paulo I, quase unânime, traduziu essa nova forma de pensar da Igreja Católica.
“Certamente, os cardeais não tomaram esta decisão com base nas estratégias políticas, mas apenas tendo em conta o critério eclesial decisivo no que toca ao perfil de um bispo: as suas qualidades enquanto pastor”, escreveu em 2017 o cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano, no prefácio do livro Papa Luciani: Crónica de uma morte. “Aquela escolha foi expressão de uma comum mentalidade eclesial e (…) chegou como fruto de uma mais longa e atenta reflexão. E esta unanimidade revelava precisamente que não se tratava de um Papa programado por um determinado projeto político”, concorda a autora do livro, Stefania Falasca.
De facto, olhando para as páginas dos jornais de agosto de 1978, é possível perceber que a especulação que se seguiu à morte de Paulo VI se focava essencialmente nos jogos de poder habituais dos corredores do Vaticano. Talvez por esse motivo, o nome de Albino Luciani tenha ficado de fora das listas de papabili (os principais candidatos ao trono pontifício) publicadas pela imprensa.
Na primeira página do Diário de Lisboa de 7 de agosto de 1978, a notícia da morte de Paulo VI era acompanhada de um título questionador: o novo Papa seria latino-americano? A manchete refletia o debate que ganhava corpo naquela altura de renovação da Igreja Católica em torno da possibilidade de os cardeais romperem com uma tradição que durava há mais de 450 anos e elegerem finalmente um Papa não-italiano. No interior do jornal, eram apresentados os nomes apontados como prováveis sucessores a Paulo VI.
“Três italianos e três estrangeiros são dados como mais prováveis sucessores: Sergi Pignedoli, de 68 anos, presidente do Secretariado para os Não Cristãos, Sebastiano Baggio, de 65, prefeito da Congregação dos Bispos, e Giovanni Benelli, de 57, arcebispo de Florença. Contra este último milita o facto de ser ‘extremamente jovem’. Quanto aos estrangeiros, o primeiro apontado é Eduardo Pironio, argentino de ascendência italiana, com 58 anos, presidente da Congregação para os Religiosos, o arcebispo de Viena, Franz Konig (de 73 anos e cuja actividade tem sido sobretudo dirigida aos contactos com os países socialistas) e Johannes Willebrands, de 68 anos, arcebispo de Utrecht, com uma vasta experiência pastoral”, lia-se no Diário de Lisboa daquela segunda-feira.
No mesmo dia, o The New York Times trazia uma lista de papabili apenas parcialmente coincidente com a do Diário de Lisboa. Para o jornal norte-americano, que citava “fontes do Vaticano”, os homens que tinham mais probabilidade de suceder a Paulo VI no trono de São Pedro eram, além dos cardeais Sebastiano Baggio e Giovanni Benelli, o cardeal Pericle Felice (presidente do supremo tribunal da Santa Sé) e o arcebispo de Turim, Anastasio Ballestero. Dois dias depois, o mesmo jornal debatia a possibilidade de a Igreja eleger o primeiro Papa não-italiano dos últimos quatro séculos e apontava os mesmos três nomes: Konig, Willebrands e Pironio.
Embora as listas de papabili sejam habitualmente um exercício de especulação levado a cabo pelos jornais e pela opinião pública, o que é certo é que esses rumores têm sempre um fundo de verdade. Muitas vezes, os nomes são colocados a circular pelos próprios cardeais, bispos e elementos da Cúria Romana, nos dias anteriores a um conclave, com o objetivo de apalpar terreno e perceber qual a receção do público em relação a determinado cardeal. Outras vezes, a própria divulgação de um nome papabile faz parte de uma campanha organizada dentro dos corredores de poder do Vaticano. E é inegável que o debate público promovido pela imprensa e nos círculos de poder influencia as próprias discussões entre cardeais e até mesmo as votações no conclave.
Albino Luciani passou ao lado deste frenesim mediático que antecedeu o conclave e a sua eleição tão rápida e unânime é ainda hoje atribuída por muitos cardeais à intervenção divina, que teria guiado os eleitores no sentido de escolherem o homem adequado aos novos tempos que a Igreja vivia.
O cardeal inglês Basil Hume, um dos eleitores que participaram naquele conclave, cunhou na altura uma expressão que acompanharia a figura de João Paulo I ao longo da história: “A decisão foi inesperada. Mas, depois de ter acontecido, pareceu totalmente e inteiramente correta. A sensação de que ele era exatamente aquilo que queríamos era de tal modo geral que ele era sem dúvidas o candidato de Deus.” Logo após a eleição, à alcunha “o candidato de Deus” juntar-se-ia uma outra, “o Papa do sorriso”, devido ao sorriso contagiante de João Paulo I. Reputado como um homem bom, honesto e empenhado em ser fiel ao espírito do Concílio Vaticano II, Albino Luciani foi entronizado Papa a 3 de setembro de 1978 e prometia uma nova abordagem à administração da Igreja Católica global.
Começou logo no início: deixou de usar o plural majestático para se referir ao papado e recusou usar a tiara pontifícia, deixando no passado aquelas marcas do poder do Papa que o concílio procurou erradicar e criando verdadeiramente a imagem do Papa moderno.
Contudo, João Paulo I foi incapaz de levar a cabo o seu verdadeiro projeto de reforma. A 28 de setembro de 1978, o Papa foi encontrado morto no seu quarto. O pontificado durou apenas 33 dias e deixou o mundo em choque. O “candidato de Deus” recebeu naquele momento uma das designações pela qual seria conhecido durante as décadas seguintes: o “Papa de setembro”.
A morte prematura em condições obscuras abriu a porta a inúmeras teorias da conspiração sobre o que realmente aconteceu naquela madrugada. Embora a posição oficial do Vaticano seja a de que João Paulo I sofreu um ataque cardíaco depois de ignorar alguns sintomas durante todo aquele dia, várias teorias envolvendo a maçonaria, a máfia, a CIA e o Banco do Vaticano ofuscaram o pontificado de Albino Luciani e tornaram-se matéria apetecível para livros e documentários ao longo das década.
O “apóstolo do Concílio”
Décadas antes de ter tido um dos pontificados mais curtos da história da Igreja Católica, Albino Luciani podia ter tido uma vida igualmente curta. Luciani nasceu no seio de uma família pobre, na pequena aldeia italiana de Forno di Canale, 150 quilómetros a norte de Veneza, no dia 17 de outubro de 1912, e teve de ser batizado de urgência no dia do nascimento, pela própria parteira, uma vez que o parto complicado o deixou às portas da morte.
Porém, o bebé Luciani sobreviveu e, tal como mandam as normas da Igreja Católica para casos excecionais como este, os pais da criança, Giovanni Luciani e Bortola Tancon, levaram a criança à igreja para que o batismo fosse formalizado pelo pároco local dois dias depois do nascimento.
Luciani teve uma formação religiosa durante toda a infância e juventude na região de Belluno, no norte de Itália. Em 1923, com 11 anos, entrou no seminário de Feltre, onde estudou durante cinco anos até se mudar, aos 16 anos, para o seminário de Belluno. Em 1935, com apenas 22 anos, foi ordenado padre. Mas a sua carreira como pároco local duraria pouco tempo: em 1937 foi nomeado vice-reitor do seminário de Belluno, onde estudara, e passou a dar aulas de teologia moral, direito canónico e arte sacra.
Aquele seminário foi a rampa de lançamento do padre Albino Luciani para a vida pastoral que se seguiu. Em 1947, completou o doutoramento em teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, e recebeu o relevante cargo de vigário-geral na sua diocese natal de Belluno. Foi nessa altura que escreveu o livro Catechetica in briciole (“Catequese em migalhas”), uma obra teológica destinada aos católicos menos instruídos. Albino Luciani chegaria a bispo com apenas 46 anos, em 1958. Recebeu a ordenação episcopal diretamente das mãos do Papa João XXIII, na Basílica de São Pedro.
O bispo Luciani liderou a diocese de Vittorio Veneto, no norte de Itália, durante uma década, até ser nomeado patriarca de Veneza, em 1969. Pelo meio, participou em todas as sessões do Concílio Vaticano II, entre 1962 e 1965. Mais tarde, em 1973, foi elevado a cardeal pelo Papa Paulo VI.
Em 1978, depois da morte de Paulo VI, o valor pastoral do patriarca Albino Luciani era amplamente reconhecido no seio da Igreja Católica italiana — que era, e continua a ser em certa medida, o grande centro do poder eclesiástico global. “O valor de Luciani, reconhecido desde há muito, estava todo na sua fisionomia centrada no essencial. Era o pastor nutrido por uma humana e serena sabedoria e de fortes virtudes evangélicas, que precede e vive no rebanho com o exemplo, sem qualquer separação entre a vida pessoal e a vida pastoral, entre a vida espiritual e o exercício de governo, na absoluta coincidência entre quanto ensinava e quanto vivia”, considera a escritora italiana Stefania Falasca, vice-postuladora da causa de canonização de João Paulo I.
“Perito em humanidade e nas feridas do mundo, conhecedor das exigências da imensa multidão dos pobres que vivem fora da opulência, era um sacerdote de vasta e profunda sabedoria que sabia conjugar numa síntese feliz e genial nova et vetera [nova e antiga]”, acrescenta Falasca, que classifica Albino Luciani como um “apóstolo do Concílio, que dele tinha feito o seu noviciado episcopal, explicando com cristalina lucidez os seus ensinamentos e traduzindo retamente na prática, com coragem perseverante, as suas diretivas, que incarnava com naturalidade e simplicidade”.
Esta naturalidade de Albino Luciani, um homem simples conhecido pelo sorriso com que se dirigia a todos, conduziria à sua surpreendente eleição pontifícia em agosto de 1978.
Luciani foi Papa durante um mês, motivo pelo qual hoje não existe em grande acervo documental com os seus discursos, homilias e mensagens que permitam conhecer quem teria sido verdadeiramente o Papa João Paulo I. Ainda assim, nas palavras de Stefania Falasca, “durante o seu ainda que breve pontificado manifestaram-se assim as prioridades de um pontífice que fez progredir a Igreja ao longo da dorsal daqueles que foram os caminhos principais indicados pelo Concílio: o regresso às fontes do Evangelho e uma renovada missionariedade, a colegialidade, o serviço na pobreza eclesial, o diálogo com a contemporaneidade, a procura da unidade com os irmãos ortodoxos, o diálogo inter-religioso, a procura da paz”.
O pequeno arquivo dos discursos e escritos produzidos durante os 33 dias de pontificado de João Paulo I está disponível no site do Vaticano e oferece algumas chaves de leitura do pensamento de Luciani sobre o papado. “Ontem de manhã fui para a Sistina votar tranquilamente. Nunca poderia imaginar o que estava para acontecer”, disse João Paulo I no seu primeiro Angelus, em 27 de agosto de 1978, lembrando como ouviu “palavras de coragem” dos colegas cardeais quando a contagem dos votos começou a ameaçar cair para o seu lado. Foi nessa primeira mensagem também que explicou a origem do seu nome — o primeiro da história composto por dois nomes.
“Fiz então este raciocínio: o Papa João quis consagrar-me com as suas mãos, aqui na Basílica de São Pedro; depois, se bem que indignamente, em Veneza, sucedi-lhe na Cátedra de São Marcos, naquela Veneza que ainda está inteiramente cheia do Papa João. (…) Depois o Papa Paulo não só me fez Cardeal, mas alguns meses antes, numa das pontes então colocadas na Praça de São Marcos, fez que me pusesse todo vermelho diante de 20.000 pessoas, porque levantou a estola e ma lançou sobre os ombros”, disse o novo Papa. “Por isso, disse: ‘Chamar-me-ei João Paulo’. Eu não tenho nem ‘a sabedoria de coração’ do Papa João, nem a preparação e a cultura do Papa Paulo. Estou, porém, no lugar deles e devo procurar servir a Igreja.”
“Vossa Santidade, não me faça piadas destas”
Para Stefania Falasca, profunda conhecedora da biografia de João Paulo I, apesar da brevidade do pontificado de Luciani, não é difícil identificar o rumo no qual o último Papa italiano colocou a Igreja. “A imagem que da Igreja nutria João Paulo I é a do discurso das Bem-aventuranças, dos pobres de espírito, mais próxima dos sofrimentos das pessoas e da sua sede de caridade, que não se esconde nem se confunde com a lógica dos escribas e dos fariseus, nem com a dos manipuladores ideológicos ou dos espíritos mundanos misturados na trama das fações”, escreveu Falasca em 2016. “O caminho de Albino Luciani teria sido aquele que mergulha as raízes no nunca esquecido tesouro de uma Igreja antiquíssima, sem triunfos mundanos, que vive da luz reflexa de Cristo, próximo do ensinamento dos grandes Padres e aos quais regressou o Concílio. É aqui que deve ser reconsiderada a profundidade da sua obra. É aqui que deve ser recuperado o valor histórico do seu pontificado.”
“Albino Luciani não passou como um meteoro, a sua passagem deixou uma marca duradoura e ardente com a sua desconcertante piedade”, acrescentava ainda Falasca. “Se o governo de Albino Luciani não se pôde desdobrar na história, ele contribuiu mais do que qualquer outro para reforçar e testemunhar hoje o projeto de uma Igreja que com o Concílio voltou às fontes, mais essencial, mais evangélica. Não parecerá pouco.”
O pontificado de João Paulo I acabou tão inesperadamente como começou. Era uma quinta-feira, 28 de setembro de 1978. O Papa passou uma parte do dia com os bispos católicos das Filipinas, que se encontravam em Roma para a tradicional visita Ad limina que os bispos de todo o mundo fazem ao Vaticano periodicamente. No seu discurso, o Papa incentivou os bispos filipinos a continuarem o seu trabalho de evangelização cristã na região e ofereceu-lhes todo o apoio da Santa Sé. Foi a sua última aparição pública.
Nesse mesmo dia, João Paulo I escrevera uma carta ao bispo alemão Hugo Aufderbeck, da diocese de Erfurt-Meiningen, na Alemanha, a propósito do sétimo centenário da igreja de São Severo, uma das igrejas mais antigas e mais importantes da Alemanha. Foi o último documento assinado pelo Papa João Paulo I.
Na manhã seguinte, tudo se precipitou rapidamente. Segundo a versão oficial atualmente aceite pelo Vaticano, às 5h da manhã do dia 29 de setembro a irmã Vicenza Taffarel, uma das freiras que cuidavam do quotidiano do Papa João Paulo I no palácio apostólico (e que já tinha trabalhado com Albino Luciani em Veneza), fez aquilo que fazia todos os dias àquela hora: deixou uma chávena de café acabado de fazer na sacristia da pequena capela papal, situada mesmo em frente à porta dos aposentos pontifícios. Todas as manhãs, João Paulo I levantava-se às 5h, bebia o café na sacristia e dirigia-se à capela para iniciar o dia em oração.
Naquela manhã, porém, o café ficou a arrefecer. Por volta das 5h15, Vicenza voltou ao corredor e viu que a porta continuava fechada. “Ele ainda não saiu? Porquê?”, perguntou Vicenza à irmã Margherita Marin, outra das freiras que trabalhavam no apartamento papal e que entretanto também já se encontrava por ali. Perante a resposta negativa, Vicenza dirigiu-se à porta dos aposentos papais e bateu. Ninguém respondeu à primeira nem à segunda vez — e a freira decidiu abrir a porta. O relato chega-nos hoje pelo testemunho da irmã Margherita, que contou tudo o que viu naquele dia a Stefania Falasca durante o processo de recolha de informação para a eventual canonização de João Paulo I.
“Ela abriu a porta e entrou. Eu estava lá e fiquei no exterior enquanto ela entrava. Ouvi-a a dizer: ‘Vossa Santidade, não me faça piadas destas’”, lembrou a freira. “Depois, ela chamou-me e saiu, em choque. Entrei rapidamente com ela e vi-o. O Santo Padre estava na cama, com a luz de leitura da cabeceira ainda ligada. Tinha duas almofadas atrás das costas, que o amparavam ligeiramente; as pernas estavam esticadas, os braços por cima dos lençóis. Estava de pijama e tinha nas mãos, sobre o peito, algumas folhas dactilografadas. A cabeça estava ligeiramente virada para a direita, com um ligeiro sorriso. Tinha os óculos no nariz e os olhos parcialmente fechados. Parecia simplesmente a dormir. Toquei-lhe nas mãos, que estavam frias; olhei e fiquei impressionada, porque as unhas estavam ligeiramente escuras.”
Foram precisas quatro décadas para que fosse publicada uma versão oficial, definitiva e homologada pelo Vaticano do relato da morte de João Paulo I. Aconteceu em 2017, com a publicação do livro Papa Luciani: Crónica de uma morte, de Stefania Falasca. Durante quatro décadas, múltiplas contradições e lacunas nos relatos (incluindo por parte do Vaticano, que inicialmente noticiou que tinha sido o secretário particular do Papa, o padre John Magee, a encontrar o corpo) deram azo a todo o tipo de teorias da conspiração que acabaram por ofuscar o legado de João Paulo I.
As teorias da conspiração
Hoje, pensar em João Paulo I remete-nos inevitavelmente para aquele Vaticano obscuro criado por Hollywood e pela literatura de ficção, povoado de cardeais ambiciosos envolvidos em jogos de poder, a que não escapam a maçonaria, os movimentos católicos ultraconservadores e até a máfia — porque o Vaticano pode ser um país independente, mas não deixa de ser em Itália.
A primeira grande tese conspirativa em torno da morte de João Paulo I foi desenvolvida na década de 1980 pelo escritor inglês David Yallop, autor de vários livros sobre crimes por resolver e sobre escândalos na Igreja Católica. Em 1984, Yallop publicou Em Nome de Deus (editado em Portugal pela Dom Quixote), livro no qual explorou a tese de que a morte de João Paulo I foi orquestrada a partir do Vaticano, porque o Papa se encontrava em rota de colisão com vários interesses instalados entre os mais poderosos cardeais da Igreja Católica. O esquema terá envolvido também a poderosa loja maçónica ilegal P2 (associada a múltiplos crimes em Itália durante o final do século XX) e a máfia italiana.
A teoria é resumida no prólogo do livro, no qual Yallop elenca os seis homens poderosos que beneficiariam da morte de João Paulo I, um Papa que estava empenhado numa “revolução” nos bastidores da Santa Sé e que pretendia expor anos de corrupção e escândalos financeiros no Banco do Vaticano, afastar os responsáveis e recuperar os princípios éticos da cúpula da Igreja Católica.
A introdução do livro é sugestiva: “No dia 28 de setembro de 1978, [Albino Luciani] era Papa havia 33 dias. Em pouco mais de um mês, tinha dado início a várias linhas de ação que, se tivessem sido completadas, teriam um efeito direto e dinâmico sobre todos nós. A maioria deste mundo aplaudiria as suas decisões; uma minoria ficaria em choque. O homem que rapidamente tinha sido rotulado como ‘O Papa do Sorriso’ pretendia retirar os sorrisos de vários rostos no dia seguinte.”
Um deles seria o bispo Paul Marcinkus, o presidente do poderoso Banco do Vaticano (oficialmente, o Instituto para as Obras da Religião). “Tinha chegado aos ouvidos de Marcinkus que o novo Papa tinha discretamente começado a sua própria investigação pessoal ao Banco do Vaticano e, concretamente, aos métodos que Marcinkus usava para gerir o banco”, escreveu Yallop. A 11 mil quilómetros dali, Roberto Calvi, líder do Banco Ambrosiano (cujo principal acionista era o Banco do Vaticano), também estava preocupado. Calvi, membro da loja maçónica Propaganda Due (P2), estava no centro de desvios ilegais de fundos multimilionários para o financiamento de atividades ilegais e sabia que o Banco de Itália estava a meio de uma investigação secreta à gestão do banco. O relatório que seria publicado mais tarde daria origem a um dos maiores escândalos político-financeiros da história recente de Itália, levando ao colapso do Banco Ambrosiano.
“Como Marcinkus, ele sabia que era uma questão de tempo até que as duas investigações independentes percebessem que examinar um destes impérios financeiros era examinar os dois”, concluiu Yallop. “Uma análise cuidadosa da posição de Roberto Calvi em setembro de 1978 torna abundantemente claro que, se o Papa Paulo VI fosse sucedido por um homem honesto, Calvi enfrentaria a ruína total, o colapso do seu banco e certamente a prisão. Não há dúvidas de que Albino Luciani era justamente esse homem.”
Outro homem estaria atento às intenções de purificação do Vaticano manifestadas por João Paulo I: o banqueiro Michele Sindona, igualmente enredado em esquemas de corrupção. Membro da P2 e associado à máfia siciliana, Sindona atuava no interior do Vaticano, uma vez que tinha sido nomeado pelo Papa Paulo VI para a administração do Banco do Vaticano. Em 1978, Sindona já estava a braços com a justiça italiana, devido a um caso de desvio de fundos, e encontrava-se refugiado em Nova Iorque. Mas se João Paulo I continuasse a investigar a complexa teia de corrupção no Banco do Vaticano, chegaria rapidamente ao nome de Michele Sindona e às perigosas relações secretas do Vaticano com a máfia.
Segundo Yallop, o líder da Propaganda Due, o banqueiro Licio Gelli, estava igualmente preocupado com as investigações de João Paulo I — porque, em última análise, a teia conspirativa terminaria nele, o mestre da loja maçónica e responsável por vários destes esquemas.
Mas os planos de João Paulo I também inquietavam várias figuras dentro da hierarquia eclesiástica, entre as quais o então secretário de Estado do Vaticano, o cardeal Jean Villot, que no dia 28 de setembro tinha recebido das mãos do Papa Luciani uma lista de responsáveis do Vaticano a substituir — incluindo ele próprio. Seria uma remodelação total da cúpula eclesiástica, com vários padres, bispos e cardeais a serem substituídos. “Quando estas mudanças fossem anunciadas, milhões de palavras seriam escritas e ditas pelos meios de comunicação internacionais, analisando, dissecando, profetizando e explicando. Contudo, a verdadeira explicação não seria discutida (…). Era a maçonaria”, escreveu Yallop.
“As provas que o Papa tinha obtido indicavam que dentro do Estado da Cidade do Vaticano havia mais de 100 maçons, desde cardeais a padres. Isto apesar de o direito canónico afirmar que pertencer à maçonaria garantia a excomunhão automática”, acrescentou Yallop, lembrando que as preocupações de João Paulo I se intensificavam pelo facto de a P2, “uma loja maçónica ilegal que tinha penetrado muito além de Itália na sua busca por riqueza e poder”, ter entrado de modo tão profundo no Vaticano. Para um cardeal que já estava preocupado com a possibilidade de João Paulo I mudar a posição da Igreja em relação à pílula, que o Papa Paulo VI tinha fixado na célebre encíclica Humanae Vitae, a descoberta das intenções de João Paulo I foi a gota de água: o Papa Luciani era perigoso para os seus interesses.
Nos Estados Unidos, o cardeal John Cody, arcebispo de Chicago, estava igualmente inquieto. Cody era uma figura controversa, liderava uma arquidiocese milionária e as suas práticas de gestão financeira eram questionadas há muito. Os fiéis de Chicago e os padres que estavam sob jurisdição de Cody até já tinham dirigido uma petição a Roma exigindo “a remoção de um homem que consideravam um déspota”, escreveu Yallop. O Papa Paulo VI tinha hesitado várias vezes em relação ao assunto, mas João Paulo I já tinha decidido demitir Cody — e o cardeal tinha sido informado oficiosamente do assunto. Com a demissão de Cody, viriam a público todas as alegações graves que pendiam sobre o cardeal.
Para David Yallop, a morte de João Paulo I resultou de um plano em que estes seis homens estiveram envolvidos: “É abundantemente claro que no dia 28 de setembro de 1978 estes seis homens, Marcinkus, Villot, Calvi, Sindona, Cody e Gelli, tinham muito a temer se o pontificado de João Paulo I continuasse. É igualmente claro que todos eles tinham algo a ganhar, de diferentes maneiras, se o Papa João Paulo I morresse subitamente.”
Foi o que aconteceu. Segundo a teoria de Yallop, João Paulo I terá sido morto com recurso a um veneno administrado na noite anterior na sequência de uma conspiração operada por estes seis homens. A teoria lançou ainda mais dúvidas sobre o que realmente aconteceu naquela noite, uma vez que as suspeitas publicadas por Yallop contradiziam alguns dos dados avançados inicialmente pelo Vaticano, incluindo a hora a que o cadáver de Luciani foi inicialmente encontrado.
Depois da publicação do livro de Yallop, vários autores e teóricos da conspiração, como o abade francês Georges de Nantes (suspenso da Igreja devido aos seus ataques aos Papas Paulo VI e João Paulo II), propuseram as suas próprias teses sobre a morte de Luciani, atribuindo-a a conspirações dentro do Vaticano. Também na cultura popular, a morte misteriosa do Papa João Paulo I foi tratada como um caso conspirativo envolvendo interesses obscuros. O cineasta Francis Ford Coppola contribuiu para adensar o mistério, incluindo o assassinato de um recém-eleito João Paulo I no filme O Padrinho III. Entre filmes, documentários, livros e peças de teatro, a morte de João Paulo I tornou-se um tópico apetecível.
O próprio Vaticano permitiu que estas teorias da conspiração se desenvolvessem ao manter, durante décadas a fio, dúvidas sobre o que realmente motivara a morte de João Paulo I. Uma das teorias que surgiram entretanto foi a de que a agência norte-americana CIA teria estado envolvida na morte de João Paulo I, justamente devido às investigações que o Papa estava a levar a cabo em relação ao Banco Ambrosiano, instituição que estaria a direcionar fundos para o regime ditatorial da família Somoza. O medo de que a ditadura fosse derrubada pela resistência marxista — algo que poderia ser acelerado pela divulgação dos escândalos que envolviam o banco italiano — teria levado os EUA a temer a disseminação da extrema-esquerda na América Latina, motivo pelo qual a CIA teria intervindo. Outra teoria apontava ainda para a ideia de que João Paulo I era favorável ao regresso da missa antiga, em latim, motivo pelo qual um grupo mais progressista teria conspirado para matar o Papa.
Foi com a publicação do livro Papa Luciani: Crónica de uma morte, prefaciado pelo secretário de Estado do Vaticano, que a versão definitiva da história foi fixada. Nesse prefácio, o cardeal Pietro Parolin assumiu que, durante anos, a vida de João Paulo I foi eclipsada pela sua morte: “A proximidade, a humildade, a simplicidade, a insistência na misericórdia e na ternura de Deus são os marcos de um magistério petrino que foram cativantes há 40 anos e que são ainda mais relevantes hoje. Apesar disto, a sua mensagem foi frequentemente ofuscada pelas teorias e suspeitas em torno da sua morte, que aconteceu no apartamento pontifício na noite de 28 de setembro de 1978. Após muitas conjeturas e numerosas reconstruções baseadas em rumores desprovidos de provas, podemos agora afirmar que sabemos precisamente o que aconteceu nas últimas horas da vida deste Papa.”
A versão oficial da história afasta a possibilidade de uma conspiração contra João Paulo I. De acordo com o livro de Stefania Falasca, o Papa João Paulo I tinha sentido fortes dores no peito na noite anterior, por volta das 19h, numa altura em que estava a rezar com o padre John Magee, seu secretário. Porém, de acordo com o relato de Magee, o Papa não quis chamar o médico e pediu que ninguém se preocupasse. O médico papal, Renato Buzzonetti, só foi informado daquele episódio depois da morte do Papa, motivada por um ataque cardíaco.
Este domingo, João Paulo I vai ser beatificado pelo Papa Francisco e passará a ser venerado pelos católicos de todo o mundo como Beato João Paulo I, seguindo um caminho semelhante ao de vários Papas do século XX, que já foram canonizados pela Igreja Católica — incluindo João Paulo II, Paulo VI e João XXIII.