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"Longa vida a Putin." O Níger ilustra as "fissuras" em África prontas a serem exploradas pela Rússia

Um golpe de Estado por razões "egoístas" teve eco devido ao legado do passado colonial. Mas o Níger é o mais recente palco onde se desenrola a competição entre Rússia e Ocidente.

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Eram três da manhã quando os soldados se dirigiram ao palácio presidencial. A cidade de Niamey estava em silêncio e o Presidente, Mohamed Bazoum, dormia dentro do palácio, onde há gazelas espalhadas pelos jardins. Não foi difícil para os homens armados tomarem conta do edifício — embora o Presidente tenha conseguido fechar-se numa sala de pânico, de onde telefonou aos conselheiros para dar conta do golpe de Estado em curso.

Pouco depois, na televisão, o auto-proclamado Conselho Nacional pela Salvaguarda da Pátria (CNSP) anunciava que derrubara o governo e tomara o poder. O major-coronel Amadou Abradamane citou o deteriorar da “situação de segurança e a economia pobre” como razões para o golpe de Estado.

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O momento do anúncio do CNSP à população do Níger

ORTN - Télé Sahel/AFP via Getty

Rapidamente as ruas da capital se encheram de manifestantes que apoiavam a intervenção militar. “Abaixo a França!” gritavam alguns, que atiraram pedras ao edifício da embaixada francesa e acabaram por deitar fogo à porta. “Longa vida a Putin!”, gritavam outros, muitos deles com bandeiras da Rússia.

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Dentro do palácio presidencial, Bazoum telefonou para o embaixador do Níger em Washington e ditou-lhe um artigo, que seria publicado depois no Washington Post. “Escrevo este artigo como refém”, pode ler-se na primeira linha. A conclusão é um pedido direto: “Peço ao governo dos Estados Unidos e a toda a comunidade internacional que nos ajudem a restaurar a ordem constitucional.”

Estávamos a 26 de julho de 2023. Agora, mais de duas semanas depois, a situação continua num impasse. Bazoum continua refém — em “condições desumanas”, segundo a filha —, a nova junta militar não é reconhecida como legítima por praticamente nenhum país e os países que compõem a Comissão da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) ameaçam com uma intervenção militar.

A instabilidade em África tem-se agudizado ao longo dos últimos anos: esta é a 11.ª tentativa de um golpe de Estado no continente ao longo dos últimos dois anos. O caso do Níger, como o de tantos outros, é alimentado por sentimentos anti-coloniais, com França a assumir o lugar de alvo. Mas, no meio de tudo isto, por que há bandeiras russas entre a multidão e gritos a aclamar o Presidente Vladimir Putin?

O descontentamento com a Françafrique para mascarar um golpe pessoal

Cameron Hudson não tem dúvidas. “As razões que levaram ao golpe são todas locais”, diz o analista do norte-americano Centro de Estudos Estratégicos Internacionais (CSIS na sigla original), que chegou a trabalhar sobre África para a CIA. Hudson aponta ao Observador uma justificação específica para este levantamento militar: “A raiva do comandante da guarda presidencial [o general Abdourahamane Tchiani, que lidera a junta militar] por ter sido substituído e por a sua unidade receber menos equipamento e treino e ter menos prestígio do que outras envolvidas em contraterrorismo.”

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Os líderes da junta militar do Níger numa manifestação de apoio

Anadolu Agency via Getty Images

A motivação pode ter sido pessoal, mas o movimento rapidamente granjeou apoios um pouco por toda a sociedade. Em concreto por assentar na ideia de que o governo de Bazoum era demasiado próximo do Executivo de Emmanuel Macron: “Bazoum era uma marioneta dos franceses”, comentou com a Der Spiegel Boubaca Adamou, professor de 54 anos e um dos manifestantes que saíram à rua em Niamey após o golpe.

Antiga colónia que apenas se tornou independente em 1960, o Níger ainda mantém muitos laços ao país europeu, evidentes sobretudo no urânio que exporta para França. “Os sentimentos anti-francófonos estão sempre presentes no cenário de fundo da política do Níger”, aponta Hudson. “E agora que o golpe aconteceu, esses sentimentos estão a ser usados para criar apoio em torno dos golpistas e justificar as suas ações, muito embora elas tenham ocorrido por motivos egoístas e não como um statement político mais lato sobre a influência francesa.”

Mas ela existe. “É a Françafrique, uma rede intrincada neocolonial que se espalha pelas dimensões económica, política, de segurança e cultural, e que é centrada na linguagem e nos valores franceses”, ilustra ao Observador Isabella Currie, especialista em relações internacionais da Universidade La Trobe. “O impacto de França é claro nos conselheiros militares e no envolvimento com sucessivas administrações do Níger, incluindo a recém-deposta.”

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"Macron inferior à liberdade do povo africano", pode ler-se num cartaz numa manifestação de apoio ao golpe de Estado

AFP via Getty Images

A política da Françafrique, contudo, está em transformação, de acordo com o Presidente Emmanuel Macron, que em fevereiro deste ano anunciou “uma nova era” na relação do país com o continente africano. “África não é o quintal de ninguém e menos ainda um continente onde os europeus e os franceses devam ditar a conjuntura para o seu desenvolvimento”, declarou Macron.

Só que das palavras aos atos vai uma distância. Ainda há atualmente 1.500 tropas francesas no Níger, a que se somam outras 1.100 norte-americanas. Tudo por causa da guerra contra o jihadismo islâmico, que abala particularmente a faixa do Sahel, região onde se inclui o Níger. E a cooperação militar entre este país e o Ocidente reforçou-se particularmente nos últimos anos, à medida que outros países do Sahel como o Mali e o Burkina Faso levaram a cabo os seus próprios golpes de Estado e se afastaram de vez da órbita de Paris.

Agora, essa cooperação está totalmente em risco.

A Rússia “oportunista” que explora o ressentimento pós-colonial

E é aqui que entra um novo ator: a Rússia.

O descontentamento com a influência francesa já é visível há muito no Níger — país que ocupa a 189.ª posição dos 191 países incluídos no Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas. Em meados de 2022, foi formado o movimento M62, uma coligação de ativistas e figuras da sociedade civil que tem questionado a presença francesa no país.

“É de notar a emergência dos movimentos UNPP e PARADE no Níger, o segundo abertamente associado à embaixada da Rússia." 
Isabella Currie, investigadora que estuda a influência russa em África

Mas Isabella Currie, que tem investigado a influência russa em África (em particular a do Grupo Wagner), garante que a Rússia já se “infiltrou” nos grupos da sociedade civil no terreno. “É de notar a emergência dos movimentos UNPP e PARADE no Níger, o segundo abertamente associado à embaixada da Rússia. O PARADE tem ramos em vários países africanos e promove uma parceria económica entre Rússia e África. A ligação à Rússia é evidente na sua comunicação e presença, o que nota uma tentativa de influência significativa [no continente]”, diz.

O especialista militar francês Pierre Servent também assegura à Der Spiegel que o M62 tem sido o principal fornecedor de bandeiras nos protestos dos últimos dias: bandeiras russas para serem agitadas e bandeiras francesas para serem queimadas.

Nos últimos anos, a Rússia tem reforçado a sua ligação ao continente africano, em várias frentes: exporta produtos como trigo e fertilizantes, mas também armamento — é, neste momento, o fornecedor de 40% do armamento comprado pelos países africanos.

E Moscovo começou a expandir a influência da economia para a política: em 2019, realizou a primeira cimeira Rússia-África; agora, em 2023, acolheu a segunda, que não contou com a presença de tantos chefes de Estado devido ao impacto da guerra da Ucrânia.

Apesar disso, muitos governos africanos mantêm-se ao lado de Putin, como é visível em muitas das votações nas Nações Unidas sobre o tema da Ucrânia; mesmo que não votem claramente a favor de Moscovo, é frequente absterem-se quando o tema é a guerra. O discurso da Rússia para o continente é o de que há pontes entre as duas regiões, que, juntas, podem combater a “hegemonia” ocidental — e que assenta muito na exploração do descontentamento pós-colonial.

Apesar de não considerarem que a Rússia está na origem do mais recente golpe de Estado no Níger, os especialistas ouvidos pelo Observador não têm dúvidas de que o país explorará a situação a seu favor. “Devido às sanções ocidentais, a Rússia está à procura de novos mercados e de novos aliados e África é um desses focos”, resume Alex Vines, investigador especializado em África da Chatham House.

Cameron Hudson vai ainda mais longe. “A Rússia é oportunista”, afirma, sem margem para dúvidas. “O que quer que crie um fosso entre o Ocidente e o resto do mundo é benéfico para a Rússia. Moscovo não está poderosa o suficiente para criar as fissuras, mas está completamente preparada para as alargar e para as explorar.”

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Vladimir Putin com vários chefes de Estado africanos na última cimeira Rússia-África

SPUTNIK/AFP via Getty Images

Não por acaso, os Estados Unidos têm-se mostrado particularmente preocupados com o golpe no Níger, com o secretário de Estado, Anthony Blinken, a denunciar mesmo o papel da Rússia: “Não creio que o que aconteceu no Níger tenha sido instigado pela Rússia, mas eles tentam aproveitar-se”, alertou numa entrevista à BBC.

Ainda é cedo para falar num conflito por procuração entre norte-americanos e russos em território africano, garantem os especialistas. Mas não há dúvidas de que há uma competição por influência: “Os africanos agora têm escolhas sobre as relações que mantêm e muitos sentem-se confortáveis em trabalhar com a Rússia, que não lhes exige nada”, resume Cameron Hudson. Isabella Currie diz que estamos perante “uma competição por influência, poder e acesso” que opõe Ocidente e Rússia. “E não podemos deixar de sublinhar o legado deixado pelo colonialismo nestes países, que cria uma situação complexa.”

A Rússia sabe-o e tem explorado esse tema. No verão de 2022, o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, publicou um artigo de opinião em vários jornais de países africanos onde relembrava que a Rússia “não se manchou com os crimes sangrentos do colonialismo” e que sempre “apoiou com sinceridade os africanos na sua luta pela libertação da opressão colonial”.

“A Wagner não vai deixar África.” Prigozhin está para durar e quer estender-se ao Níger

Este é o discurso oficial. Mas, na sombra, as ligações entre a Rússia e vários países africanos — com destaque para a região do Sahel, onde se inclui o Níger — têm outro elemento que ajuda a forjar lealdade entre vários governos do continente. Um elemento chamado Grupo Wagner, a milícia de Yevgeny Prigozhin, cuja forte presença em África não parece ter sido abalada pela tentativa de golpe de Estado em Moscovo.

“Neste momento não temos pilotos suficientes, a maioria dos nossos aviões militares e helicópteros de combate são pilotados por homens da Wagner”, confessou um oficial da Força Aérea do Mali recentemente à Associated Press.

A Wagner infiltrou-se de tal forma entre as Forças Armadas de vários países africanos que, com o combate ao jihadismo que ainda perdura, se tornou indispensável em países como o Mali, a República Centro-Africana e até Moçambique (onde tropas da Wagner ajudaram a combater os islamistas em Cabo Delgado). Em troca, ganham acesso “à exploração de recursos naturais e concessões mineiras”, que a investigadora Currie define como “operações de negócios questionáveis”.

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"A Rússia e nós adoramos a Wagner", diz um cartaz numa manifestação em Bangui, na República Centro-Africana

AFP via Getty Images

Essa influência é tal que o norte-americano Cameron Hudson não tem dúvidas em fazer uma previsão: “A Wagner não vai deixar África”, garante, apesar do desafio de Prigozhin a Putin. “É uma ferramenta valiosa para a política russa e há muitos mercados em África que potencialmente se podem interessar pela Wagner.”

Alguns dados apontam para esta ideia de que os problemas na Rússia não beliscaram as operações da milícia no continente africano. Segundo um responsável da Líbia confirmou ao The Guardian, quatro dias depois da insurreição em Moscovo, o Kremlin mandou um enviado a Benghazi para garantir ao general Khalifa Haftar que tudo se manteria igual no que diz respeito à presença da Wagner. E o próprio ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, anunciou a 30 de junho que os soldados da Wagner permaneceriam no Mali e na República Centro Africana como “instrutores” dos exércitos locais.

“Há presidentes a quem dei a minha palavra de que os defenderia. Se retirar 100, 200 ou 500 combatentes de lá, muitos países deixam simplesmente de existir”, rematou o próprio Prigozhin no seu canal de Telegram.

“Há presidentes a quem dei a minha palavra de que os defenderia. Se retirar 100, 200 ou 500 combatentes de lá, muitos países deixam simplesmente de existir.”
Yevgeny Prigozhin, líder do grupo Wagner

Oficialmente, a Rússia não reconhece este golpe de Estado no Níger, que classifica de inconstitucional. Mas Prigozhin tem um discurso diferente e já ofereceu os serviços da sua milícia ao país, numa outra mensagem onde culpou “os antigos colonizadores” pela crise de segurança no país.

Os passos para trazer a milícia russa para o país já estarão a ser dados. Várias fontes confirmaram à France 24 e à Al-Jazeera que a recente viagem de um dos generais do Níger ao Mali serviu para pôr a junta militar em contacto com o grupo Wagner.

Ameaça de intervenção militar do CEDEAO pode ser só tática negocial

Enquanto o Níger vai reforçando os seus laços com Putin e Prigozhin, alguns países vizinhos inquietam-se. A Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) tem ameaçado claramente a junta militar com a possibilidade de intervir militarmente no país, caso não coloque novamente Bazoum na presidência.

Mas outros países da região, como o Mali e o Burkina Faso, já se colocaram firmemente ao lado dos novos líderes do Níger, elevando o risco de um conflito na região. Já para não falar na possibilidade de os soldados da Wagner se colocarem entretanto ao lado dos militares golpistas.

“Seria uma loucura, o CEDEAO nem sequer tem treino para uma missão desse tipo. Se o fizesse, rapidamente transformaria um golpe sem derramamento de sangue numa guerra regional, o que seria o pior resultado possível.”
Cameron Hudson, investigador do CSIS, sobre uma intervenção militar do CEDEAO

É precisamente por isso que os especialistas não acreditam que o CEDEAO venha a cumprir a sua ameaça. “A intervenção militar não é a prioridade deles”, assegura Alex Vines. “A prioridade é chegar a um acordo político para afastar a junta.” Cameron Hudson reforça: “Seria uma loucura, o CEDEAO nem sequer tem treino para uma missão desse tipo. Se o fizesse, rapidamente transformaria um golpe sem derramamento de sangue numa guerra regional, o que seria o pior resultado possível.”

Aquilo de que não há dúvidas, porém, é que a situação em África está em efervescência e o Ocidente não pode tomar como garantidos determinados aliados. “O Níger não é o único Estado na região que enfrenta instituições frágeis, pobreza e desafios crescentes de segurança”, avisa o investigador norte-americano, para quem “a era dos golpes de Estado em África ainda não acabou”.

“O que o caso do Níger nos diz é que até países que considerávamos estáveis e firmemente pró-ocidentais já não o são. Ou então nunca o foram e avaliámos mal”, diz.

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