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Nuno Delgado não esquece o momento em que ficou a saber que Jorge Fonseca tinha sido diagnosticado com cancro na perna esquerda. Foi em 2015. Naquele dia, o antigo judoca, medalha de bronze em Sidney 2000, e amigo do atleta atendeu uma chamada. Do outro lado, estava o treinador de Jorge com a má notícia. Na altura, Nuno era o chefe da equipa técnica. “Foi uma fase muito difícil”, recorda. Precisou de cerca de um ano de tratamento. “Era um atleta com potencial de vir a ser o melhor do mundo. E de repente estava a lutar pela vida e a sentir o corpo a desfalecer”, explica. Mas, tal como nos tatamis, o cancro foi mais um adversário que o atleta derrubou. No ano seguinte, já estava a competir nos Jogos Olímpicos de Rio de Janeiro. “O Jorge teve muita humildade e força de vontade. Voltou a treinar e a competir do zero. Foi um milagre”, conta Nuno Delgado.
David Reis, também ele judoca e colega de equipa de Jorge Fonseca no Sporting Clube de Portugal, destaca esta sua força de vontade: “Alguns meses depois de o Jorge ter recebido o ‘ok’ para voltar aos tapetes, estava na Áustria a lutar como se nada se tivesse passado. Eu pensei: ‘Parece que ainda voltou melhor'”, recorda ao Observador com espanto.
A determinação é uma característica frequentemente relatada por quem conhece bem Jorge Fonseca. Essa determinação levou-o a conquistar a medalha de bronze esta quinta-feira nos Jogos Olímpicos de Tóquio, na categoria de -100 quilos, frente ao canadiano Shady Elnahas, por waza-ari. Foi mesmo a primeira medalha para Portugal na competição.
Também este ano, já se tinha tornado bicampeão mundial de judo: o atleta conquistou a segunda medalha de ouro da carreira em mundiais, e do judo português, ao vencer em Budapeste todos os cinco combates por ippon (a pontuação máxima), incluindo na final da categoria -100kg contra o sérvio Aleksandar Kukolj. “Foi um mundial perfeito”, afirmou na altura.
Mas antes de chegar aos pódios das maiores competições internacionais e de fazer erguer a bandeira nacional ao som do hino nacional, Jorge Fonseca teve de fazer várias escolhas ao longo da vida.
De São Tomé e Príncipe, para as ruas da Damaia e para os tapetes do judo: “Logo com 14 anos, percebeu-se claramente que era um miúdo com um potencial fora de série”
Jorge Fonseca nasceu em São Tomé e Príncipe. Tem atualmente 28 anos e chegou a Portugal aos 11. “Tive tempos muito bons em São Tomé. Vivia com o meu pai e com a minha madrasta. Aproveitei tudo o que de bom uma criança podia ter num país como aquele”, recordava numa entrevista ao Observador em 2017. A Damaia abriu-lhe as portas para ali viver. Já o judo abriu-lhe uma janela — de oportunidades.
Jorge Fonseca, o judoca que fez ippon ao cancro. “Incomodou-me a forma como fui exposto na doença”
“A Damaia oferece muita criminalidade, é fácil sair do caminho certo”, começa por dizer Nuno Delgado. “E via-se que o Jorge era um miúdo muito problemático. Era irreverente, traquinas e sempre pronto para fazer algumas asneiras”, conta. Um dia, a fugir do elétrico porque não tinha pago o bilhete, partiu o braço. “Desapareceu durante um mês”. “Eu era um rapaz muito rebelde, agitador”, já tinha admitido ao Observador o próprio Jorge Fonseca. E foi no meio desta irreverência que entrou o treinador de sempre — o “mestre” Pedro Soares.
“O grande desafio foi o que o Pedro Soares conseguiu fazer: dentro do possível, manter o Jorge focado, organizado, dedicado a treinar e a não se perder com as oportunidades menos boas da vida; que foi o que aconteceu a muitos miúdos com um talento tão bom ou melhor que o do Jorge, mas que hoje não estão aqui para contar a história. O Pedro Soares foi como um pai para o Jorge. Foi o Pedro que o virou para o lado bom. Percebeu que o judo era uma boa oportunidade para o Jorge não se perder na vida”, afirma.
E a entrada para o judo aconteceu de forma natural. “O meu treinador, o Pedro Soares, dava aulas na escola da Damaia. Ia olhando pela janela para ver como era, no dia a seguir voltava… Fui começando a gostar. Ainda não era assim nada de especial, mas pedi autorização à minha mãe e fui experimentar”, recordou Jorge Fonseca ao Observador há quatro anos.
E, hoje em dia, Nuno Delgado garante que ainda se lembra bem dessa altura. Jorge Fonseca tinha cerca de 14 anos. Já tinha o físico necessário para o desporto, mas, ao início, Nuno Delgado admite ao Observador que não apostava todas as fichas no jovem atleta. “O Pedro Soares veio ter comigo quando estava a dar um treino da seleção sub-16 a dizer que gostava que ele ficasse. Respondi-lhe: ‘Mas ele nem sabe cair'”. O antigo judoca e amigo de Jorge Fonseca não esquece a resposta de Pedro Soares: “Não te preocupes. Deixa-o aí que ele vai adaptar-se”. E assim foi: “Ao fim de uma semana, o Jorge já andava a pegar nos adversários e a aplicar-lhes técnicas de judo”, conta sem conseguir conter o riso. “Percebeu-se claramente que era um miúdo que tinha um potencial fora de série”, recorda.
“Fora de série” nos ginásios e academias, nem tanto assim nas salas de aula. Era bom aluno? Fizemos a pergunta a Nuno Delgado. “Não!”, responde imediatamente o amigo com um riso comprometedor de quem sabe mais do que revela. Jorge Fonseca não era lá muito conhecido por gostar da escola. Era até gozado por alguns dos colegas. “Era gordinho”, conta Nuno Delgado. “Mas com o tamanho que tinha, facilmente se vingava dos colegas usando a força”, diz depois.
Quem se recorda bem desses tempos é Bela Lopes. Era funcionária na escola da Damaia onde Jorge Fonseca estudava. “Era um rapaz traquina, mas bom miúdo”, recorda. “Um miúdo espetacular”, acrescenta. Bela Lopes conta ao Observador que também foi ginasta do Sporting e que isso era tema de conversa entre os dois, na altura. E a funcionária já previa um grande futuro ao nível desportivo para Jorge Fonseca. As expectativas criadas por Bela Lopes não foram exageradas.
A energia contagiante do “Pérola Negra”, o “gordinho” que queria ser polícia e foi pai aos 17 anos
Foi só mais tarde que David Reis conheceu Jorge Fonseca. Há cerca de oito anos, para ser mais exato. Colega do judoca no Sporting, também não poupa nos elogios em conversa com o Observador. “Quem conhece o Jorge sabe que tudo é possível”, diz. E afirma mesmo que a energia de Jorge Fonseca contagia: “Eu acabava por me sentir motivado nos treinos pela alegria do Jorge”. E adianta: “Tem uma história de superação de louvar”. Até porque, para além do cancro na perna esquerda, também já teve de enfrentar a Covid-19.
E a famosa dança? “Foi uma maneira de se expressar. Vai ao encontro da pessoa que é o Jorge: uma pessoa alegre e animada”, diz David Reis. O também atleta leão revela que tem uma alcunha para ele: “Pérola Negra”. A expressão pegou, mas David admite que nem se recorda bem como começou. Terá surgido algures “no título de uma notícia qualquer” que leram.
Ao longo dos anos, foram faltando adjetivos aos jornalistas que tinham de escrever sobre as vitórias do atleta. Medalhas, títulos, conquistas. O currículo é vasto. A sala de troféus de Jorge Fonseca conta com quase duas dezenas de medalhas. A 17 de novembro de 2013, Jorge Fonseca já tinha conseguido algo de inédito para o judo nacional, ao tornar-se no primeiro atleta masculino português a alcançar o título do Campeão da Europa de Sub-23. O título mais recente, como já dissemos, foi o de bicampeão mundial de judo — ouro conquistado nos Mundiais de Judo de 2019 e depois novamente nos Mundiais deste ano, em Budapeste.
“É o melhor do mundo”, atira convicto o presidente da Federação de Judo. “É uma pessoa simples, humilde, sempre bem humorada”, afirma ao Observador Jorge Fernandes. Já desde novo “chamava à atenção porque era diferente”: “Ele era um atleta pesado. E os atletas pesados são mais lentos. No caso dele, era diferente”. Porquê? Porque “estava sempre a treinar”, recorda o presidente da Federação Portuguesa de Judo.
Mas o caminho poderia ter sido diferente. O atual bicampeão mundial de judo pensou em ser polícia. “Comecei a pensar nisso quando tinha mais ou menos 18 anos. Parei e pensei o que queria fazer da vida além do judo. Não me via numa secretária, isso não. Quero ajudar as pessoas boas e decidi que seria polícia. Tinha essa curiosidade, ainda hoje tenho”, confessou ao Observador em 2017. Mas a farda nunca chegou e hoje em dia o atleta impõe a autoridade apenas dentro dos tatamis (apesar de já ter sido detido duas vezes no Japão, uma por atravessar a passadeira quando o sinal de peão estava vermelho e a outra por correr sem camisola na rua).
Pelo meio, e ainda na juventude, surgiu outro capítulo nesta longa história: Jorge Fonseca foi pai com apenas 17 anos. “Mudou a minha vida. Mudou mesmo. Era uma pessoa que não dava grande valor às coisas, não me preocupava com nada, qualquer coisa a minha mãe ou o meu pai resolviam. Tive de pensar assim: ‘Quem é que vai dar de comer ao meu filho?’ Fiz-me homem”, contava ao Observador o judoca nessa entrevista de 2017, na altura com 24 anos. Hoje em dia, o filho também segue as pisadas do pai: já treina judo na escola de Nuno Delgado, na Amadora.
Este ano, depois do mundial, o foco era só um: Tóquio 2020. “O Jorge Fonseca fica contente quando ganha. Mas quando isso acontece, motiva-o ainda mais. O facto de ele ter sido bicampeão fê-lo treinar mais ainda. Enfim, só assim foi possível revalidar esse mesmo título”, defende o presidente da Federação Portuguesa de Judo, Jorge Fernandes. Nuno Delgado vai mais longe: aos Jogos Olímpicos de Rio de Janeiro, em 2016. Na altura, foi eliminado na primeira ronda da categoria de -100kg da competição, ao perder com o checo Lukas Krpalek. “Caiu em lágrimas. Mas foi aí que se começou a construir todo este percurso. Absorveu as lágrimas e disse: ‘Não! Eu vou chegar aos próximos Jogos Olímpicos e vou ganhar uma medalha!'”, recorda Nuno Delgado.
E assim foi.