Quem colocar hoje uma casa à venda, desde que essa casa fique minimamente próxima dos centros urbanos, pode ter a expectativa de a vender por mais dinheiro e, mesmo com o aumento das taxas de juro, não vai faltar quem queira comprar. Só nos locais com menos procura é que existe descida dos preços, maior demora no tempo médio de venda e diferença maior entre o preço anunciado e o valor do negócio. Ao contrário do que acontece na maioria dos países europeus, o mercado imobiliário desacelerou mas o setor está a resistir mais do que se previa – e dá sinais de estar novamente a acelerar.
Apesar do aumento súbito das taxas de juro, que apertou muitos orçamentos familiares e travou a concessão de novo crédito, “o mercado resistiu bem”, afirma a economista Vera Gouveia Barros, em declarações ao Observador. “Ao contrário do que algumas pessoas julgaram que iria suceder, 2023 continuou a ser marcado por uma subida do índice de preços da habitação, do valor médio de cada alojamento transacionado e do valor mediano do metro quadrado”, acrescenta a economista, investigadora na área da habitação.
Os últimos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) dizem respeito ao terceiro trimestre de 2023. Em comparação com o mesmo trimestre do ano anterior, os preços aumentaram 7,6%, desafiando a “lei da gravidade” que está a puxar para baixo os preços das casas na maioria dos países europeus, onde se está a notar mais o impacto das taxas de juro e do aumento do custo de vida.
Este aumento de 7,6% é uma desaceleração de cerca de um ponto percentual em relação à variação homóloga do segundo trimestre. Mas continua a ser um aumento expressivo que contrasta com as descidas anuais que estão a verificar-se na generalidade dos países europeus. No resto da zona euro, em média, os preços da habitação já estão com variações homólogas negativas desde a primavera. Já tinham caído (em termos homólogos) 1,5% no segundo trimestre e aprofundaram o ritmo de descida no terceiro trimestre: 2,1%, segundo o Eurostat.
Há países, como a Alemanha, onde as quedas superam os 10%. Mas os dados apontam apenas para uma pequena desaceleração em Portugal, um país que se podia prever ser mais penalizado pelo aumento rápido das taxas de juro porque quase 90% dos créditos à habitação têm taxa variável. O BCE não disponibiliza dados sobre a média europeia mas estima-se que seja muito mais baixa, já que em países como Alemanha, Áustria e Itália mais de 50% dos créditos têm taxa fixa.
A “resiliência” dos preços das casas em Portugal, expressão muito usada por quem vive do setor, mostra que “o imobiliário funciona como reserva de valor, porque, salvo raros períodos na História, o seu preço sobe sempre, tornando-o num ativo seguro”, diz Vera Gouveia Barros. “Um dos períodos que contrariou esta tendência foi o da crise das dívidas soberanas, em que a subida das taxas de juro, combinada com o desemprego, deixou muitas famílias sem conseguir pagar ao banco, obrigando-as a vender as suas casas”, acrescenta a economista. “Felizmente, apesar das dificuldades que algumas estão a sentir, esse cenário não é o de hoje“, remata.
Queda dos preços? Dados apontam para nova aceleração
Porque é que as casas caem noutros países mas não em Portugal? “A grande diferença em Portugal é a falta estrutural de oferta nos diferentes setores do mercado imobiliário que, aliada à qualidade dos nossos ativos (principalmente do ponto de vista operacional), fez em 2023 com que houvesse uma resiliência de preços”, diz Patrícia Barão, responsável pela divisão de mercado habitacional da JLL.
Esta consultora imobiliária estimou que a oferta habitacional em Portugal praticamente estagnou na última década, com um aumento de apenas 1% no número de casas disponíveis no país – eram 5,88 milhões em 2011 e em 2021 o número aumentou para 5,96 milhões. Esta falta de oferta é o indicador mais invocado pelas empresas do setor para justificar a razão por que os preços das casas continuam a subir a forte ritmo em Portugal – embora o INE tenha calculado no início do ano passado que haja 723 mil “casas vazias” no país.
Mesmo fazendo fé nos números do INE (que incluem casas que estão no mercado, disponíveis para serem arrendadas e/ou vendidas), as empresas do setor contactadas pelo Observador garantem que existe um “desequilíbrio” entre oferta e procura que não está a diluir-se, pelo menos nas cidades e nos locais perto dos centros urbanos, que continuam a beneficiar do aumento dos preços nos centros e de outros fatores relacionados com a mudança de hábitos propiciada pela pandemia de Covid-19.
“A escassez de oferta e construção nova, especialmente nas grandes cidades, a inflação e a elevada carga fiscal foram os principais impulsionadores do preço das habitações em Portugal aos dias de hoje”, concorda João Cília, presidente da Porta da Frente – Christie’s.
Estes argumentos são válidos há vários anos e não deixaram de o ser nos trimestres mais recentes. Tanto que, embora os dados do INE apontem para uma desaceleração, o setor acredita que o mercado estará novamente a ganhar ímpeto. E isso vê-se não só nos preços mas, sobretudo, nos dados sobre o número de transações, que caiu quase 19% no terceiro trimestre.
“É verdade que os dados do INE em termos homólogos apontam para uma redução quer do número quer do volume de transações em linha com o que aconteceu no segundo trimestre, mas (em cadeia) menor do que o registado no segundo trimestre”, salienta Patrícia Barão, da JLL, notando que se for feita uma análise em termos trimestrais existe um “abrandamento da contração do mercado” – ou seja, entre o segundo e o terceiro trimestres voltou a aumentar o número de casas transacionadas.
A confirmar-se a reaceleração, serão boas notícias para as empresas do setor mas também para alguns portugueses, garantem as imobiliárias. “Quem já tem um imóvel vê o seu imóvel valorizar na mesma medida do imóvel que pretende comprar agora”, diz João Cília, da Porta da Frente – Christie’s.
“Na verdade, a maioria dos portugueses concentra a maioria da sua poupança na sua casa”, acrescenta o especialista – segundo os últimos dados do Banco Central Europeu (BCE), mais de dois terços da riqueza líquida das famílias está concentrada em ativos imobiliários, sobretudo as casas próprias onde as pessoas vivem. Quem está a pagar casa ao banco, “com a subida dos preços viu essa poupança crescer substancialmente e, assim, reduzir o LTV (valor do crédito a dividir pelo valor do imóvel) do seu empréstimo à habitação”.
Na opinião de João Cília, que lidera uma consultora mais focada no segmento premium, “a subida de preço prejudica essencialmente a camada mais jovem da população que pretende comprar o seu primeiro imóvel e não viu os seus rendimentos crescer nos últimos anos”.
A economista Vera Gouveia Barros acrescenta que “atualmente os montantes de crédito à habitação andam na casa dos 50% do montante das transações”, o que “é uma mudança clara face ao período pré-troika, em que essa percentagem andava acima dos 75%”. “Houve alterações nas regras de concessão de crédito, que o tornaram mais restritivo – e bem, porque percebemos qual era o péssimo resultado do laxismo”, diz a economista, reconhecendo que, “infelizmente, esse aperto significa problemas de acessibilidade à habitação”.
“Quando se fala na ‘crise da habitação’, põe-se um excessivo foco na evolução dos preços, mas julgo que as novas regras de acesso ao crédito são mais relevantes“, remata Vera Gouveia Barros. A partir de 2018, o Banco de Portugal limitou o crédito à habitação a 90% do valor da casa, o que obriga quem quer comprar casa a ter uma entrada inicial mínima de 10%, à qual tem de acrescentar os impostos (sobretudo o IMT) e os outros custos com escritura. Esta mudança limitou o acesso a crédito bancário mas, como salienta a economista, evitou a formação de riscos excessivos num momento de juros baixos e subida dos preços.
Mais recentemente, nos últimos meses de 2023, o Banco de Portugal deu um impulso em sentido contrário quando reduziu para metade o chamado “teste de stress” que é aplicado aos clientes que querem pedir crédito à habitação. “Há vários anos que havia a obrigação de simular uma subida das taxas de juro em 3%, algo lógico quando o mercado estava com taxas de juro negativas, mas extremamente limitador” quando as taxas de juro sobem – como subiram – para níveis perto de 4%, salienta Ricardo Sousa, da Century 21.
“Juros baixos são maus para os jovens que não têm pais ricos”
Casas demoram um pouco mais a ser vendidas (mas nem sempre)
A atividade no mercado imobiliário em 2023 “compara com um ano de 2022 extraordinário, em número de vendas”, acautela Ricardo Sousa, da Century21 Portugal. “No ano passado deverão ter sido concretizadas mais de 130.000 vendas o que é um número bastante positivo, tendo em consideração a crise de acesso habitação que vivemos”, considera o empresário. Em 2022, segundo os dados do INE, tinha havido 167.900 compras e vendas de casa em Portugal.
Mas se o INE tem dados sobre o número de transações (e os valores envolvidos), só quem anda no terreno consegue dizer se o arrefecimento do mercado está a fazer com que as casas fiquem mais tempo à espera de ser vendidas – e se há maior diferença entre o preço inicialmente anunciado e o valor a que as vendas efetivamente se realizam. Ricardo Sousa, da Century21, admite que “o tempo médio de venda dos imóveis usados tem vindo a aumentar“.
Em 2023, nesta imobiliária, decorreram em média 119 dias entre o anúncio e a venda – isto compara com os 98 dias de 2022. “O mesmo sucede com a diferença entre o preço inicial solicitado pelas famílias quando iniciam o processo de venda das suas casas, que passou de 4,64%, em 2022, para 5,88%, em 2023“, acrescenta Ricardo Sousa.
Cenário distinto relata a Era, que garante que houve uma redução de 11% do tempo médio de venda em 2023 – embora no seu caso isso signifique 226 dias. Outra concorrente, a Remax, porém, garante que aumentos do tempo médio de venda só estão a verificar-se nas zonas com menos procura. “Temos assistido a uma redução do tempo médio de venda em várias zonas onde a oferta se tornou ainda mais escassa, e, pelo contrário, uma dilatação desse tempo em várias outras zonas”, diz Beatriz Rubio, presidente da Remax.
“Ou seja, registámos tendências diferentes, o que na realidade também não surpreende, pois refletem as diferentes realidades existentes em cada região”, acrescenta. A Remax não faz alusão a como têm evoluído os “descontos”, mas recentemente comunicou uma campanha onde foram colocados mais de cinco mil casas com “baixa de preço”.
“Teremos garantidamente um maior dinamismo” em 2024
As empresas do setor ainda estão a fechar os resultados do ano de 2023, enquanto se aguarda, também, que o INE e outros organismos divulguem números oficiais sobre o mercado em 2023. Mas as empresas garantem que, mesmo com a difícil comparação com 2022, o ano de 2023 acabou por não ser tão negativo quanto se receou. Esta sexta-feira, a Era divulgou os resultados anuais e confirmou o “arrefecimento” do mercado em 2023 – porém, o segundo semestre foi muito mais positivo do que o primeiro.
“Em traços gerais, 2023 foi um ano essencialmente marcado pelo impacto da inflação e pelo contínuo aumento das taxas de juro”, afirmou Rui Torgal, presidente da Era. “Esta realidade levou alguns clientes a adiarem a decisão de compra de casa devido à maior dificuldade no acesso ao crédito à habitação”, nota, acrescentando que, “apesar de antecipar alguma prudência em 2024, sobretudo no primeiro semestre, julgo que os últimos seis meses do ano, com a redução das taxas Euribor, poderão trazer um dinamismo à operação semelhante ao de um passado recente“.
Portugal entre os destinos mais procurados para investimento imobiliário em 2024
A Remax também tem perspetivas “positivas” para o mercado imobiliário em 2024, “pois as descidas previstas quer da inflação, quer das taxas de juro, terão um impacto positivo na bolsa dos portugueses e se a esse impacto juntarmos a estabilização dos preços (e vários recuos) que temos vindo a assistir nos últimos meses, teremos garantidamente um maior dinamismo no mercado“.
Ainda assim, Ricardo Sousa, da Century 21, acredita que “a correção do número de transações ainda se deverá sentir no primeiro trimestre [de 2024], consequência da instabilidade política portuguesa”, com eleições legislativas marcadas para 10 de março. Depois disso, “a tendência deve estabilizar e inverter-se ao longo do ano, sustentada pela descida das Euribor que verificamos desde novembro de 2023 e a perspetiva de descida das taxas de juro por parte do BCE”.
“Quanto aos preços, os nossos indicadores levam-nos a projetar uma estabilização, mas não são expectáveis descidas“, conclui Ricardo Sousa, acautelando que “é fundamental estar muito atento à evolução do mercado de emprego em Portugal e aos fatores geopolíticos internacionais, porque são variáveis que podem rapidamente alterar as tendências do mercado residencial e da economia portuguesa”.
Não residentes estão a comprar menos. Será mesmo assim?
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Segundo o INE, no terceiro trimestre as famílias compraram 29.635 unidades e os compradores com um domicílio fiscal fora do território nacional adquiriram 2.741 alojamentos (8,0% do total), o que representa uma redução homóloga de 0,9%. Porém, a investigadora Vera Gouveia Barros sublinha que “os dados do INE dão-nos as aquisições por parte de não residentes, que é um conceito distinto de estrangeiros”.
“Isto é importante porque permite perceber que um estrangeiro que viva em Portugal, por exemplo, trabalhando remotamente para a Alemanha, quando compra casa é registado como residente. Do mesmo modo, um português emigrado no Reino Unido, que agora decida ter uma casa cá para as suas férias, entra como não residente”.
Olhando para os dados do INE, Vera Gouveia Barros diz que “eles mostram uma redução no número absoluto de transações por parte de não residentes, mas o total de transacções também se reduziu”. “Portanto, se calhar, interessa mais a proporção – e o que se observa é que o peso dos compradores não residentes até aumentou, graças aos residentes fora da UE”, acrescenta.
João Cília, da Porta da Frente – Christie’s complementa que “sem ser ainda claro o impacto no mercado das medidas do pacote Mais Habitação, em especial, o fim do estatuto de Residente Não Habitual (RNH), e com incerteza política até março, deveremos continuar a assistir a uma maior indecisão por parte das pessoas e dos investidores, arrastando assim um pouco o tempo médio para fecho dos negócios”.
Porém, mesmo que a procura por parte dos cidadãos estrangeiros sofra algum impacto do fim do regime do RNH, João Cília assinala que “Portugal mantém alguns dos seus fatores de atratividade para o cliente internacional, como a qualidade de vida, o clima, a facilidade de acesso, a segurança, a construção e infraestruturas e a saúde”. Assim, “os fatores estruturais que influenciam o preço irão manter-se, tanto do lado da oferta, com os custos de construção, as dificuldades de licenciamento, a elevada carga fiscal”, o que não deixa antever quaisquer descidas para os preços.
Benefícios fiscais para não residentes. Governo fecha porta, mas deixa janela aberta