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Em poucas horas, aquele que é considerado um processo aberto à sociedade civil, com umas primárias que permitem que os cidadãos não filiados possam ser candidatos a todas as eleições, o Livre viu-se envolvido numa enorme polémica — principalmente nas redes sociais. Tudo começou quando a Comissão Eleitoral propôs que na segunda volta das eleições primárias — ao contrário do que é habitual e está previsto pelas regras — apenas votassem os membros e apoiantes do partido — fazendo com que todos os restantes cidadãos inscritos (e validados) ficassem de fora. Em pouco mais de 24 horas, a decisão definitiva (e oficial) não deu razão à Comissão Eleitoral, foi dado um passo atrás e, afinal, todos podem votar. Mas o que se passou para que o Livre tenha estado debaixo de fogo por causa de um formato pelo qual é conhecido?
Como começou a polémica?
Na terça-feira, as redes sociais começaram a agitar-se com uma informação enviada pelo Livre relativamente às primárias do partido para escolher os candidatos para as eleições europeias. A nota dava conta de que a Comissão Eleitoral tinha recebido “várias queixas e pedidos de dados da 1.ª volta” e que, após a análise dos mesmos, tinha concluído “existirem fortes indícios de viciação do processo da parte de votos de não membros e apoiantes do Livre”. A conclusão apresentada era simples: a Comissão Eleitoral “lamenta informar”, mas considera que “a única forma de garantir a integridade do processo de primárias” é na segunda volta fechar as primárias a membros e apoiantes.
E as reações contra o Livre multiplicaram-se entre o “choque” e as acusações de que a ação do partido estava a ser “anti-democrática” ou o facto de “o Livre não ser assim tão livre”. Aliás, mais do que isso a ideia de que o partido estava a querer mudar as regras meio do jogo levou a que o método das primárias do Livre começasse mesmo a ser colocado em causa.
Como funcionam as eleições primárias do Livre?
As primárias do Livre são aplicadas às várias eleições de âmbito nacional e europeu. No caso da próxima ida às urnas para o Parlamento Europeu, o partido anunciou o lançamento de um “desafio” a membros e apoiantes e à sociedade civil em geral. Depois de descritos os ideais do partido, o repto soava acolhedor: “Junta-te a nós.”
As regras para que alguém pudesse candidatar-se não iam além de uma declaração de honra em que a pessoa dava a garantia de que se revia nos princípios do Livre, apoiava politicamente os objetivos do programa definido e cumpria o código de conduta dos partidos e os regulamentos das primárias; assumia que não pertencia a nenhum partido político e entregava o seu recenseamento eleitoral e o número de cartão de cidadão.
Para este processo de candidatura às europeias o Livre aprovou 57 candidaturas e duas não tiveram aval para seguir em frente. Assim, nos dias 9 e 10 de abril os candidatos a candidatos do Livre foram a votos numa primeira volta que tinha como objetivo escolher os seis mais votados. A segunda volta, que estava marcada para os dias 17 e 18 deste mês (e que acabou adiada 24 horas) antes desta questão, servia para organizar a lista final às europeias — os seis vencedores que saíram da primeira volta por ordem dos mais votados.
Quanto às pontuações, é importante referir os pontos que cada um dos candidatos obtém por cada vosso:
1.º lugar: 10 pontos
2.º lugar: 6,67 pontos
3.º lugar: 4,44 pontos
4.º lugar: 2,96 pontos
5.º lugar: 1,98 pontos
6.º lugar: 1,32 pontos
No regulamento destas eleições pode ler-se que “o eleitor ou eleitora exprime a sua preferência pelos candidatos da terceira fase, ordenando-os de 1 a 6, significando o número 1 a maior preferência e 6 a menor preferência” — e este é o principal argumento da comissão eleitoral, tendo em conta que muitos eleitores optaram por um voto único e, consequentemente, não atribuíram pontos a mais nenhum candidato. Apesar da referência ao facto de o eleitor dever exprimir a sua preferência, não existe nenhuma obrigatoriedade no regulamento.
Quais os resultados da primeira volta?
A primeira volta das eleições primárias do Livre terminou com o seguinte resultado para os seus primeiros candidatos, os únicos que passam à segunda volta:
- Francisco Paupério: 3560,23 pontos
- Filipa Pinto: 2183,69 pontos
- Carlos M.G.L. Teixeira: 1508,11 pontos
- Mafalda Dâmaso: 1404,68 pontos
- Tomás Cardoso Pereira: 1475,64 pontos
- Inês Pires: 666,67 pontos
O que pretendia a Comissão Eleitoral e porquê?
De acordo com o e-mail enviado aos membros e apoiantes do partido (mais completo do que o que foi enviado aos membros da sociedade civil que se candidataram ou votaram), e ao qual o Observador teve acesso, a Comissão Eleitoral fez uma avaliação sobre os resultados e, desde logo, apontava que “a ordenação não obrigatória de seis candidatos, mas de um número de entre 1 a 6″.
Os membros desta comissão referiam que, do que é do seu conhecimento, “é a primeira vez que surge um candidato com um número excessivo de votos únicos”. Ou seja: é a primeira vez que há tantos boletins de voto em que apenas foi ordenado um candidato. Considerado “excessivo em comparação com outras primárias e em comparação com os restantes candidatos desta eleição” a Comissão Eleitoral refere ainda que “o fenómeno dos votos únicos em um único candidato” não é tão sentido dentro dos votos de membros e apoiantes — sendo que o Livre tem conhecimento quem é que vota dentro e fora do partido e consegue fazer essa comparação.
Feitas as contas, a Comissão Eleitoral concluiu que 185 votos únicos em Francisco Paupério são provenientes dos eleitores inscritos e apenas quatro entre membros e apoiantes do Livre — “correspondem a 189 primeiras posições e aplicando o coeficiente de 10 pontos a um total de 1890 pontos” dos 3560,23 pontos que o candidato obteve. Ainda assim, entre o número de votos de internos (516) houve 50 votos únicos, neste caso noutros candidatos. “De facto os 185 votos únicos (dos inscritos) no candidato correspondem a 39% de todos os votos de inscritos para o ato eleitoral das primárias”, conclui a análise.
É a primeira vez que a questão dos votos únicos se coloca?
A Comissão Eleitoral fez uma comparação com o passado, mais precisamente com as legislativas, em que “o valor máximo de votos únicos de inscritos num candidato não ultrapassa os 17% de todos os votos de inscritos, numa situação de 2ª volta com muito menos candidatos” — sendo que numa primeira volta o valor desce para os 6%.
“Mais, verifica-se que 52% da pontuação total do candidato provém destes votos únicos de inscritos para votar” realça a nota, frisando que “o segundo candidato com mais votos singulares tem 5% da sua pontuação total” a partir do mesmo tipo de votos. Mesmo com todos os resultados, a Comissão Eleitoral deu conta que se forem retirados todos os votos únicos, os seis candidatos que passaram à segunda volta são os mesmos — mas o Observador sabe que Francisco Paupério não ficaria em primeiro lugar se esses boletins não existissem.
Quem é Francisco Paupério, que apresentou um recurso da primeira decisão?
Há quase um ano, Francisco Paupério anunciou que seria candidato às primárias do Livre para as eleições europeias de 2024. Com 28 anos, é natural de Leça de Palmeira e biólogo e está a fazer o doutoramento em Biologia Integrativa e Biomedicina no Instituto Gulbenkian de Ciência. É membro do Livre, faz parte da Assembleia do partido e na página oficial refere que sempre foi motivado com a possibilidade de ter “um impacto positivo sobre a vida das pessoas da comunidade e do planeta”.
Ao Observador, o candidato sentenciou que a situação detetada e que envolvia a sua candidatura “não foge ao regulamento” da votação em curso, pelo que decidiu “contestar a decisão dentro do partido, através do Conselho de Jurisdição” — e que acabou por lhe dar razão. “Fiquei surpreendido com a decisão, é abusiva ao espírito das Primárias”, apontou o visado logo após as primeiras notícias, recordando que nos últimos meses fez uma intensa campanha, pelo que não estranhas que várias pessoas externas ao partido se tenham mobilizado para o apoiar, mesmo que optando por votar apenas na sua candidatura.
Já depois de conhecida a decisão final, contactado pelo Observador, Francisco Paupério disse que “guardará todos os comentários para o final das votações da segunda volta, para não criar ainda mais ruído”.
Qual foi a decisão final?
O Conselho de Jurisdição do Livre é o responsável por validar ou não a análise da Comissão Eleitoral, que além de ter adiado as eleições em pelo menos 24 horas, sugeriu que na segunda fase só pudessem votar membros e apoiantes do partido, excluindo todos os participantes que se inscrevem para o efeito. O órgão reuniu esta quarta-feira e decidiu não aceitar a deliberação da Comissão Eleitoral por entender que “não foram apuradas quaisquer condutas concretas que traduzam uma viciação do processo eleitoral”.
“É legítimo aos candidatos em primárias abertas procurarem mobilizar os seus eleitores, muito embora o exercício do direito de voto nas primárias abertas deva seguir a lógica de ordenação de uma lista de candidatos, ao invés da escolha de um cabeça de lista”, lê-se na deliberação a que o Observador teve acesso. Neste caso específico foi considerado que “não se apuraram [ainda] quaisquer práticas concretas que permitam estabelecer a ilação de que, consciente ou apenas negligentemente, Francisco Paupério ou qualquer um dos seus apoiantes tenha agido à margem dos princípios do Código de Ética do Livre, bem como dos princípios que regem o processo das Primárias”.
Esta deliberação acabou por ser um passo atrás na primeira decisão da Comissão Eleitoral. Não só tudo ficou igual como a segunda volta das eleições começou logo à 00h do dia 18 de abril, pelo que terminam 48 horas depois.
A decisão criou mal-estar interno?
Além do próprio visado, o jornal Público deu conta de que mais de 100 membros e apoiantes do Livre discordam da decisão da Comissão Eleitoral do Livre e resolveram avançar para um abaixo-assinado em que apelavam ao Conselho de Jurisdição que desfizesse a “decisão insensata” — que consideram ser uma “falta de respeito democrático” por um candidato em concreto, mas também pelos eleitores que se inscreveram nestas primárias. Ou seja: mais do que o burburinho externo criado pelo caso, também dentro do Livre acabou por haver quem discordasse com a tentativa de alterar as regras.