A primeira grande paixão foi a luta greco-romana e não a música. “Ensinou a não subestimar ninguém. A ver que há sempre alguém melhor do que nós. E ensinou-me a levantar quando caí. Sempre.” Foi um dos melhores em Portugal, competiu em europeus e mundiais, mas abandonaria a modalidade pouco depois de participar no Chuva de Estrelas. “O último europeu que fiz foi em Istambul. E o último mundial foi na Bulgária. Depois disso, deixei. O treinador da seleção na altura perguntou-me: ‘Queres a música ou queres o desporto?’ Fiz uma opção.” Optaria pela música.
E passaram-se duas décadas (que agora comemora, com a edição de um álbum novo e dois concertos: a 4 de novembro no Centro Cultural Olga Cadaval, em Sintra, e a 3 de março na Casa da Música, no Porto) desde que participou no programa de televisão e gravou, em seguida, o primeiro álbum.
Antes, tímido e reservado, tocava em bares na Costa Alentejana. A timidez permance nele. Mas João Pedro Pais mudou. A idade mudou-o. “Há vinte anos era um homem-miúdo, com um pensar de miúdo — como ainda hoje tenho [risos] –, alguém que era atleta de alta competição de luta greco-romana mas que poucos livros leu, por exemplo. Houve um professor que teve o cuidado de falar comigo, um professor de português com voz nasalada, e que me disse na altura: ‘Oh João, você que anda nisto nas canções tem que ler ou então não vai a lado nenhum! Leia aí um rapaz que ganhou o prémio Saramago, o José Luís Peixoto… Vai gostar!’ E mais tarde, curiosamente, vim a conhecer o José Luís e hoje sou amigo dele. Não posso comparar esse homem-miúdo com o homem que hoje sou. Hoje tenho mais maldade, entre aspas; na altura era mais ingénuo. É normal.”
Continua a escrever canções. “É mais difícil hoje. Como tenho mais cuidado com aquilo que escrevo, como não há aquela simplicidade e ingenuidade que havia no começo, é mais difícil hoje. Curiosamente, acho que neste álbum novo, o ‘Faz tempo’, consegui fazer um pouco isso do começo: saísse o que saísse, não estaria à procura de palavras caras.”
Nesta entrevista de vida, o cantor de 46 anos confessa que gostaria de partilhar essas canções com o filho, Salvador, também ele músico. “Se ele tiver juízo pode fazer coisas engraçadas na música. Ele vai até onde o talento e a criatividade dele o levarem. Estou farto de o convidar para tocar comigo. E ele é que rejeita. É discreto. Mas acho que eu e ele podíamos fazer coisas do caraças! E tenho a certeza absoluta que encheríamos salas. Mas mais ano menos anos vou fazer isso.”
Vinte anos é muito tempo. Sentiste-os passar a correr, presumo?
Acima de tudo, foram vinte anos gratificantes, pá. E houve coisas que aconteceram que foram imensamente boas. Mas sempre com alguma dúvida. Tenho sempre alguma dúvida na minha cabeça. Às vezes tenho até um certo vazio. Acho que devia estar mais relaxado, mais descontraído e pensar somente no dia-a-dia. Mas não. Ao longo destes vinte anos pensei sempre: “OK, aconteceu isto… mas o que é que virá em seguida?” E isso desassossega-me um pouco, confesso-te. Tenho as minhas incertezas, claro. Quem não as tem? Às vezes fico demasiado pensativo no que está para vir e nem sempre vivo o momento. E isso desassossega-me, sim.
Mas em palco não pensas nisso. Não há sequer tempo para pensar tanto, certo?
Em palco não penso tanto, não. Quer dizer: às vezes está lá o corpo mas a mente, o pensamento, está noutro sítio. Mas atenção: sei perfeitamente o que estou a fazer e entrego-me totalmente àquilo que faço. E até agora as pessoas têm reagido sempre com o seu apreço, com a sua afetuosidade, lotando as salas onde costumo ir. É isso que realmente me importa.
As salas estão lotadas, sim. Mas a indústria musical em Portugal — e não só — alterou-se nos últimos anos: vendem-se muito menos discos do que há vinte anos. Sentiste isso? Ainda assim, continuas a viver única e exclusivamente da música.
Sim, mudou muito. E sim, ainda vivo única a exclusivamente da música. Mas nem tudo é mau no digital: vendem-se menos discos mas há, por outro lado, mais informação a chegar às pessoas. A própria exposição dos músicos é diferente. Antes só tinhas os videoclips e pouco mais. Acho que as editoras, por exemplo, e isto em relação à venda de discos, se ressentiram bem mais do que os próprios músicos. Onde realmente faço mais dinheiro é nos concertos. Mas claro que os discos, físicos, continuam a ser importantes para divulgar a tua música. E atenção às rádios: as rádios também têm um papel fundamental, preponderante, integrante na vida de um músico. Porquê? Porque chegam a milhões de pessoas.
Mas tu das rádios não tens razão de queixa: as tuas canções sempre rodaram. Algumas delas, as do começo, ainda rodam.
É verdade. Claro que há rádios mais alternativas, mais direcionadas a um determinado público, e outras mais generalistas. Não me ouves em todas — o que é perfeitamente normal.
Quando vais a conduzir, por exemplo, e ouves uma canção tua na rádio — sobretudo as mais “batidas” –, és daqueles músicos que sintoniza outra coisa?
[Risos] Já aconteceu. Mas não me envergonho do que fiz, atenção.
Até porque continuas a tocar essas músicas nos concertos.
Claro que sim. Nos concertos vou direto ao assunto. Nesse aspeto, tento seguir as pisadas e imitar o Sting. O Sting, cada vez que vem a Portugal — e já o vi três ou quatro vezes ao vivo –, vai direto ao assunto. Não está com merdices. E não tem preconceito nenhum em tocar canções antigas. A primeira música que ele costuma tocar até é aquela: [canta] every breath you take… Logo, pumba! Ou o “Englishman in New York”. Vai logo direto ao assunto, pronto. O Bruce Springsteen, de quem também sou fã, já alterna mais as canções recentes com as antigas — e isso às vezes chateia-me um bocado. Muito raramente nos concertos que vi do Springsteen ele tocou o “Streets of Philadelphia”, por exemplo. Acho que não tocou em nenhum. E isso chateia-me. Porque adoro aquela canção. Adoro mesmo! Os [Rolling] Stones nunca tocam “Anybody seen my baby”…
Portanto, a tua setlist é o público quem a “define”, salvo seja.
Claro que sim. As pessoas querem cantar canções.
Mas quando tocas e voltas a tocar a mesma canção durante vinte anos tens que ir fazendo arranjos novos para que tu próprio não te canses dela, não?
É exatamente isso. Não me canso porque me reinvento sempre. Tenho uma maneira de interpretar, por exemplo, que é diferente daquela que tinha no começo. Sabes: nunca faço playback quando vou à televisão tocar. Levo sempre a viola. Às vezes não é fácil. Este single novo, o “Faz tempo”, tem um ênfase musical que só consegues dar com banda. A música resulta melhor com a bateria, os teclados. Tocares aquilo sozinho, uma música que ainda está no começo, é um tanto ingrato. E é-me difícil cantar aquilo sozinho. É uma música de difícil interpretação. Mas às vezes sinto que também me complico a mim próprio, caraças! [Risos] A música foi muito bem conseguida. É produzida pelo Benjamim.
Dizias-me que a tua “maneira de interpretar é diferente”.
Claro que sim. Fogo! Então não sentes? Estamos a falar, há vinte anos, de um homem-miúdo, com um pensar de miúdo — como ainda hoje tenho [risos] –, alguém que era atleta de alta-competição de luta greco-romana, candidato a ir ao Jogos Olímpicos em 1992, representava a seleção nacional… OK, tinha algum jeito para cantar. E às vezes tocava em bares. Mas poucos livros li, por exemplo. Houve um professor que teve o cuidado de falar comigo, um professor de português, e que me disse na altura: “Oh João, você que anda nisto das canções tem que ler ou então não vai a lado nenhum!” Tinha uma voz nasalada [imita-o] e dizia-me sempre: “Leia aí um rapaz que ganhou o prémio Saramago, o José Luís Peixoto… Vai gostar!” E mais tarde, curiosamente, vim a conhecer o José Luís e hoje sou amigo dele. Não posso comparar esse homem-miúdo com o homem que hoje sou. Hoje tenho mais maldade, entre aspas; na altura era mais ingénuo. É normal. Advém da idade. Mas nunca fui desleal, nem com os outros nem comigo. E tenho sido fiel àquilo que faço. Nunca subestimei nem prejudiquei ninguém. Nem o farei aos 46 anos. Está-me no sangue. Está-me no caráter!
O teu processo de escrita e composição é o mesmo ou também se alteraria?
É mais difícil hoje. Como tenho mais cuidado com aquilo que escrevo, como não há aquela simplicidade e ingenuidade que havia na altura, é mais difícil hoje. Parecia que qualquer coisa que saísse estava bem. Hoje tenho mais cuidado na escrita. Mas isso também é mau! Curiosamente, acho que neste álbum novo consegui fazer um pouco isso do começo: saísse o que saísse, não estaria à procura de palavras “caras”. Nem à procura de ter o cuidado de não me repetir. Sempre tive esse cuidado de não me repetir. OK, tenho uma maneira muito própria de escrever. Às vezes até pode soar um bocadinho agressivo, a maneira como as palavras são interpretadas pode soar um bocadinho agressiva. Mas advém daquilo que sou, daquilo que fui e que sou.
As canções são sempre ou quase sempre da tua autoria. Foi uma escolha não interpretares músicas escritas por outros? Talvez para não perderes essa identidade a que te referes?
Cheguei a cantar canções de outros. Fi-lo por exemplo com o Pedro Abrunhosa. Ele escreveu a letra de “A palma e a mão” e eu escreveria a música. E soou bem.
Certo. Mas faz-te mais sentido cantar aquilo que viveste, não?
Sim! Sim, sim. Mas naquele caso o Abrunhosa percebeu bem a minha linguagem musical — que não é muito distante da dele. Às vezes há palavras que se encontram, ele pode ir por um caminho e eu por outro, mas queremos dizer a mesma coisa. Ele sabia para onde eu queria ir. Na altura perguntaram-me quem é que eu gostaria que me escrevesse uma canção. Uma canção de amor, um amor adulto. Disse logo: “Pedro Abrunhosa!” E ele conseguiu fazer aquela canção muito bem.
Ao longo dos anos, trabalhaste com muita gente experiente na produção dos teus álbuns: o Luís Jardim, o Mário Barreiros… Neste disco escolheste trabalhar com um produtor de outra geração mas igualmente talentoso: o Benjamim. Porquê? Para tu próprio “rejuvenesceres” a tua música?
Claro que sim. Estou em constante aprendizagem, em constante ebulição. Sendo observador dos outros, tento absorver muito aquilo que fazem. Há malta muito boa a fazer coisa novas em Portugal. E o Benjamim fá-lo muito bem. Além de ser produtor e ter ideias novas, o miúdo é um músico do caraças! E soube juntar a minha vontade com a vontade dele. Conheci-o em estúdio e ele foi muito feliz a produzir o “Faz tempo” e o “És do mundo”.
Soube que foste muito exigente na produção do disco.
Muito crítico?
Não, não: exigente.
Mas sou muito crítico também. Sou virgem de signo, sabes? [Risos] Os virgens são muito críticos. Mas não o faço publicamente. Sou capaz de o fazer entre amigos: “Eh pá, não gosto daquele gajo…”
Não me referia a isso. Referia-me ao disco, à produção do disco.
Ah, sim. Mas o Benjamim também foi exigente comigo, pá. O sacana pôs-me a cantar cinquenta vezes um dos temas, eu sabia que estava bem e ele insistia que não. Ele queria o melhor do melhor. Nunca ninguém me tinha feito aquilo. E olha que trabalhei com produtores incríveis como o Mário Barreiros! O Mário era muito, muito exigente. Mas este miúdo exigiu muito mais de mim — e estou contente por isso. Achei-lhe piada. Achei piada à ousadia e ao atrevimento dele.
E como é que chegaste a ele? Ou ele a ti.
Falaram-me dele. Disseram-me com quem é que ele tinha trabalhado, que o fazia de quando em vez com o [Salvador] Sobral. E respondi: “O meu filho é fã do Sobral. E o Sobral tem bom gosto. Vamos lá…”
Conheces o Salvador?
Sou amigo da família. Mas não conhecia o Salvador musicalmente, não. Mas dizem-me que já cantei com ele…
Então?
Foi quando ela era miúdo. O pai contou-me isso mas não me lembro. Lembro-te de ter cantado com a irmã, a Luísa, na casa da família. E supostamente o miúdo também cantou, comigo à guitarra. Mas não me lembro. Tenho muita pena.
Na verdade, há pelo menos uma coisa que tens em comum com os Sobral: ambos começaram num programa de talentos. Eles no Ídolos, tu no Chuva de Estrelas.
O Chuva de Estrelas tinha uma audiência que chegava aos dois milhões de espectadores! Não é brincadeira. Dois milhões… E a SIC tinha o atrevimento de passar um programa desses à sexta-feira à noite. Sabes que à sexta-feira não costumava passar nada porque a malta escolhia a sexta para sair. Mas só saía depois de ver aquilo, é curioso.
Sabias ao que ias?
Não. Não, não! Claro que havia menos exposição do que há hoje. Não saturei a imagem e dois anos mais tarde tinha o disco a sair. Isto em 1997. A final foi a 25 de março de 1995. Mas só apareci três vezes: na eliminatória, na semi-final e na final. Não saturei a imagem.
Acabaste em segundo lugar — a primeira foi a Inês [Santos], a interpretar Sinéad O’Connor. Mas ainda hoje muita gente acredita que venceste…
É verdade. [Risos] Muita gente ainda pensa que ganhei o Chuva de Estrelas. E até me chegavam a dar os parabéns na rua por ter vencido. Mas nunca ganhei nada. Quer dizer, ganhei uns Globos de Ouro em 2002. E pouco mais.
https://www.youtube.com/watch?v=WV3673tNgGM
Porque é que concorreste ao Chuva de Estrelas?
Na altura eu tocava em bares. Em Porto Covo, Santiago do Cacém, Sines. Sempre na costa alentejana. Só cantava covers. Trovante, muito Trovante. Cantava muito o poema “Perdidamente” da Florbela Espanca. E cantava outra música dos Trovante, uma música que não canto há mais de vinte anos: [trauteia] ai se eu disser que as tremuras me dão nas pernas e as loucuras fazem esquecer-me dos prantos… Ainda me lembro de tudo! E cantava muito Zeca Afonso: “Que amor não me engana”. Às vezes quando vou cantar a bares, surjo de surpresa e é logo essa canção a primeira que canto. Faço muito isso em casa de fados. Vou ao Senhor Vinho da Maria da Fé de vez em quando. Vou ouvir um fadista qualquer e a malta pede-me que cante alguma coisa também. E levo sempre uma ovação do caraças com a do Zeca Afonso, pá.
Mas voltando atrás.
Ah, sim. Concorri porque houve alguem, a Sónia — ela tinha uma ótica, salvo erro… –, em Cercal do Alentejo, que viu um anúncio na televisão e me sugeriu que tentasse. Isto num domingo. Fiquei reticente. E fiquei porque nunca lidei muito bem com a exposição. Gostava de descrição. Gosto de ser mais um entre a multidão. Fico anos e anos sem a ver [Sónia] mas, quando a vejo, fico-lhe sempre muito grato por ter sido ela a “culpada” disto.
Como é que alguém tão discreto lidou com o que se seguiu?
O Eddie Vedder diz que um músico quanto menos falar da vida pessoal dele e menos exposição tiver, melhor. Para não haver qualquer tipo de preconceito em relação a ele. É sempre como músico que tens de falar. Ponto final. Às vezes o manager ou as editoras acham que eu deveria dar uma entrevista onde falasse mais sobre mim e nunca concordei muito. Não, não preciso desse tipo de exposição, de dar esse tipo de entrevistas.
Mas já te expões nas letras. Muito mais do que em qualquer entrevista que dês.
Fogo! Tu és inteligente. Para fazeres essa observação és muito inteligente, Tiago. É que é precisamente isso. Por as letras já falarem de mim, por serem o meu diário musical, também preciso de me “defender”. Preciso de promoção, certo, de me divulgar, OK, mas também preciso de me “defender”. E há programas que não me vão defender; vão-me expor. Se aceitasse, estaria tão com o pé atrás que me bloquearia.
E quem ouvisse pensaria que eras um tipo distante. Aqui não estás a ser.
Exatamente. Mas nem toda a gente tem a tua perceção nem a tua inteligência para entender isso. Não tem mal nenhum expor-me; a minha vida é um livro aberto. Mas é a minha vida pessoal. E o Eddie Vedder dizia aquilo — e aquilo veio dar-me uma força do caraças.
Na rua consegues ser “mais um entre a multidão”?
Consigo porque apareço pouco na televisão.
Mas após o Chuva de Estrelas deve ter sido uma absoluta loucura…
Fiquei com vergonha de andar de autocarro, por exemplo. Como ainda não tinha carta, andava muito de autocarro na altura. Sabes: tenho saudades de andar no elétrico 28, Tiago. Porque foi o elétrico da minha infância. Da Estrela até à Graça. Mas eu ficava no Camões, porque tinha a minha madrinha a viver na Rua da Emenda, ao lado do Calhariz. Conheço a zona como a palma da minha mão. Vivi na Estrela a minha infância, andei no colégio, no internato, em Santa Catarina, fui muito feliz e tive uma infância do caraças. Era um miúdo livre. Com cinco anos já andava sozinho. Mas nunca me enganava. Com sete anos saía do colégio e ia a pé até casa, na Estrela, porque só tinha que seguir a linha elétrico.
E isso fez-te crescer. Se calhar até cedo demais.
Fez. Deu-me maturidade. E responsabilidade. Era uma criança que vivia muito sozinha. Como ainda hoje vivo — apesar de ter família e ter o meu filho. Mas vivo muito sozinho com os meus pensamentos, pá.
O isolamento é uma escolha?
Às vezes… [pausa] às vezes apetece-me viajar, correr o mundo sozinho. Viste o filme “Into the Wild”?
Vi, realizado pelo Sean Pean, sobre a história do Christopher McCandless…
Isso! Quase no fim o McCandless, o miúdo que morreu no Alasca, na camioneta, escreve que não se deve viver algo sozinho…
“A felicidade só é verdadeira quando partilhada…”
Exatamente. Às vezes apetece-me viajar sozinho. E até podes contar o que te aconteceu a alguém. Mas o que gostavas mesmo é que lá estivesse alguém que é importante para ti, que essa pessoa tivesse visto aquele momento contigo. Não é a mesma coisa sozinho.
Mas contavas-me que desde cedo palmilhavas Lisboa a pé. Quando participas no Chuva de Estrela, e surge a notoriedade, deixaste de fazer muitas coisas que antes fazias? Andar de autocarro foi uma.
Não me impediu de fazer nada, atenção. A minha timidez é que me impediu. A minha discrição. Lembro-me de vir no metro e ver uns miúdos que vinham da escola. E começaram a dizer: “Olha quem vai ali, aquele é o cantor!” Isso intimidou-me como o caraças! [Risos] Ainda hoje. Fico aflito, pá. Uma coisa é alguém chegar-se ao pé de ti, reconhecer-te e conversar um bocadinho contigo. Outro coisa é gritarem no metro: “Olha, olha: o cantor!” C’um caraças, tu não sabes onde é que te podes esconder. Em calão, é “estrilho”. O estrilho público.
O que é que surgiu primeiro: a música ou a luta greco-romana?
A luta. Precisamente no colégio, em Santa Catarina. Havia judo e havia luta. Tinha sete, oito anos. Experimentei com os do meu peso, lutava, e eles caíam todos ao chão primeiro do que eu. O treinador viu que tinha algum jeito. Se uma criança começa a praticar um desporto de combate, combate ligeiro, sem violência, um combate corpo a corpo e de defesa, e essa criança começa a ir muitas vezes ao chão, à partida não continua. E esse treinador percebeu que tinha jeito e continuei. Ganhava tudo nos infantis, não perdia com ninguém em Portugal. Pelas várias categorias de peso em que passei, ganhava tudo.
E passaste por que clubes?
Primeiro representei o Casa Pia Atlético Clube, depois passei para a Junta de Freguesia de São Paulo, depois o Lisboa Clube Rio de Janeiro, Benfica, Sporting…
Quando é que se tornou sério?
Quando cheguei à seleção nacional. A partir dos 14 anos. Aqui não perdia com ninguém. Só perdia nos torneios internacionais. Ganhava aos espanhóis, perdia com os franceses. [Risos]
Chegaste a ir a europeus, mundiais…
Cheguei, cheguei. Fiz dois mundiais. E não fiz mais porque às vezes eu próprio não queria.
Então?
Era uma chatice ter que perder peso. De treinar eu gostava. E de competir. A chatice era ter que perder peso. Eu pesava 57 quilos e tinha que chegar aos 52. Era uma violência.
Treinavas com lãs vestidas? É comum.
Lãs não. Mas treinei muitas vezes de impermeável vestido no verão. E quase deixava de comer. Isso é uma chatice do caraças. O que me levou a sair da luta foi o ter que perder peso.
Estiveste quase a ir ao Jogos Olímpicos, em Barcelona. O que é que falhou?
Falhou não ter conseguido mais classificação e não ter dado continuidade. Fiz um interregno propositado, porque queria ir para férias. Via os meus amigos a ir de férias e estava muito agarrado à luta. Aquilo incomodou-me um bocadinho.
Mas viajavas muito, precisamente por causa da luta greco-romana e das competições no estrangeiro onde participavas.
Sim. Mas não havia tempo para nada. Era um tipo de viagem que me incomodava muito e que hoje, na música, não acontece. Viajo também, mas antes de ir tenho o cuidado de ir ao Google ver que pontos de interesse turístico há naquelas cidades. Por exemplo, se vou actuar aos Açores e vou à Graciosa, pergunto-me: “O que é que há? Vou ver isto que ainda não vi…” Não fico dentro do hotel. Se puder ir mergulhar, vou. Levo os óculos, levo as barbatanas e vou mergulhar. Os meus colegas às vezes gozam comigo: “Olha, lá vem o gajo com as barbatanas!” Eles que fiquem no hotel a fumar um cigarrinho — não fumo e ainda hoje continuo a fazer desporto: luta greco-romana, judo. E vou mergulhar sozinho. Às vezes tenho medo de mergulhar sozinho no oceano profundo. Mas vejo uma beleza brutal. E lá consigo convencer alguém a ir comigo…
O que é que a luta greco-romana moldou no teu caráter?
Não subestimar ninguém. Ver que há sempre alguém melhor do que nós. E ensinou-me a levantar quando caio. Sempre.
Mas eras “reguila” na infância? Ou sempre foste calmo como te conhecemos hoje?
Às vezes fugia da minha avó. A minha reguilice na infância levou-me a fugir muito. Distraía os meus avós no Jardim da Estrela, apanhava o elétrico em frente à Basílica da Estrela e vinha até Santa Catarina. E eles preocupados à minha procura. Hoje sei que é grave. Tive sorte. Tive sempre alguém [olha para cima] a olhar por mim, a cuidar de mim e a dizer: “Epá, oh miúdo, tem lá calma…” Tive sorte. Outros não tiveram tanta sorte… Aprendi a não fazer figuras tristes. Sempre tive esse cuidado. Às vezes até poderia parecer antipático por ser tão reservado. Mas era a minha defesa. Defendi-me sempre. Não me entreguei às pessoas totalmente, às pessoas que não conheço bem, àquelas que hoje estão comigo e amanhã não.
Quando começaste a ter sucesso, a ganhar mais dinheiro, aproximou-se muita gente de ti por interesse?
Não, nem se aproximam. Mas falam de uma maneira diferente. Quando serves falam de uma maneira; quando não serves falam-te de outra. Não quero servir nem deixar de servir.
Serve a música.
Serve a música, exatamente. Mas tenho tido a sorte de ter gente que ainda me fala da mesma maneira desde o começo, como a minha primeira promotora, a Lola Coelho. O editor, o Francisco Vasconcelos, também. A maneira de falar não mudou. Sei que quando saí da Valentim de Carvalho e fui para a Sony, ele [Francisco Vasconcelos] ficou com alguma mágoa. Ficou triste. Mas ao fim de dois anos estou a voltar lá para editar este disco. E noto que ele ficou contente com o regresso e que tem carinho por mim. Se a pessoa gostar mesmo de ti, ela há-de voltar. Ela há-de voltar.
Estás a falar de amizades que fizeste e manténs. Todas as que referiste são da música. Guardas amizades da infância?
Na música não fiz muitas amizades; fiz “conhecimentos”, Tiago. Mas da infância guardo, guardo. É curioso: eu é que vou à procura deles. Eles não me procuram porque têm algum preconceito, julgam que posso não lhes falar como falava. A minha adolescência foi vivida na Venda Nova, Portas de Benfica. Era amigo da Tânia, a filha do Jorge Jesus — eles viviam no prédio da pastelaria Scala. E às vezes procuro aquela malta. Ainda estive lá antes de ontem na Venda Nova. Vi uma senhora à janela. E perguntei-lhe: “Lembra-se de mim?” Uma senhora que é peixeira no Mercado de Benfica. Uma senhora muito bonita, já na altura era muito bonita. E ela: “João!” “Você era muito bonita e continua a ser…”, respondi-lhe. Foi um momento do caraças. Aquela senhora fez parte da minha adolescência e ainda se lembrava de mim. Não esqueço isso. Sou o meu passado também.
Quando é que se tornou impossível para ti conciliar o desporto de alta competição com a música?
Tive que fazer uma opção. Representava a seleção nacional. Epá, e se começas a entrar em campeonatos, em europeus, mundiais, tens que ter um compromisso. O treinador estava a contar comigo. Se me dedicasse à luta e não tivesse tido lesões sei que contariam comigo até tarde. Um lutador pode competir até aos 35 anos ao seu melhor nível. Mas eu não ia ter disponibilidade. Tinha 26 anos quando deixei. Ainda era novo. O último europeu que fiz foi em Istambul. E o último mundial foi na Bulgária. Depois disso deixei. O treinador na altura perguntou-me: “Queres a música ou queres a luta?” Fiz uma opção.
Custou-te deixar a luta?
Não custou nada. Ainda hoje continuo a treinar. Se tivesse optado pelo desporto se calhar tinha sido mais difícil.
Mas não sentias falta da competição? Uma coisa é competir e outra, bem diferente, é treinar de vez em quando.
Dava-me gozo competir quando as coisas corriam bem. Quando corriam mal, não dava assim muito gozo. E perder o peso era desesperante como te disse.
Depois de participares no Chuva de Estrela surge-te um convite para gravar o primeiro disco. Quem é que te convidou?
Foi o Falcão, que ouviu uns temas meus.
Manuel Falcão? O antigo administrador da Valentim de Carvalho?
Exatamente, esse mesmo. Ouviu e gostou. E foi ele que me incentivou a gravar um álbum. Ele foi parte preponderante da minha vida musical. Sempre teve interesse em mim.
Quando surge o convite já tinhas canções? Ou foi tudo escrito depois de o convite surgir?
Fui fazendo. Entre 1995 e 96. Fui escrevendo as minhas coisas.
Mas não as apresentavas nos tais bares.
Exatamente. Tinha vergonha. Sabia lá como é que as pessoas reagiriam.
A quem é que as apresentavas?
A primeira vez que mostrei um tema a alguém, o “Tanta coisa”, mostrei-o ao piano na Alemanha. Nos Alpes. A uma rapariga, uma professora. Mostrei-lho e lembro-me que ela respondeu: “Es ist schön, Pedro!” Ou seja, “é bonito”. “Danke, obrigado!” Foi a primeira vez. Mas ainda hoje não faço ideia o que é que vai funcionar ou não. Aquilo que me soa bem pode não soar bem às pessoas ou às rádios, sobretudo às rádios — que são uma parte fundamental: elas é que fazem ou não com que a canção resulte.
Mas agora tens outro fenómeno em Portugal: as novelas. Se uma canção tua entra na banda sonora de uma novela — e isso já te aconteceu –, tem tanto ou mais sucesso do que se passar na rádio.
Também é importante. Mas “cuidado” com as rádios! Na novela a tua canção está associada a um personagem, conta a história desse personagem. É muito importante, sim. Mas nas rádios, as nacionais, as locais, as pessoas escutam a canção com mais atenção. A novela é importante mas distrai, porque a pessoa está a ouvir a música mas está ligada ao que o personagem está a dizer, à imagem e não tanto à música.
Nesse primeiro álbum tiveste duas canções que rodaram muito das rádios, a “Ninguém é de ninguém” e a “Louco”. Depois, em 1999, vais gravar com o Luís Jardim, em Londres, o segundo álbum. E o sucesso ainda é maior.
O Luís tinha acabado de produzir o Avenidas, do Rui Veloso. Então, fui procurar mais informações sobre o Luís. E ele tinha tocado com os Rolling Stones, no álbum Voodoo Lounge e no Steel Wheels. Como percussionista. O Luís toca em todos os álbuns do Seal até hoje. Toca no álbum [Mylo Xyloto] dos Coldplay, aquele que tem a música [canta] para-para-paradise, para-para-paradise. Vi também uma fotografia do Luís Jardim a tocar com o Paul McCartney. O Luís Jardim é um músico do caraças. E trouxe a experiência dele para mim e para o álbum.
Mas não sei se entendi bem: foste tu quem o contactou, é isso?
Foi o Manuel Falcão que o contactou. O Manuel sempre me quis levar a um sítio bom. E agradeço-lhe isso.
Mas voltando ao Luís.
Temos uma grande cumplicidade os dois. Dos produtores com quem trabalhei, o Luís é o mais divertido em estúdio. Mesmo! Por isso é que toda a malta gosta de trabalhar com ele. Os Coldplay, os Rolling Stones: se estes gajos o querem é por alguma coisa. De certeza que não é mau percussionista nem produtor. E é porreiro.
Há pouco estávamos a falar do Benjamim e do facto de seres muito exigente. Eras exigente na altura como és hoje?
Nalgumas coisas posso ter facilitado. Não devia ter facilitado tanto.
Mas identificas-te com aqueles primeiros álbuns?
Sim, identifico. Mas ouço-os e sei que podia fazer melhor. O segundo álbum, o Nada de nada, resultou. Resultou imenso. Mas hoje não o deixaria sair assim. Por isso é que agora voltei a estúdio para regravar a voz. Era uma voz de menino. A interpretação não foi muito feliz. Mas tentei não fugir àquilo que fiz, não descaracterizar muito. Mas cantei com uma voz mais adulta, claro.
Esse álbum de que falas chegou à platina. E deste muitos concertos. A vida de estrada nunca te desgastou?
Mas também nunca dei assim tantos concertos. Acho que por ano o máximo que dei foi 40.
Desculpa, mas isso é muito. Hoje em dia quase ninguém dá 40 concertos por ano.
É verdade. O país é pequeno. E não podes dar mais. Tens que ter cuidado para não saturar a tua imagem. As pessoas hoje acham-te piada e amanhã não acham. Há muito mais salas do que havia mas tens que saber gerir bem. É preciso ter muito cuidado. Se quiser andar cá mais vinte anos, isso depende também da paciência que as pessoas tenham para me aturar. Mas também depende da minha criatividade e da minha disponibilidade, claro.
Mas estás a ver-te certamente a fazer isto durante mais vinte anos. Não?
[Pausa] Epá, isto passa num instante. Um ano tem 365 ou 366 dias. Claro que passa num instante. E tenho que saber que é tudo muito passageiro, muito fugaz.
Colaboraste com muita gente: o Jorge Palma, há pouco falámos do Pedro Abrunhosa, também com o Fausto, o Carlos do Carmo ou o José Mário Branco. Uma colaboração que surge em meados de 2002 é com o Bryan Adams. Como é que se conheceram?
É estranho… [pausa] mas lá vamos falar do Manuel Falcão outra vez. Nunca tinha pensado nisto. Vou-me lembrando disto porque, para já, me estás a fazer perguntas diferentes do que os outros fazem. E chego agora à conclusão que o Manuel está sempre presente. Na altura, existia a Praça Sony no Parque das Nações. E o Manuel andava com a ideia na cabeça de fazer um espetáculo na Praça Sony comigo. Um espetáculo em que a cara principal do cartaz fosse o Bryan Adams. E na altura não houve essa possibilidade. Mais tarde, soubemos que ele vinha cá em 2003 — e ele já não vinha há muitos anos! –, eu estava com o Luís Jardim, o Luís tinha feito uma coisa com o Bryan, uma música com o Bryan e o Paco de Lucía, perguntei-lhe se podia enviar umas canções para o Bryan, ele ouviu e aceitou que fizesse a primeira parte dele. Foi assim. Mas disseram-me logo: se é para a fazer Lisboa, tem que fazer a tour ibérica. Fiz Barcelona, Alicante e Madrid.
Foi um investimento e tanto.
Tinha que se ter dinheiro. Um avião era caro demais. Então, alugámos um tour bus — que também era caro, antenção. E essa tournée foi muito cara na altura. Nós, portugueses, é que assumíamos os nossos próprios custos de logística. Ainda foi caro. Mas foi muito benéfico, claro.
Mas acabaste por não te internacionalizar, por exemplo.
Nós fomos muito bem recebidos em Espanha. Mas sabes que os espanhóis são muito patriotas. Esquece! Nós somos muito mais abertos musicalmente do que lá.
Voltando às pessoas com quem colaboraste e partilhaste canções ou o palco. Partilhar uma canção com alguém é algo que te dá prazer?
Claro. Claro, claro. Não tenho preconceito nenhum em partilhar.
Mas nem sempre é fácil.
Pois não. Mas desde que cada um tenha a sua identidade musical e a mantenha, não há problema nenhum. O que interessa é que te identifiques.
Portanto, nunca cantarias com um músico com o qual não te identificasses? Mesmo que o músico seja realmente bom…
Não! Não, não. Esqueces lá isso. Estás em pensar em alguém, não estás?
Não estou.
[Risos] Pronto. Se não me identifico, não. Ele até pode ter o maior sucesso. O maior talento. Mas eu tenho que me identificar. Ainda há pouco tempo fiz um dueto com a Carolina Deslandes e acho um piadão à miúda. Vês? É de uma geração diferente da minha.
Contactam-te muito, os músicos dessa geração “diferente” da tua? Para colaborações, por exemplo.
Às vezes eles podem ter algum receito de que não aceite. Tal como eu tinha com a idade deles. A Carolina, por exemplo, achei-a tão inteligente que disse: “Bora lá a isto!” Uma coisa de que não me esqueço é que, quando tinha a idade dela, o primeiro músico de renome que aceitou cantar comigo foi o Luís Represas. Não me esqueço disso. Não cuspo na sopa onde como. Mas deito-a fora se ela estiver azeda ou estragada. Mas não posso esquecer que, no princípio, ele foi a primeira pessoa que aceitou cantar comigo. Era um desconhecido.
Por falar em “deitar fora se estiver azeda ou estragada”. Desiludiste-te com alguém ao longo destes vinte anos?
Há sempre desilusões, claro. Às vezes aparecem-te pessoas à frente que querem o momento, não te querem ajudar, não querem saber do teu percurso musical e do que fizeste de bem; querem é o momento presente. Mas nesse aspecto tenho sorte com o Francisco Vasconcelos e com a Valentim de Carvalho: a Valentim está a lançar este álbum mas está a pensar no futuro, a pensar no que vou escrever no futuro. O Francisco Vasconcelos tem esse cuidado, nunca me diz que o que quer é facturar agora e que depois logo se vê. Ele não pensa assim. Tive a sorte de apanhar alguém como ele.
Mas também apanhaste o contrário.
Há pessoas menos… [pausa] com menos capacidade de ouvir e escolher música como o Francisco. Não têm esse dom.
Não falando de música. Pouca gente sabe que tu estás novamente ligado à luta greco-romana. O que é que estás a fazer exatamente?
Estou Centro de Alto Rendimento do Jamor como diretor técnico na seleção nacional. Eles acham que sou um exemplo para os mais jovens. De quando em vez apareço lá. Devia aparecer sempre mas eles sabem qual é a minha vida e sabem que nem sempre tenho tempo. Mas vou aos estágios, vou com eles a alguns torneios, vou incentivar os mais jovens. Incentivo-os a serem melhores. Explico-lhes a importância que a luta, enquanto desporto, tem para a vida futura deles.
E reconheces-te na história de vida de muitos deles?
Sim. Sim, sim. Claro que sim. Maioritariamente são pessoas que vêm de famílias destruturadas. Sim, sim. Até pior do que eu… [longa pausa]
Diz o que quiseres, João. Estás à vontade…
Certo. Alguns deles até não tiveram o carinho que eu tive na infância, por exemplo. Tive a sorte de ter os meus avós maternos sempre presentes. Tive o meu avô até aos sete anos e a minha avó até aos 18. Tive a minha mãe. Tive sorte. Conheci-os. Sei o carinho que aquelas pessoas me disponibilizaram, percebes? Isso fez com que hoje seja aquilo que sou. Ponto final.
Eras muito acarinhado por eles. Mas também foste certamente acarinhado no colégio.
Dizem, as pessoas que me conheceram lá, que era um traquina. [Risos] Mas não era maldoso; era um miúdo muito humano. Dizem todas a mesma coisa.
Ainda manténs contacto?
Sim, claro que sim. Há uns que não me interessam. Não me interessam aqueles professores que pensam que foram eles que me ensinaram a cantar, que lhes devo tudo. Desfiz-me deles emocionalmente, coloquei-os numa “prateleira”.
Mas foi ainda na Casa Pia que aprendeste canto e algum instrumento, certo?
Aprendi principalmente onde são as notas no piano. Aprendi por carolice e por ver o professor a tocar. Hoje ponho as mãos no teclado e sei que notas é que estou a dar. Sei que acordes são. Componho sobretudo à guitarra. Mas ao piano também. Por falar em paino: sabias que tinha feito a tropa com o Bernando Sassetti?
Não sabia. Conta-me…
Fiz a tropa com o Bernardo, sim. Ele era um génio. Eu e o Bernando fomos os dois para a Carregueira. Em 1992. Éramos os músicos do pelotão. Mas o Bernardo detestava a tropa ainda mais do que eu. Fogo… Porquê? Porque tive a sorte de vir da luta greco-romana e tinha uma preparação física melhor do que a dele. Mas o Bernardo corria muito bem. Em velocidade, como era mais alto, corria muito bem. Na corrida, ganhei ao Bernardo nas barras mas na velocidade ele ficou à minha frente. E porque é que eu corria com ele? Porque o Bernardo era Paes de apelido. Com “E”. Às vezes metia-me com ele: “Tu és o Paes rico e eu sou o Pais pobre”. Era verdade. E ele ria-se. E também por causa do apelido, dormia no mesmo beliche que eu. Ainda estivemos juntos três ou quatro meses. Depois fui para a banda do exército e ele ficou na Carregueira. Ele morava aqui no Príncipe Real e, às vezes, encontrava-me com ele no Rossio, onde ele apanhava o comboio. Eu descia em Queluz e ele continuava para o Cacém. O gajo vinha com o jornal na mão no comboio e dizia: “Esta merda da tropa!” O dia mais feliz da minha foi aquele em que deixei a tropa, acredita. Bater a pala era uma grande chatice.
Esse e o do nascimento do Salvador, não? Ele também se interessa por música.
O meu filho é um grande músico, meu! Um grande músico. Cuidado com ele. Tem 18 anos. Mas quando pega numa viola a tocar Dave Matthews e John Mayer, cuidado com ele.
Aprendeu contigo?
Oh, aprendeu os primeiros acordes. Só. Tal como o meu primo, o Fred, que é guitarrista dos HMB. Eu influenciei, sim. Mas depois fizeram o seu caminho.
E canta?
Muito. Muito, muito. O ídolo dele é o Salvador Sobral. O Frankie Chavez ouviu o meu filho a dedilhar no outro dia e diz que ele pode ser o que quiser.
Estás nisto há vinte anos. Sabes perfeitamente o que é a indústria musical em Portugal e o quão difícil é singrar. Ainda assim, incentiva-lo a seguir?
Se ele tiver juízo, se o Salvador tiver juízo, pode fazer uma coisa engraçada. Ele vai até onde o talento e a criatividade dele o levarem. Acho a música dele a interpretação dele mais universal do que a minha. Tem uma pronúncia inglesa brutal — esteve na Berklee College of Music no ano passado, a fazer um curso de verão. Eu não tenho essa pronúncia, por exemplo. Vai ter oportunidades que não tive. E como instrumentista o Salvador pode ser um caso sério.
Se daqui a uns anos disserem que tu és “o pai do Salvador” — sem referirem o teu nome — e não que ele é “o filho do João Pedro Pais”, ficas ciumento? Isto é uma provocação, claro.
[Risos] Não tenhas dúvidas que isso pode acontecer. Isso poderá advir da “lata” que ele tenha ou não, da atitude.
Mas é tímido como tu?
Ele é tímido, sim. É discreto. Ainda há pouco tempo um músico me disse que o ouviu tocar no Bairro Alto e que ele era muito cuidadoso, nunca dizendo que era meu filho. Estou farto de o convidar para tocar comigo e ele é que rejeita. E isso lixa-me o espetáculo. Se ele tocasse comigo no Olga Cadaval, no dia 4 de novembro, ou na Casa da Música, a 3 de março, o miúdo seria um êxito — e sei o que é que estou a dizer.
Talvez ainda lhe dês a volta a tempo do concerto no Porto.
Exato. [Risos] Mas ele diz que não quer. Mas acho que eu e ele podíamos fazer coisas do caraças! E tenho a certeza absoluta que encheríamos salas. Mas mais ano menos anos vou fazer isso.