Após a publicação de Lisboa Nazi, sobre os locais da capital portuguesa onde se fazia a propagada alemã durante o período da Segunda Guerra Mundial, Sérgio Luís de Carvalho, autor e professor de História, foi desafiado por Marcelo Teixeira, da editora Parsifal, a escrever um livro sobre a presença judaica na cidade. O resultado dessa sugestão, Lisboa Judaica, é uma viagem por um legado “que se mantém vivo” e que tem as suas origens num tempo anterior à própria portugalidade. Isto porque, além de ser uma das mais marcantes que Lisboa recebeu, a herança judaica é uma das mais antigas — o testemunho mais antigo encontrado em território português data do século IV, mas é provável que os judeus vivessem na Península Ibérica antes disso.
Em Lisboa, a presença judaica está comprovada desde a Idade Média. Durante este período, chegaram a existir quatro judiarias naquela que era ao tempo a maior cidade do reino, mas não em simultâneo. A maior, a Judiaria Grande ou Velha, ocupava vários quarteirões do que é hoje a Baixa. A sua dimensão e importância levou a que fosse alvo de várias tentativas de ataques ou ataques efetivos durante a medievalidade, um período de segregação mas de relativa tranquilidade para os judeus de Lisboa quando comparado com o que sucedeu nos séculos seguintes. O mais grave atentado contra a comunidade judaica da cidade, numa altura em que já não existiam oficialmente judeus em Portugal mas cristãos-novos, aconteceu no século XVI. O grande massacre de 1506 é um dos episódios mais negros da história da capital portuguesa.
O caminho percorrido pelos judeus de Lisboa até à inclusão foi longo e duro, mas marcado também por alguns episódios mais luminosos, como a receção dos refugiados durante a Segunda Guerra Mundial. Para o autor de Lisboa Judaica, “a solidariedade e tolerância que a população portuguesa teve para com esses pobres refugiados que vieram para Lisboa durante o período da Segunda Guerra Mundial resgatou, pelo menos em parte, muitas tristezas do passado”. Foi sobre estes episódios e sobre a forma como a comunidade judaica foi sendo tratada em Lisboa e Portugal ao longo dos séculos que conversámos com Sérgio Luís de Carvalho, numa longa entrevista que passou por vários momentos fundamentais da história da capital portuguesa e dos judeus lisboetas.
Começa por dizer no seu livro que o testemunho judaico mais antigo em território português data do século IV. Trata-se de uma placa de mármore encontrada em Silves. Isso significa que, a par com os cristãos e muçulmanos, os judeus são um dos grupos com presença mais antiga em Portugal e na Península Ibérica?
Sim, sem dúvida, [a sua presença é] ainda anterior à presença árabe na Península Ibérica. Genericamente, podemos dizer, de acordo com os nossos conhecimentos atuais, que a presença judaica em Portugal é, no mínimo, paralela à presença romana. Como sabemos, havia já uma presença judaica muito forte no Império Romano. Os judeus estavam aqui com os romanos e depois cá ficaram. Estiveram sempre cá desde o século I ou II. É possível que houvesse uma presença anterior a essa placa de Silves [em território português]. É plausível. Portanto, podemos dizer que são o grupo étnico-religioso que está há mais tempo na Península Ibérica e no território que depois foi Portugal. Já os muçulmanos [estão cá], pelo menos, desde o princípio do século VIII.
No século V, o rei visigótico Eurico impôs aquelas que serão as primeiras normas segregatórias contra judeus em território ibérico. A comunidade já teria um tamanho substancial nessa altura?
Pensa-se que sim. É impossível quantificar. Vamos lá ver, é uma questão de bom senso: se a lei diz que se deve fazer algo ou que não se deve fazer algo, é porque a realidade no terreno determina que haja uma lei nesse sentido. Se bem que no caso das leis segregacionistas, estas não eram emanadas das autoridades no terreno, neste caso dos monarcas visigóticos, mas de Roma. Mas obviamente que havia uma comunidade judaica entre nós, uma comunidade que sofreu os interditos durante a monarquia visigótica, mas não com a presença árabe. A presença árabe foi, nesse sentido, mais tolerante do que a visigótica e a cristã. Digo curiosamente por um motivo muito simples — porque hoje associamos aos muçulmanos, com alguma injustiça, uma certa intolerância e um certo fundamentalismo. Todavia, na Idade Média, a civilização árabe era brilhante, em muitos aspetos mais desenvolvida do que a cristã e genericamente mais tolerante. Estou a simplificar, porque isto tem outras minudências.
Como eram as políticas medievais relativamente aos judeus em Portugal? Havia diferenças em relação ao resto da Península Ibérica?
A realidade fora de Portugal era diferente. Havia o reino de Leão, de Castela, depois o de Navarra, de Aragão, e as políticas variavam consoante o contexto. No caso português, o panorama era mais ou menos este: as leis determinavam que quando numa localidade houvesse um número determinado de judeus ou de muçulmanos, estes tinham de estar em bairros próprios, em bairros segregados. No caso dos judeus, eram as judiarias, claro, e no caso dos muçulmanos, as mourarias. Ainda existe em Lisboa um bairro, aliás hoje muito in, que é o bairro da Mouraria, que vem precisamente desses tempos. Isso fazia com que em Portugal, e fora de Portugal, nos outros reinos ibéricos, houvesse judiarias, que eram bairros próprios para judeus. De acordo com as leis, nesses bairros só podiam morar judeus, sendo que nenhum judeu podia morar fora deles. Era a norma para os judeus e também para os mouros, sendo que as mourarias existiam sobretudo no centro-sul de Portugal. Tinha a ver com o processo de Reconquista. As judiarias funcionavam numa espécie de autogestão regulada pelo rei, vamos chamar-lhe assim. Tinham os seus próprios funcionários, a sua sinagoga e as suas instituições — bibliotecas, escolas talmúdicas, banhos, hospitais — e os seus próprios funcionários. Esses funcionários, sobretudo os altos funcionários, eram confirmados pelo monarca depois da eleição nas judiarias. No caso de Lisboa, conhecemos quatro judiarias para a Idade Média.
Podem ter existido outras?
Não é impossível. Todavia, conhecemos apenas estas quatro. Diria que com os conhecimentos atuais não será muito fácil que alguma judiaria tenha escapado aos historiadores em que assentei o meu trabalho, a não ser que fosse uma muito pequenina. Das quatro judiarias, apenas uma resta, que é a judiaria de Alfama. Ainda lá está, o Beco da Judiaria, etc.. Era uma judiaria pequenita, não era de todo a maior. Deve dizer-se que as quatro judiarias nunca existiram muito em simultâneo. Sabemos que uma delas existiu praticamente ao longo da Idade Média portuguesa até ao édito de expulsão manuelino, de final do século XV, que se chamava a Judiaria Grande, que hoje se situa relativamente próxima do rio.
Na zona da Baixa.
Sim, na zona da Baixa. Depois havia essa judiaria mais pequenina, a de Alfama, e havia duas ainda mais episódicas e mais pequenas. Agora essa judiaria, a Judiaria Velha ou Judiaria Grande, tinha umas dimensões já apreciáveis. Residiriam ali alguns milhares de judeus com todas as suas instituições.
Era como uma cidade dentro de uma outra cidade?
Era um microcosmos dentro daquele grande macrocosmos que era a Lisboa medieval.
Houve um número semelhante de judiarias noutros pontos do país? Ou Lisboa foi a cidade onde houve mais bairros de judeus durante a Idade Média?
Lisboa era seguramente a maior cidade do reino, a grande distância das outras que se lhe podiam comparar. Só para ter uma noção, Lisboa seria, na Idade Média portuguesa e durante muito tempo, a única povoação que podia merecer em termos europeus e de padrões da época a designação de “cidade”. As outras povoações maiorzinhas seriam, vá lá, vilas grandes. Para simplificar, vamos chamar-lhes cidades. Nessa altura, as principais eram Lisboa, com uma grande vantagem, depois Santarém, Évora e Porto. O Porto inicialmente até talvez com um bocadinho menos importância do que Santarém e Évora, mas depois começou a subir e a afirmar-se cada vez mais como a segunda cidade do reino.
E Coimbra? Não tinha importância nessa altura?
Coimbra foi considerada durante muito tempo a terceira cidade do reino popularmente. Nunca chegou a ter o peso do Porto e, mesmo na Idade Média, não tinha o peso de Santarém ou Évora. Claro que Coimbra tinha uma coisa que lustrou — ter recebido a universidade, que foi fundada no século XIII por D. Dinis em Lisboa. Até à sua fixação definitiva no século XVI, a universidade andou entre Lisboa e Coimbra. Mas todas as cidades tinham as suas sinagogas, até terras mais pequenas. Vou-lhe dar um exemplo, só para fazer essa comparação. Moro muito perto de Sintra, no litoral sintrense, e Sintra tinha uma judiaria bem identificada. Na Idade Média, Sintra teria mil habitantes quanto muito. Desses mil habitantes, 20 famílias, ou seja, 80, 85 pessoas, eram judaicas e tinham a sua judiaria. As judiarias, estivessem onde estivessem, deviam obedecer a normas. Uma dessas normas era o encerramento das portas a horas específicas do dia, ao fim da tarde, e a sua abertura de manhã. Uma outra coisa que era muito regulada era o convívio entre cristãos e judeus, tal como cristãos e mouros, sobretudo o convívio entre géneros, principalmente entre judeus e mulheres cristãs. Esses contactos eram muito regulados, mas claro que havia contactos frequentes, para já porque as pessoas viviam portas com portas e depois porque os judeus se especializaram em determinados ofícios e profissões que lhes permitiam subsistir, já que havia outros dos quais estavam mais afastados. O facto de não poderem ter empregados cristãos também os inibia. Portanto, esse convívio existia. Tivemos mesmo ao nível do Estado português medieval altíssimos funcionários régios que eram judeus.
Mas não deixavam de viver segregados.
Quando há pouco comentou que [a Judiaria Grande] era uma cidade dentro de uma cidade, isso tinha obviamente uma outra consequência: aquela comunidade judaica replicava de algum modo a própria sociedade cristã. Ou seja, se na sociedade medieval portuguesa, na sociedade cristã, havia os “pobres”, os “remediados”, a “classe média” e os “poderosos” — estou a usar termos atuais que não seria operativos na Idade Média –, isso também acontecia na sociedade judaica. Também existia essa divisão classista — havia os seus poderosos, as suas linhagens, [como] os Galite, os Negro, os Navarro, etc., de onde saíam as elites judaicas. Elites em termos socioeconómicos, mas também culturais.
Os Negro mantiveram-se sempre muito próximos do rei até à expulsão manuelina, por exemplo.
Sim, até à expulsão. Era nessas famílias que se recrutava os altos funcionários do Estado, e aí os reis tiveram sempre uma grande dificuldade. Em termos religiosos, uma das funções dos reis portugueses e, de um modo geral, dos reis cristãos era manter a unidade e a pureza da fé, defender a cristandade contra os hereges. Ora, os judeus e os mouros estavam apartados do corpo da comunidade cristã. Todavia, os monarcas portugueses, tal como os monarcas ibéricos e europeus, percebiam uma coisa que qualquer governante compreende — é preciso governar de acordo com a realidade no terreno e não nos podemos deixar imbuir de um espírito fundamentalista que vai prejudicar a própria sociedade. Ponha-se no papel de um rei português — tem de manter a pureza da fé, mas para governar eficazmente precisa daqueles conselheiros [judeus], porque não tem mais ninguém para o lugar deles. Como é que o rei gere esta situação? Pode negar o contributo dos judeus, mas ao fazê-lo sabe que está a empobrecer e a enfraquecer o reino. Está a ver a contradição, não é? Outra contradição tem a ver com o facto de que o rei sabia que a comunidade cristã não via os judeus com bons olhos. Isto tinha de ser gerido com pinças e os reis portugueses tiveram efetivamente essa preocupação de por um lado manifestar tolerância, mas por outro nunca negar a segregação dessas comunidades. Aliás, a própria apostasia — um mouro ou um judeu que abdicasse da sua religião para se converter ao cristianismo era altamente apoiado.
Mas isso era raro, correto?
Não temos muitos dados sobre isso, mas supomos que sim. Não era um fenómeno recorrente e, como compreenderá, não temos na grande maioria dos casos hipóteses de saber se as pessoas que praticavam essa apostasia e se tornavam cristãos eram sinceros ou se era por conveniência. Haveria um pouco de tudo, suponho eu. Mas havia de facto por parte dos reis portugueses essa dificuldade em lidar com essas duas comunidades [judaicas e mouras], que eram um corpo segregado, apartado. Eram até um corpo estranho no meio da comunidade cristã. Não nos esqueçamos que a sociedade medieval europeia se definia como uma sociedade cristã e com uma cosmovisão cristã. Ao mesmo tempo, necessitava daquelas pessoas. Aliás, não é por acaso que, após o édito de expulsão, D. Manuel tudo fez para disfarçar o problema de uma forma manhosa, vamos chamar-lhe assim. Tentou tornear o édito de expulsão, porque ele sabia que o país ficaria mais pobre. E ficou mais pobre e mais fraco com a expulsão dos judeus e dos mouros.
Pelo que descreveu, parece ter havido um maior reconhecimento da importância dos judeus por parte dos reis medievais portugueses do que houve em épocas posteriores.
É curioso. E posso ser um bocadinho suspeito: sou de História enquanto licenciatura, mas o meu mestrado é de Idade Média. Se tivesse que me definir enquanto investigador, autor ou historiador, seria fundamentalmente um medievalista. Isso tem a ver com uma coisa muito simples — a má fama que a Idade Média tem. E muita dessa má fama é bastante injusta porque, na realidade, se observarmos, as comunidades segregadas, neste caso judeus e mouros, eram genericamente mais toleradas na Idade Média do que depois. A Inquisição é uma instituição que vem da Idade Média, mas tem o seu forte período de matanças, de fogueiras e repressão a partir do século XVI, sobretudo após a Reforma Protestante. A própria situação da mulher em termos legais é uma situação menos subjugada na Idade Média, digamos assim, do que depois. Temos essa ideia da Idade Média, e há aí, efetivamente, uma certa injustiça em relação aos grupos minoritários, mouros e judeus.
O tempo da perseguição: o édito de expulsão de 1496, a conversão à força e o grande massacre do século XVI
Em Portugal conhecem-se poucos ataques dirigidos a judeus na Idade Média, sobretudo se compararmos com outros reinos. Houve uma tentativa frustrada, em 1383, e um ataque consumado à Grande Judiaria, em 1449.
Houve efetivamente uma tentativa bastante forte em 1383, que acabou por ser anulada pelo Mestre de Avis. Pelo Mestre de Avis e sobretudo por alguns fidalgos que o acompanhavam.
Até mais por intervenção deles.
Sim, o que se compreende, porque essa tentativa de assalto à Judiaria Grande em 1383 foi na sequência da revolução. Em 1383, D. João Mestre de Avis fez uma revolução em Lisboa para ser escolhido como candidato português ao trono de Portugal. Porque havia outro, D. João de Castela. Foi quando D. João conseguiu matar o conde de Andeiro, afastar a rainha regente, D. Leonor Teles, e assumir-se como candidato ao trono. A massa urbana de Lisboa, que era a sua grande apoiante, foi atrás dele e uma das coisas que essa mesma massa fez, com aqueles desvairamentos próprios daquelas coisas, foi ver-se livre de algumas pessoas, nomeadamente do bispo de Lisboa. Atiraram o bispo do cimo da Sé, porque era castelhano. De seguida, lembraram-se de ir atacar a judiaria para irem buscar as grandes riquezas dos judeus — outro mito — e dá-los ao Mestre para o ajudar. O Mestre de Avis estava numa situação muito pouco confortável — isto de acordo com a descrição de Fernão Lopes. Ele não queria que assaltassem a judiaria, mas ao mesmo tempo não podia alienar a sua base social de apoio. Alguém disse uma vez: “Precisamos dos tresloucados para fazer a revolução, mas temos de nos ver livres deles para conseguir governar”. D. João tinha aqueles tresloucados que o apoiavam, que fizeram a revolução com ele e que queriam assaltar a judiaria. Ele estava com esse dilema e são alguns nobres que estavam com ele que dizem: “Não os deixe, faça o seguinte: comece a cavalgar que eles vão atrás de si”. E foi isso que ele fez. Nessa altura, não houve [um ataque], ao contrário do que sucedeu noutros países. Houve ataques a judiarias em vários locais da Península Ibérica. Na Catalunha, houve um particularmente grande no século XIV. Depois houve um já fora da Idade Média, o grande massacre de 1506.
Um dos episódios mais negros da história de Lisboa.
Sim, a esse nível foi uma grande mancha. E mais uma vez foi algo que partiu de baixo. O país vivia uma conjuntura de uma grande crise, havia um surto de peste e um surto de fome. Havia uma conjuntura extremamente favorável, e nessas alturas procura-se sempre um bode expiatório. Não vou descrever o massacre, ele está descrito no livro. Há um mal entendido na igreja [de S. Domingos].
Um suposto milagre.
E alguém terá comentado, “caramba, aquilo é efeito de luz, não é milagre nenhum”. O massacre começou aí. Acusaram o indivíduo que disse que não era milagre nenhum de ser judeu e começou aí. Foi instigado pelos dominicanos. É curioso, nessa altura, a corte não estava em Lisboa.
Tinha saído da cidade por causa do surto de peste?
Sim, e Lisboa estava com poucas autoridades. O rei estava fora. Lisboa estava entregue aos seus juízes e vereadores. Quando a multidão se começou a agrupar em São Domingos, a força armada do município não teve mão naquela gente. O massacre durou três dias e só começou a ser debelado ao terceiro quando D. Manuel, que desencadeou imediatamente uma repressão quando soube das notícias, enviou para Lisboa tropas ao cuidado do barão de Alvito. Quando o barão de Alvito chegou, a situação já estava mais ou menos controlada porque, ao fim de três dias, as autoridades do município conseguiram reunir uma hoste armada. Mesmo assim houve milhares de mortes e grandes destruições, roubos, pilhagens e violações, que foram punidas pelo rei de forma exemplar. Os instigadores da matança, que eram frades dominicanos, foram executados nos dias seguintes. E houve outras penalizações.
Esse massacre aconteceu numa altura em que já não havia judeus em Portugal, mas sim os chamados cristãos-novos. Os judeus tinham sido expulsos por D. Manuel ou obrigados a converterem-se em 1496.
O édito de expulsão levou à saída de muitos. Outros não puderam sair, tiveram de ficar e foram convertidos à força. Pode imaginar qual era a sinceridade de uma conversão à força.
Era algo que preocupava o rei?
Não. D. Manuel tinha um problema: por um lado, pretendia casar com uma infanta espanhola [Isabel de Aragão], um passo na política da unificação da Península Ibérica sob uma só coroa, que seria a sua. Esse era o grande objetivo de D. Manuel, unificar toda a Península sob um único trono. Claro que os reis de Castela queriam que fosse sob a égide castelhana enquanto nós queríamos que fosse sob a égide portuguesa. D. Manuel aproveitou a oportunidade de casar com uma infanta castelhana. Mas a infanta impôs uma condição: não podia haver “sangue impuro” em Portugal. Só casaria se D. Manuel expulsasse os judeus e os mouros. O rei não o queria fazer, mas queria casar com a infanta. Então fez uma coisa que… Ia dizer que foi muito portuguesa, mas não é só portuguesa. Às vezes somos um bocado injustos. Deu outro nome às coisas. Fez o édito de expulsão e os judeus e os mouros foram expulsos. Os mouros não levantaram problemas, porque tinham para onde ir. Passavam o Estreito de Gibraltar e estavam em terra sua. Os judeus era mais complicado, primeiro porque não tinham terra própria e depois porque detinham um tipo de conhecimento e riqueza que o rei não queria que saísse [do reino], nomeadamente conhecimento científico e administrativo. Então Manuel pensou: “Como é que posso explicar à castelhana que já não há judeus e mouros sem que eles saiam? Vou dar-lhes outro nome”. Batizou-os [os que ficaram] à força e disse que já não eram judeus, eram cristãos-novos. Claro que o problema é que ninguém acreditava nisso. Ninguém acreditava naquela conversão, porque era uma conversão forçada. E, em 1506, o bode expiatório foram os cristãos-novos, acusados de serem falsos cristãos. É claro que eram falsos cristãos, mas a culpa não era deles, obrigaram-nos a isso. Tudo isso foi um equívoco trágico que acabou efetivamente bastante mal, [uma situação] que continuaria durante o reinado da Inquisição.
Que perseguia sobretudo cristãos-novos, como referiu há pouco, e sempre com base na acusação de que eram falsos cristãos. Uma acusação que por vezes parecia não ter grande fundamento religioso…
Hoje em dia a maior parte dos historiadores considera que a Inquisição era não só um organismo da Igreja, não era só um organismo eclesiástico, mas também um organismo das classes poderosas do antigo regime, vamos chamar assim. Isto é, era um instrumento de domínio nas mãos da Igreja, mas também da nobreza e do próprio reino. Era um instrumento que lhes permitia controlar e dominar a sociedade. Tinha função religiosa? Obviamente. Era um instrumento da Contra-Reforma católica, contra os protestantes. Em Portugal os casos de protestantismos foram poucos e os casos de pessoas perseguidas por protestantismo também. [A Inquisição em Portugal] voltava-se sobretudo contra os judeus e, a outro nível, contra comportamentos como a bigamia, a homossexualidade, a solicitação e muitos outros. Eram vários delitos que eram julgados e condenados pelo Santo Ofício. A feitiçaria, a bruxaria… Se bem que em Portugal nunca se tivesse executado nenhuma bruxa. A Inquisição era uma forma de domínio. Domínio religioso, sim, mas também domínio e controlo social e cultural. É importante termos isso presente. Não é por acaso que a Inquisição tinha o seu próprio programa, a sua própria agenda, que episodicamente podia nem coincidir com a agenda do Estado português. Um exemplo: a Inquisição portuguesa era contra a Restauração da Independência de 1640, era a favor da união com Espanha. E própria Inquisição, na figura do seu inquisidor-mor e de outros, chegou a promover atentados contra D. João IV. A própria Inquisição, e isso é muito notório nessa altura, perseguiu insistentemente uma série de apoiantes do rei que eram ricos e que punham a sua fortuna ao serviço da Restauração, porque eram cristãos-novos. O Padre António Vieira, grande apoiante de D. João IV e ele próprio perseguido pela Inquisição, chamava ao Palácio dos Estaus, onde era a sede da Inquisição, um antro de traidores. Portanto, não podemos ver só o Tribunal da Inquisição como um tribunal religioso, que era e muito, era a sua função principal, mas também como uma instituição de repressão social, política e cultural sobre as novas ideias, muito sobre a burguesia, ao serviço dessas classes poderosas do antigo regime português. Tinha interesses próprios também. Um traço negro era que ficava com os bens das pessoas que acusava. Não nos esqueçamos — o Tribunal da Inquisição não era só um labirinto extraordinariamente cruel para quem perseguia, dava cabo da vida da pessoa.
Do acusado e também da sua família.
Porque muitas vezes a pessoa ficava completamente reduzida à miséria. E havia penas perpétuas. Não vamos dourar a pílula — foi uma instituição altamente prejudicial para o próprio desenvolvimento do país e da nação.
E não só naquela altura. Diz no seu livro que contribuiu para um atraso que ainda hoje se verifica em certas áreas
Sem dúvida alguma. Era de facto um aparelho de repressão, de censura. Não nos esqueçamos que havia censura. O Index de livros proibidos. Todos os nossos grandes autores ou foram perseguidos pela Inquisição ou foram proibidos ou foram executados. António José da Silva, o maior dramaturgo português do século XVII, foi executado. O maior botânico português de todos os tempos, Garcia de Orta, teve as ossadas devassadas e queimadas. Um grande número de médicos portugueses, como Ribeiro Sanches, saíram do reino. Alguns chegaram a ser médicos de reis, enciclopedistas, mas em Portugal foram perseguidos e poderiam ter sido executados. Houve uma debandada da inteligência. Houve de facto um atraso. Houve zonas do país que foram altamente sacrificadas em termos sociais e económicos, indústrias completas que foram arrasadas. O caso das manufaturas das Beiras, por exemplo, porque se ligava aqueles processos culturais a uma burguesia de raiz judaica, cristã-nova. Era a visão das classes poderosas portuguesas — do clero, de muita nobreza –, que viam essa nova sociedade que queria nascer como uma ameaça ao seu próprio estatuto.
A partir do governo do Marquês de Pombal, o poder da Inquisição começou a enfraquecer.
Sim. O Marquês de Pombal deu uma machadada muito grande. Ele tentou construir em Portugal um Estado moderno e isso implicava, por um lado, a diminuição do poder da nobreza e do clero, coisa que ele fez à bruta, como sabemos. Mas isso era necessário para que esse Estado moderno nascesse. [Para que nascesse] um Estado mais industrial, mais burguês, mais mercantil era necessário que as tais classes predominantes em Portugal, o alto clero e a alta nobreza, fossem abatidos, e nós sabemos como é que ele fez isso. Pelo menos no campo da inquisição, esta tornou-se, a partir do domínio de Pombal, “um cadáver adiado”, para usar uma expressão do Fernando Pessoa.
Marquês de Pombal também foi responsável pelo fim da distinção entre cristão-novo e cristão-velho, uma medida importante para a melhoria das condições de vida dos antigos judeus.
Era aí que estava a descriminação. Um cristão-velho tinha automaticamente acesso a cargos, regalias, benesses e um reconhecimento social que um cristão-novo não podia ter. A partir do momento que se deixou de saber se uma pessoa era cristã-nova ou cristã-velha, todos passaram a ter, em princípio, acesso às mesmas benesses, regalias e oportunidades.
O tempo da integração: o reconhecimento da comunidade judaica e a solidariedade lisboeta em período de guerra
Mas foi no século XIX que a vida dos judeus de Lisboa sofreu uma melhoria substancial, embora vivessem numa espécie de limbo jurídico, como explica no seu livro. Um bom exemplo disso mesmo é a criação da Comunidade Israelita de Lisboa que foi criada nessa altura, mas que só ganhou estatuto jurídico com a implantação da República.
Houve ali aproximadamente um século entre a abolição do Tribunal do Santo Ofício e o reconhecimento da cidadania para a comunidade judaica, que aconteceu já com a República, em 1911, que foi um período de limbo. Eles tinham liberdade religiosa, mas não eram reconhecidos como comunidade. Não havia registo civil em Portugal, por exemplo,os registos eram paroquiais. Isso tornava muito complicado o registo dos próprios judeus, que tinham de tornear esta questão indo ao governador da Comarca. Era complicado. Havia ali um limbo — não tinham reconhecimento jurídico, mas não eram perseguidos. Podiam ter templos? Sim, podiam, desde que não tivessem visibilidade para o exterior. O chamado culto privado. Tudo isto era efetivamente uma indefinição legal que, lá está, era uma outra manha. O primeiro cemitério judeu era o Cemitério dos Ingleses e isso foi mais uma vez um tornear legal, porque o cemitério era para a família proprietário e para outras pessoas, e ele enterrava judeus, que eram as outras pessoas. Só mais tarde é que se criou o outro cemitério [ainda hoje em funcionamento, na Avenida Afonso III]. Esse limbo manteve-se até à República.
No século XX, encontramos um outro momento marcante na vida dos judeus de Lisboa: a Segunda Guerra Mundial. Como foi esse período?
Lisboa não foi obviamente a única cidade a ser afetada [pela guerra], mas foi a mais afetada, porque era daqui que se partia para os Estados Unidos, primeiro de barco e, a partir de 1942, com o aeroporto de Lisboa, de avião. Era para aqui que vinha a grande maioria dos refugiados. Era uma situação muito complicada, porque estávamos novamente no limbo. Chegar cá era difícil e era sobretudo difícil para aqueles que não eram ricos obter o visto de saída, o bilhete de avião e ir para os Estados Unidos, Canadá ou outro destino. Então a comunidade israelita de Lisboa organizou-se, com o seu hospital, a sua cozinha económica, com os seus esquemas de apoio e solidariedade, que permitiram que os vários milhares que por cá passaram pudessem ter um teto para dormir, pudessem ter algum apoio, um prato de comida quente para comer. De facto, nesse sentido, Lisboa organizou-se. Alguns [refugiados] foram enviados para outras áreas de residência, como as Caldas da Rainha, a Ericeira ou o Luso, onde havia algumas unidades hoteleiras. Estavam ali circunscritos alguns judeus. O Estado português tinha uma política dúplice em relação a esta gente. Bem, o Estado português teve uma política dúplice ao longo de toda a guerra. Não fechava as portas aos judeus, não os via necessariamente mal, mas tinha um problema. O que preocupava o Estado português, nomeadamente o primeiro-ministro Oliveira Salazar e a PVDE, a antecessora da PIDE, não eram os judeus, eram os vermelhos [os comunistas], que vinham no meio dos judeus. Isso é que os preocupava. Então havia um controlo da comunidade, no sentido de estar muito atento às suas atividades políticas. No meio disso tudo, de uma maneira geral, a população lisboeta teve um comportamento muito digno.
Muito solidário também.
Estamos a falar de um país muito pobre. Hoje não temos noção. Portugal era um país miserável, sobretudo se comparado com o resto da Europa transpirenaica. Era um país parado no tempo, de facto atrasado.
Os refugiados que por cá passaram deram precisamente conta desse atraso. Cita alguns testemunhos no seu livro.
Chamavam a isto o “paraíso triste”. É uma expressão de Saint-Exupéry, que passou por cá. Paraíso porque não tinha guerra e porque tinha alguns produtos nas montras, mas triste porque era um país repressivo, reprimido, muito atrasado. Basta dizer que é dessa altura a chamada lei do pé descalço. Muita gente, sobretudo as camadas mais pobres, andavam descalças na rua, uma coisa que chocava muito os estrangeiros. Então passou a ser proibido andar descalço. Então as varinas e os ardinas, os mais pobres, compravam um par de sapatos para dois lá em casa e andavam calçados só com um sapato. Era a forma de tornear a lei. Era um país de facto pobre, muito pobre. Tirando o glamour de algumas ruas principais, do Rossio, da Avenida Liberdade, da Baixa Pombalina, ia-se para as ruas laterais e era de facto uma miséria. E foi esse país pobre a muitos níveis que partilhou com esse judeus o pouco que tinha e teve gestos de solidariedade muito bonitos, que muitos judeus que por cá ficaram e por cá andaram reconheceram e cujos testemunhos também coloquei no livro.
Essa solidariedade aconteceu ao mesmo tempo que existia uma forte propaganda nazi em Lisboa.
Houve efetivamente ao longo da guerra muita propaganda das duas partes em conflito. Havia uma tentativa muito forte de controlar os espíritos, de captar atenções, e a propaganda nazi era particularmente forte. E era antissemita, sim, era racista, sim, mas, curiosamente, sendo muito forte, eles próprios reconheciam que a grande maioria dos portugueses era claramente pró-Aliados. Os poucochinhos dados que vamos tendo monstram-nos isso. Apesar de, repito, do antissemitismo das publicações pró-nazis [como a revsta A Esfera]. É muito curioso que tendo nós tido um histórico de perseguição a judeus e uma Inquisição que durou 300 anos, com todo o role de tragédias que lhe estão associadas, no século XX português e, mesmo ousarei dizer, no século XIX, tivemos antissemitismo, sim, mas nunca com a força que teve na Europa Central. Nunca penetrou na grande maioria da população. Era um antissemitismo de algumas elites, por vezes absolutamente descabelado, como aquele indivíduo [Paulo de Tarso] que garantia que o futebol e educação física em geral eram um instrumento dos judeus para dominar o mundo e para dominar os espíritos. Por isso é que o povo português era contra a educação física e ainda bem, dizia ele. Houve outros mais elaborados, como o António Sardinha, mas estamos a falar de franjas da própria intelectualidade portuguesa, que surgem com força no período da Segunda Guerra Mundial com essa propaganda mas que, mais uma vez, de acordo com os dados que dispomos, não conquistou sequer a maioria da população lisboeta e portuguesa, seguramente.
Foi um final luminoso para uma história que é sobretudo negra?
Sim. Acho, como digo no livro, a solidariedade e tolerância que a população portuguesa teve para com esses pobres refugiados que vieram para Lisboa durante o período da Segunda Guerra Mundial resgatou, pelo menos em parte, muitas tristezas do passado, sem dúvida.