Um homem avança depressa na noite escura. A sua sombra segue-o, como uma segunda pessoa que corre atrás, mas nunca chega a alcançar a primeira. A única luz que ilumina o parque de estacionamento, localizado nas traseiras do quartel dos bombeiros voluntários de Vialonga, é alaranjada. Tudo o resto está encoberto pela escuridão. Um casal está no meio dos carros estacionados à conversa, alheio a tudo.
Fernando Fonseca, 66 anos, dirige-se para a garagem e oficina dos veículos do quartel de bombeiros. Dois barracões retangulares com cerca de 30 metros de comprimento e sete de profundidade, cobertos por placas de zinco. A pintura da fachada principal está deslavada. Parece ter sido feita há muito tempo.
Abre a porta. Carrega num interruptor.
A garagem mostra-se caótica. Tudo parece estar fora de sítio. Peças de carros, tintas, ferramentas ao acaso. “Ele vinha pintar estes carros de vermelho”, diz, ao apontar para um modelo antigo de uma carrinha Peugeot, toda empoeirada e cheia de mossas. Fernando não pára até ver o que procura. Continua a avançar pela garagem até encontrar um jipe Willys, um dos modelos que ficou imortalizado na segunda guerra mundial, que está com o capô aberto.
Pintado num vermelho Marlboro, o jipe tem um aspeto sublime. De catálogo. A pintura já tem 20 anos e foi feita à mão, mas não enferrujou ou lascou. Obra de um profissional perfeccionista. Há três semanas, o veículo foi utilizado numa cerimónia fúnebre.
Fernando afasta alguns caixotes de papelão que estavam encostados ao jipe, para o preparar para ser fotografado. “Ainda está um brinquinho”, diz Fernando Fonseca, esfregando os dedos no lóbulo da orelha esquerda. Põe as mãos atrás das costas e fica a olhar, enquanto são tiradas as fotografias. De olhos semicerrados, observa e pensa.
Fernando Azeitona, 59 anos, uma das pessoas que faleceu devido ao surto de Legionella no mês passado, em Vila Franca de Xira, era amigo pessoal de Fernando Fonseca. Um dos dez que morreram. Sete homens e três mulheres, entre os 52 e 89 anos. Mas os números são impessoais.
Camionista nos últimos nove anos, o “Finezas” ou “Fórmula 1”, nomes pelos quais Fernando Azeitona era conhecido nos bombeiros, estava cansado deste trabalho. Acordar todos os dias às três da manhã estava a tornar-se insuportável. Mesmo para alguém que “vivia para trabalhar”. “Já não me sinto com capacidade para andar nisto”, queixou-se Fernando Azeitona, numa das conversas que Fernando Fonseca lembra. E pediu para recuperar o antigo lugar de bate-chapas no quartel que estava vago. O “Fórmula 1” nunca deixou de ser bombeiro. “Estava no quadro de honra” e tinha o estatuto de “bombeiro de 1ª classe”.
Aqueles dois barracões iam ser o seu local de trabalho até à reforma. “Sabia que ele ia arrumar problemas, mas eu queria isso”, diz o vice-presidente do regimento de bombeiros voluntários de Vialonga, lembrando o feitio obsessivo e perfeccionista do bate-chapas. “Aliás, não fazia outra coisa que não fosse isso [perfeita]”, acrescenta.
Era suposto Fernando Azeitona ter regressado ao quartel no início de outubro, mas pediu esse mês para acabar de restaurar a casa dos pais que ia usar para turismo de habitação. Andava todo contente. “Mas não chegou a usar esse contentamento.” O pai de Fernando morreu há três anos e a mãe no ano passado. De alguma forma, ele confiava que a genética estava do seu lado. “Não foi ele que escolheu morrer mais cedo”, diz Fernando Fonseca.
Uma bactéria invisível a olho nu infiltrou-se nos pulmões de Fernando Azeitona, vinda de uma fábrica da região. Atacou-o sem avisar. Nenhuma doença dá sinal de partida. Era suposto Fernando voltar a trabalhar para os bombeiros no dia 10 de novembro. Mas isso não chegou a acontecer. “No dia em que era para vir trabalhar, entrou aqui [no quartel] de caixão.”
“Alguém muito fechado”
Há nove anos que Fernando Azeitona tinha saído dos bombeiros para ser camionista. Na mesma época, separou-se da mulher e mãe das suas duas filhas, Sónia e Rita. Tinha um neto chamado Lucas, que frequenta a quarta classe. O que o tornava excecional no mundo profissional foi o mesmo que o levou a afastar da família durante muitos anos: a obsessão com o trabalho. O “Finezas” nunca chegou mesmo a divorciar-se.
Nos últimos anos, era costume todas as noites visitar o quartel e passear o “cãozito” que as filhas lhe tinham oferecido para fazer companhia. Zé Francisco, responsável por explorar o bar do quartel, lembra-se de Fernando como alguém “muito fechado” e que “vivia muito para o trabalho”. À noite, “vinha beber a sua bica”.
Atravessando o bar, chega-se ao escritório de Fernando Fonseca. Foi lá que o encontrámos pela primeira vez. Na semana em que morreu, Fernando Azeitona ligou ao amigo. Ligou-lhe a dizer que tinha ido ao centro de saúde e que estava proibido de sair de casa. “Não voltámos a falar”, diz, a olhar para o chão. À medida que fala do amigo, começa a tremer um pouco. Come o final de algumas palavras.
Fernando tem uma “mágoa” para digerir. Puxa as mangas do polo, como se estivesse prestes a mexer em algo delicado. “Era capaz de o ter safo, se o tivesse ido buscar a casa e levado para o hospital”, diz, apertando as duas mãos com força. Fica atarantado, por não ter pressionado o amigo a ir ao hospital mais cedo. “O desconforto que sinto dele ter abalado e de eu não lhe poder ter deitado a mão.”
Fernando Azeitona morava a menos de 20 metros do quartel de bombeiros, situado na rua do Passal, em Vialonga. Do escritório de Fernando Fonseca dá para ver o primeiro andar que o bombeiro habitava. Agora, as luzes estão apagadas.
Um homem com queda “para a arte”
Um apartamento com divisões exíguas, bom para um homem solteiro. Na entrada, estão empilhadas caixas de papelão. É a viúva de Fernando que está a empacotar tudo. A casa é alugada e é preciso entregar ao senhorio. A sala é muito pequena e o candeeiro de teto já foi retirado. Sobrou um candeeiro de mesa. Numa das paredes, está afixada uma prateleira de cinco andares com miniaturas de veículos dos bombeiros e do INEM. Noutra estão uma série de medalhas emolduradas e uma estante com uma coleção de miniaturas de camiões TIR. Existe um toque de adolescente na decoração da casa.
Sónia Machado, 37 anos, uma das filhas de Fernando recebeu o Observador na casa que o pai habitava. Paulo, o marido, e Lucas, o filho, também estavam presentes. Sentámo-nos nos sofás da sala a conversar. Nas costas da mãe, Lucas desenhava qualquer coisa num papel, enquanto esta contava a história do que sucedera com o pai.
Os primeiros sintomas da Legionella surgiram na segunda-feira, dia três de novembro. Fernando sentia-se “cansado” e “sem forças no corpo”. Sónia e Rita visitavam ou telefonavam quase todos os dias ao pai. “Vai mas é ao médico ver o que é isso”, disse-lhe Sónia ao telefone.
Já há algum tempo que Fernando estava a tomar medicação para deixar de fumar. E tinha conseguido “reduzir bastante”, de acordo com a filha. O pai tinha uma doença crónica nos pulmões, cujo nome nunca soube de cor. “Sei que ele tinha umas bolhinhas nos pulmões”, explica. Adultos com mais de 40 anos e com doenças respiratórias fazem parte do grupo de risco de pessoas que podem ser afetadas pela bactéria da Legionella. “Ajudou a levá-lo à morte”, diz ao falar da doença, como se a morte fosse uma geografia determinada.
Sónia sabia da vontade do pai de deixar de ser camionista e apoiou essa decisão. “Deixa essa vida”, dizia-lhe. E reconhecia que ele tinha um dom para pintura, “para a arte”. “Teve para tirar um curso de pintura por correspondência”, conta. A veia artística parece atravessar toda a família. A mãe de Sónia escreve poemas. E as duas filhas também sempre gostaram de desenhar. Lucas vai pelo mesmo caminho, diz a mãe.
“Filhos
Que bom é tê-los
Melhor será não os ter?
Pois ter filhos e criá-los
Neste mundo faz sofrer
Mas quem não quer?
Enfrentar o desafio
De ter um filho nos braços
Neste mundo triste e frio”
(Excerto de um poema emoldurado na hall de entrada da casa escrito pela mãe de Sónia e Rita.)
Na quinta-feira, dia 27 de novembro, Paulo Machado, marido de Sónia, foi chamado para uma reunião na junta de freguesia de Vialonga. O encontro tinha o propósito de dar informações aos afetados diretamente pelo surto de Legionella. Foi disponibilizado um advogado, mas “só para aconselhamento jurídico”. E foi também dada ajuda em pedir o número de processo ao Ministério Público. Paulo foi informado que se os familiares de Fernando Azeitona não quiserem ter parte ativa no processo e receber a indemnização, não precisam de arcar com despesas. Estas foram as únicas informações que receberam passado quase um mês do início do surto.
“Estava com as veias carregadas. Torcia-se todo”
Na quarta-feira, dia cinco de novembro, Fernando foi ao centro de saúde por iniciativa própria e foi-lhe diagnosticada uma gripe. Receitaram-lhe Aspegic e Ben-u-ron. Sónia estranhou os sintomas “daquela gripe”. “Nunca tinha ouvido falar de diarreia e falta de equilíbrio numa gripe”, diz. No dia seguinte, Fernando estava ainda pior. Mas mesmo assim não queria ir ao hospital. Estava “esverdeado”. A febre continuava a subir. “Tivemos que o arrastar”, diz.
Sónia, Paulo, o marido, mais o filho, Lucas, levaram Fernando para o hospital de Vila Franca de Xira, na noite de quinta-feira, por volta das nove da noite. Lá, “viram que a respiração dele estava muito fraquinha”. Algo estranho para uma gripe. Da sala de triagem, foi posto numa maca e encaminhado para uma sala de observação. Fernando estava cheio de sede. “A sala era enorme e estava revestida a macas”, lembra Sónia.
Depois, assustou-se. Uma “velhota” que estava lá desde as cinco da tarde, ainda não tinha sido atendida. O hospital estava a lidar com uma espécie de surto, mas ainda não se sabia que era Legionella. Quando já eram onze horas da noite, Sónia ficou num impasse. O pai ainda não tinha sido atendido, mas era necessário levar o filho para casa, porque no dia seguinte Lucas tinha aulas. Se o marido levasse o filho para casa ficava sem carro e tinha de dormir no hospital. Sónia viu-se obrigada a dizer: “Paizinho, vou ter que ir embora. O Lucas é pequeno e amanhã tem aulas.”
Fernando não levou a mal. Era compreensível a situação. E os dois iam continuar em contacto pelo telemóvel. “Isto aqui está muito mal. Ainda não fui atendido”, disse o bombeiro à filha, num telefonema por volta da uma da manhã de sexta-feira. Na manhã seguinte, Sónia voltou ao hospital e foi informada que o pai tinha de ser internado. “Estava com as veias carregadas. Torcia-se todo”, diz.
Ao mesmo tempo que Sónia conta o que passou com o pai, Lucas espreita. Tenta apanhar a conversa. Faz o desenho mais para disfarçar do que por interesse. Parece querer dizer algo, mas tem medo que os pais o censurem.
Sónia deixou o pai no hospital e foi arrumar a casa dele, para quando ele voltasse. Era para o visitar às 18h30 do mesmo dia, mas atrasou-se e já não conseguiu chegar ao hospital a tempo. Devido ao número de pessoas que estava a dar entrada, o tempo de todas as visitas de familiares tinha sido reduzido a trinta minutos.
Lucas levanta-se e vai mexer na carteira da mãe. Tira três fotografias de lá e poem-nas no colo. São fotografias do avô. Ele quer mostrar quem era o avô. “Gostava de fazer castelos de areia na praia com ele”, diz. Depois, vai buscar a boina dos escoteiros do avô e coloca-a na cabeça. “Ele dedicava cada vez mais tempo ao neto”, diz Paulo Machado. “Estava a guardar tudo para agora”, acrescenta.
Durante grande parte dos seus 59 anos de vida, Fernando Azeitona viveu muito para o trabalho. “Às vezes, dedica-se a vida a coisas que não são realmente importantes…”, diz Sónia.
Todos os telejornais da noite daquela sexta-feira, dia sete de novembro, já falavam do surto de Legionella em Vila Franca de Xira, mas por alguma razão que não sabe precisar Sónia não teve conhecimento dessa notícia até à manhã do dia seguinte. No sábado, recebeu um telefonema para ir ao hospital, logo de manhã. “Nem me lembro do nome ou cara do médico”, diz Sónia.
“O seu pai faleceu”, disse o médico.
“Mas como? O meu pai estava vivo ontem!”, respondeu. “Doutor, não me diga que é por causa da bactéria”, acrescentou.
“Sim. E se isso se comprovar, vamos ter aqui uma situação muito grave.” Ao todo, 336 pessoas foram infetadas pela bactéria da Legionella. Dez morreram e ainda existem muitas perguntas sem resposta. Fernando Azeitona morreu às 23h45 de sexta-feira.
Lucas mostra o desenho que esteve a fazer durante a conversa. É um helicóptero do INEM, muito parecido com uma das miniaturas do avô. “Aprendi a desenhar a olhar para ali”, diz, a apontar para a prateleira onde está exposta a coleção do avô. Quando estamos prestes a sair do apartamento, Lucas pede algo à mãe. “Posso levar alguns carros do avô?”, pergunta.
Sónia diz que sim, mas só “três ou quatro”. Lucas apanha os três veículos do INEM e um jipe dos bombeiros. Um jipe igual ao que o avô pintou há 20 anos. Um jipe igual ao que o levou para o cemitério.