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Joe Biden participou numa conferência na passada segunda-feira, onde lhe foi colocada a incontornável questão: o que pensa sobre a ofensiva israelita em território do Líbano, que tinha tido início poucas horas antes? O Presidente norte-americano foi lacónico na resposta. “Estou confortável com a ideia de eles pararem. Devemos ter um cessar-fogo”. Telavive, porém, nem reagiu às palavras do líder dos Estados Unidos. O conhecido analista Ian Bremmer resumiu tudo num simples tweet: colocou as palavras de Biden e acrescentou “Impacto: zero”.
biden asked if he’s comfortable with a ground incursion in lebanon:
“i’m comfortable with them stopping. we should have a ceasefire now.”impact: zero pic.twitter.com/Hx1BeRyo9e
— ian bremmer (@ianbremmer) September 30, 2024
A decisão do governo de Benjamin Netanyahu de avançar para uma ofensiva terrestre no Líbano ilustra bem como o governo norte-americano se sente entre a espada e a parede. Segundo a CNN, Washington não foi sequer informada previamente do assassinato do líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah. O desconforto dentro da Casa Branca foi notório. Mas, pouco depois, perante a chuva de mísseis disparados do Irão contra Israel, o executivo de Joe Biden voltou a assegurar em público o apoio a Telavive.
Tudo se complica se tivermos em conta que Biden está de saída, com as eleições presidenciais a um mês de distância. Daí que muitos especialistas especulem que esta invasão do Líbano por parte de Israel pode ser “a surpresa de outubro” que mina a votação nos EUA, em referência a uma velha expressão usada no país sobre acontecimentos imprevisíveis à beira da eleição.
Outros são ainda mais cínicos e até levantam a possibilidade de que o primeiro-ministro israelita terá decidido avançar para o Líbano agora precisamente por isso: “Há uma perceção quase universal de que Netanyahu está desejoso de uma vitória de Trump, assumindo que com ele poderá fazer o que entender”, resumiu Michael Koplow, analista do Fórum de Políticas de Israel, à BBC. Outros consideram que a motivação de Bibi é interna, motivada pela pressão dos partidos de extrema-direita que mantêm a sua coligação governamental de pé.
De uma ou outra forma, contudo, uma coisa é clara: os Estados Unidos têm cada vez menos influência sobre o aliado Israel. Mesmo com as ações do país na região a poderem ter um efeito dominó na própria política norte-americana.
Morte de Nasrallah foi “frustrante” para a Casa Branca, que não foi avisada
A situação do Líbano deixou a nu a descoordenação entre Washington e Telavive. Na semana passada, os EUA mostravam-se entusiasmados com o decorrer das negociações para um cessar-fogo, não apenas em Gaza, mas também no Líbano. A França envolveu-se no processo e os dois países diziam-se otimistas de que seria possível um cessar-fogo de 21 dias entre Israel e o Hezbollah.
As discussões envolviam o ministro israelita dos Assuntos Estratégicos, Ron Dermer, que, segundo o Canal 12 do país, teria chegado a um acordo de princípio. “Obviamente o Presidente dos Estados Unidos não lideraria um processo como este sem o acordo do primeiro-ministro Netanyahu”, confirmava uma fonte que estava envolvida nas negociações ao mesmo canal.
Mas eis que, em público, Bibi ia negando que o cessar-fogo estivesse assim tão próximo. Na passada quinta-feira, o porta-voz do Conselho de Segurança norte-americano, John Kirby, chegou a mostrar-se irritado em público: “O que motivou os comentários do primeiro-ministro, só ele pode dizer”, afirmou aos jornalistas. A morte de Nasrallah também irritou Washington. “Ele era um vilão, mas é frustrante que os israelitas façam isto sem nos consultar e depois nos peçam ajuda para resolver quando é preciso dissuadir o Irão”, desabafou um responsável do governo americano ao Axios.
Na segunda-feira, noticiou o New York Times, os responsáveis norte-americanos estavam convictos de que tinham conseguido convencer o governo de Telavive a não invadir o Líbano. Horas depois, era exatamente isso que as Forças de Defesa de Israel faziam.
“Idiota”. Tensão entre Biden e Netanyahu já se agudiza há meses
Foi o ponto mais recente de desagrado na relação pessoal de Joe Biden e Benjamin Netanyahu, que se tem vindo a deteriorar ao longo dos últimos meses. Depois de décadas de boa convivência, a guerra em Gaza dos últimos meses fez amargar a relação entre os dois líderes. Já em fevereiro, fontes da Casa Branca relatavam que o Presidente norte-americano se referia agora a Bibi com termos como “aquele tipo” e “idiota”.
Do lado de Israel, o desagrado com Biden também se acentuava, com os partidos mais à direita da coligação a pressionarem Netanyahu. Em março, Itamar Ben-Gvir, ministro da Segurança Nacional e uma das figuras mais radicais do executivo israelita, dizia numa entrevista que “o Presidente Biden prefere a linha de Rashida Tlaib [congressista democrata pró-palestiniana] e Sinwar [líder militar do Hamas em Gaza] à linha de Benjamin Netanyahi e Ben-Gvir”.
Em agosto, um membro da Casa Branca falava ao jornal Haaretz sobre o ponto baixo da relação entre os dois líderes, durante as negociações para um cessar-fogo em Gaza. “Biden percebeu que Netanyahu lhe está a mentir sobre os reféns”, disse mesmo a fonte. “Ele ainda não o diz em público, mas na última reunião entre os dois disse-lhe ‘Páre de me dizer tretas’”.
Agora em setembro, com a negociação para um cessar-fogo no Líbano em cima da mesa, o enviado de Washington a Israel, Amos Hochstein, avisava Telavive que uma invasão ao país vizinho poderia levar a uma escalada sem precedentes da guerra. Mas, como nota o especialista em Médio oriente Greg Priddy num artigo recente na National Interest, o governo israelita sabe bem que o descontentamento americano tem tido pouco reflexo no terreno. “A única exceção foi uma pausa na entrega de bombas aéreas, com Biden a impor uma ‘linha vermelha’ em março caso Israel avançasse para a ofensiva em Rafah”, escreveu.
“Mas permitiu-se que essa linha se desvanecesse e fosse ofuscada burocraticamente assim que a ofensiva começou. A conclusão é que Netanyahu tem todas as razões para acreditar que os EUA não vão impor consequências significativas se ele ignorar as preocupações norte-americanas”, acrescentou o analista.
As “linhas vermelhas” de Biden e a preferência de Bibi por Trump
A dúvida neste momento é o que vai agora Israel fazer em resposta ao ataque iraniano desta semana, em apoio ao Hezbollah. Biden traçou uma nova “linha vermelha”: nada de ataques a instalações nucleares do país. Mas muitos acreditam que pode acontecer o mesmo que se passou com Rafah. “Se o passado for preâmbulo, por esta altura na semana que vem Israel já terá bombardeado Natanz [local principal do programa nuclear iraniano] e os conselheiros de Biden estarão a dizer aos jornais que ele sempre apoiou o ataque”, escreveu no X Gregg Carlstrom, correspondente do Economist no Médio Oriente.
If past is prologue, by this time next week Israel will have bombed Natanz and Biden's aides will be leaking that he supported it all along https://t.co/yT0ZQR2IM7
— Gregg Carlstrom (@glcarlstrom) October 2, 2024
Em Israel, muitos olham para o momento atual como uma oportunidade para enfrentar o arqui-inimigo Irão e “reformular” a arquitetura da região. “Israel tem a maior oportunidade dos últimos 50 anos para mudar o rosto do Médio Oriente”, resumiu o antigo primeiro-ministro Naftali Bennett. E em Washington há responsáveis que até começam a simpatizar com a ideia, como resumiu ao The Guardian Ali Vaez, especialista do Crisis Group em política iraniana: “Os sucessos impressionantes de Israel no campo militar e das secretas nas últimas semanas seduziram alguns membros da administração Biden, que até aqui aconselhavam cautela e agora consideram opções como atacar a jugular e enfraquecer o Irão.”
Mas não são a maioria: na verdade, de acordo com um artigo recente do Politico, a Casa Branca está partida nesta questão, com alguns a quererem apoiar a jogada de Telavive e outros a manterem-se firmes na ideia de que esta invasão pode levar a um conflito de larga escala no Médio Oriente para o qual os EUA não devem ser arrastados.
Certo é que tudo se complica se tivermos em conta que daqui a um mês Joe Biden começa a preparar a sua saída. Bibi tem noção disso e aproveitou a sua visita recente a Washington, onde discursou no Congresso, para se encontrar com os dois candidatos: Kamala Harris e Donald Trump.
E apesar de Harris formalmente garantir que segue a linha de Biden no que toca a Israel, a maioria dos especialistas não tem dúvidas de que Netanyahu prefereria ter de lidar com um Trump Presidente, que lhe imporia menos restrições e partilha da visão de maior pressão sob o Irão. “Ele quer que Trump vença e quer garantir que está em bons termos com ele antes da eleição”, resumiu à BBC Tal Shalev, correspondente diplomática do site israelita Walla News.
Mais do que essa vontade, a invasão a território libanês e a subsequente resposta do Irão pode mesmo afetar a própria campanha eleitoral, se tiver reflexos em questões económicas como o preço dos combustíveis, por exemplo, ou se ajudar a moldar perceções dos eleitores face às capacidades de Harris e Trump no campo da política externa.
Quem sai mais a perder perante esse cenário, aposta o veterano Gideon Rachman, é Kamala Harris: “Donald Trump gosta de afirmar que durante a sua presidência o mundo estava em paz e que a ‘fraqueza’ da administração Biden levou a guerras na Europa e no Médio Oriente. A escalada mais recente encaixa de forma perfeita nesta narrativa”, escreveu o jornalista na sua coluna do Financial Times. “O Israel e o Irão trouxeram a ‘surpresa de outubro’ desta eleição e o beneficiário pode vir a ser Trump.”