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Kurt Cobain 1991
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Kurt Cobain não sabia fingir

O músico e líder dos Nirvana morreu a 5 de abril de 1994. Bruno Vieira Amaral regressa ao passado, há 30 anos, aos dias de um ídolo que não tinha como refugiar-se do dilema que era ele próprio.

Segunda-feira, sete de março de 1994. Confirmei a data. Eu regressava do Alentejo, após umas férias estranhas e fora de época em que passei pelas casas do meu bisavô e dos meus tios. Depois de apanhar a camioneta em Montalvão, entrei num café em Nisa perto do terminal (ou do lugar de onde partia o expresso para Lisboa). Enquanto esperava, li o jornal. Na minha memória é o Correio da Manhã. Talvez não fosse. Uma breve informava que Kurt Cobain, vocalista dos Nirvana, fora hospitalizado em Roma por causa de um problema de saúde. Seria uma overdose? Uma tentativa de suicídio?

Não me lembro se o jornal esclarecia o mistério, mas nenhuma das duas seria estranha. Ninguém prognosticava uma longa vida a Cobain. E aquele incidente foi menos um prenúncio do que aconteceria um mês depois do que apenas outro episódio turbulento numa vida turbulenta e que entrou em modo autodestrutivo quando os Nirvana, após o lançamento do álbum Nevermind, em 1991, transpuseram a fronteira da música alternativa e Cobain foi elevado a porta-voz de uma geração.

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A gama complexa de sentimentos era apenas uma gama básica de produtos de que Cobain era o rosto comercial perfeito e o veículo ideal para os vender a adolescentes revoltados tratados como mercado

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Se já era difícil gerir os problemas familiares e sentimentais, da depressão crónica, do vício da heroína e da sensação de não se enquadrar em lado nenhum, o sucesso global, a fama e a responsabilidade não solicitada de representar a angústia, o inconformismo e a neura da juventude foram mais do que o que Cobain podia aguentar. Porque, com o sucesso, também veio a pior acusação que se podia fazer a quem crescera à margem do sistema e que acreditava que esse sistema era a fonte de todos os males, a acusação de se ter vendido.

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Essa dificuldade psicológica em lidar com o novo estatuto – o de superestrela do rock num mundo em que para se ser uma superestrela era necessário trair os ideais – levou-o a envergar uma T-shirt que rezava “Corporate Magazines Still Suck” quando, a 16 de abril de 1992, os Nirvana foram capa da Rolling Stone. No ano passado, ao recordar a sua reação ao ver a capa quando era um adolescente de 14 anos, o jornalista Dan Brooks, do jornal britânico The Guardian, lembrava-se de se ter questionado: “mas se a Rolling Stone é uma merda, porque é que, ainda assim, ele está na capa?”

Camisas de flanela, moches e um Kurt Cobain “ausente”. Como eles viram os Nirvana em Cascais, há 30 anos

Havia nas canções dos Nirvana angústia, dor, sofrimento, pulsão de violência, um mal-estar, um enjoo, um nó no estômago que era, com toda a certeza, o que ia na cabeça e no espírito de Cobain e o que, em diferentes graus e intensidade, ia na cabeça e no espírito dos milhões de adolescentes que o idolatravam e ouviam nos gritos roucos do músico a voz interior que lhes repetia o título da canção I Hate Myself and I Want to Die (“odeio-me e quero morrer”). Mas, para a América corporativa, de companhias discográficas como a Geffen e de revistas como a Rolling Stone, essa gama complexa de sentimentos era apenas uma gama básica de produtos de que Cobain era o rosto comercial perfeito e o veículo ideal para os vender a adolescentes revoltados tratados como mais um segmento de mercado.

Pouco lhes interessava se a raiva e a angústia eram genuínas ou uma pose artificial – aliás, quanto mais autênticas parecessem, mais fáceis eram de vender. O que interessava é que havia mercado e agora também havia um produto. E se Cobain já não conseguia lidar com a responsabilidade de ser o porta-voz desses adolescentes, o espelho que refletia os seus problemas, pior era o sentimento de os ter traído. No artigo sobre o conceito de “selling out” (ou “de se vender”), Brooks destacava a frase-chave da entrevista de Cobain à Rolling Stone: “Não culpo um miúdo punk de 17 anos por dizer que sou um vendido.” Não culpava os miúdos. Culpava-se a ele próprio.

Para Cobain, como para Holden Caulfield, o narrador adolescente de "The Catcher in the Rye", de J. D. Salinger, o mundo dos adultos era o domínio da hipocrisia e todos os adultos eram hipócritas, “phony”. O que fazer, então, quando esse mundo que detestamos e juramos combater nos oferece todas as riquezas, a fama e o reconhecimento?

A postura artística de Cobain era, na sua essência, punk quando o punk enquanto género musical já definhava. O mais próximo seria o rock alternativo de bandas como os Pixies ou os Sonic Youth, uma terceira via marginal entre o heavy metal e as bandas que engoliam o mainstream ou eram engolidas por ele. Mas no peito daquele punk também batia um coração melódico, impulsionado por uma infância a ouvir Beatles e por uma adolescência a ouvir Queen na carrinha de apoio de uma das suas primeiras bandas, até acabar com a bateria.

Essa improvável combinação entre puro espírito punk e um ouvido melódico apurado, entre um estado de rebeldia à beira da explosão e uma candura quase infantil, entre o áspero e o suave, a distorção e a nitidez, a amargura e a vulnerabilidade ou o “loud, quiet, loud” dos Pixies, explicam quer o sucesso musical transversal, que desagrada sempre aos puristas e aos fãs da primeira hora, os mais rápidos a acusar os antigos ídolos de se terem vendido, quer a ascensão prematura de Cobain ao panteão dos mártires em vida, aqueles espíritos rebeldes consumidos por um núcleo incandescente de dor. O facto de a dor ser autêntica só tornava mais insuportáveis as acusações de se ter vendido e de hipocrisia.

Para Cobain, como para Holden Caulfield, o narrador adolescente de The Catcher in the Rye, de J. D. Salinger, o mundo dos adultos era o domínio da hipocrisia e todos os adultos eram hipócritas, “phony”. O que fazer, então, quando esse mundo que detestamos e juramos combater nos oferece todas as riquezas, a fama e o reconhecimento? Por não se confundir com a personagem que criou, Salinger pôde refugiar-se e tornar-se o eremita mais célebre da literatura norte-americana. Gozou dos benefícios da celebridade sem ter de pagar a conta. Cobain não tinha um alter-ego para ser queimado em praça pública e na imaginação dos leitores. Com mais ou menos máscaras, mais ou menos T-shirts irónicas, teve de se consumir à vista de toda a gente, gente que o idolatrava e que o acusava de ser um vendido, gente que pressentia que a dor era verdadeira mas que também desconfiava que todo o artista é um fingidor, gente que antecipava o seu fim mas que reagiu com choque à notícia da morte.

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Kurt Donald Cobain não sabia fingir, não era um hipócrita, não era “phony”. Fingia tão mal que a dor que sentia parecia fingida. A sua morte surpreendeu toda a gente e não surprendeu ninguém

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A 8 de abril de 1994, um mês e um dia depois de o Correio da Manhã (vamos assumir que era o Correio da Manhã) ter noticiado o internamento de Cobain em Roma, um eletricista que tinha ido à casa do músico em Seattle para instalar um sistema de segurança encontrou o corpo sem vida do líder dos Nirvana na estufa com um bilhete de despedida ao lado, três dias após se ter suicidado com um tiro de caçadeira.

A carta era dirigida ao amigo imaginário da infância, Boddah. Nela, provavelmente sob o efeito de drogas que os exames toxicológicos vieram a comprovar, escrevia que tinha perdido o entusiasmo não só em ouvir música como em compor. Confessava a admiração e inveja por alguém como Freddie Mercury que se deleitava com a adoração das multidões nos concertos. Ele não sentia o mesmo. Perdera a capacidade de sentir: “A questão é que não vos posso enganar, a nenhum de vós. Basicamente, não é justo nem para mim nem para vocês. O pior crime que consigo imaginar seria enganar as pessoas fingindo e a fazer de conta que me estou a divertir a 100%”.

Kurt Donald Cobain não sabia fingir, não era um hipócrita, não era “phony”. Fingia tão mal que a dor que sentia parecia fingida. Por isso, a notícia da sua morte, a 5 de abril de 1994, surpreendeu toda a gente e não surpreendeu ninguém. Nunca enganou ninguém e conseguiu enganar todos. No dia em que anunciaram a sua morte, os discos dos Nirvana esgotaram em praticamente todo o lado, comprados por fãs como aquele de In Bloom que gostava das canções giras, que acompanhava a letra, mas que não percebia o sentido. Talvez porque o sentido estava guardado para o fim.

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