Poucas horas antes de começar no Parlamento a audição ao ministro das Finanças, o discurso do Estado da União feito pela presidente da Comissão Europeia deu mais munições a uma reivindicação que já não é nova na esquerda, mas que tem vindo a ganhar adeptos dentro do próprio Partido Socialista.
“Nestes tempos está errado receber receitas e lucros extraordinários, beneficiando da guerra e sobrecarregando os consumidores. Nestes tempos, os lucros devem ser partilhados e dirigidos para aqueles que precisam mais”.
“Sabe quem disse isto?”, perguntou a deputada do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua, ao ministro. Fernando Medina respondeu que não. A deputada usou as declarações de Ursula von der Leyen para fazer uma pergunta: “De que está à espera para taxar os lucros da Galp?” Depois de referir que a empresa de gás e petróleo anunciou um crescimento de 150% dos lucros no primeiro semestre.
Na resposta ao Bloco de Esquerda, e ao PCP antes, Fernando Medina contornou a pergunta evitando referência ao petróleo, onde o Governo reduziu os impostos nos combustíveis sem afetar a receita das empresas. E respondeu com as medidas já adotadas para os mercados de gás e da eletricidade (neste caso com Espanha) para conter os preços. Medidas que, defendeu, na prática antecipam o impacto de taxas sobre lucros extraordinários que só teriam efeito no ano seguinte. Além de que a receita iria para o Orçamento do Estado e não diretamente para os consumidores dos produtos energéticos que estão a pagar os preços caros que geraram os lucros.
Já no final da audição na comissão de Orçamento e Finanças desta quarta-feira, o ministro revelou ainda números até agora não conhecidos com as estimativas de poupança para os consumidores das medidas anunciadas para os mercados elétrico e do gás. Serão mais de 800 milhões de euros, uma receita “que é transferida diretamente dos resultados das companhias de gás e de eletricidade para os consumidores”.
As contas que deram esta soma cobrem dois mercados, duas políticas e dois horizontes temporais distintos.
De onde vêm os 815 milhões revelados por Medina
O ganho estimado na eletricidade resulta da poupança obtida no preço final graças ao mecanismo ibérico que limita o custo do gás na produção de energia elétrica. Face ao preço que existiria sem este mecanismo, e que é calculado diariamente, a poupança entre 15 de junho e 15 de agosto para os consumidores portugueses é de 150 milhões de euros. Se este exercício for extrapolado até ao final do ano chegamos a 500 milhões de euros que “estarão nas contas dos lucros inesperados das companhias do mercado elétrico e que serão usadas em benefício dos consumidores”.
O exercício para o gás simula ainda comportamentos e números ainda não concretizados e tem como horizonte temporal um ano, período no qual os consumidores domésticos podem regressar à tarifa regulada do gás. E parte da comparação entre os aumentos anunciados pelas comercializadoras para outubro, e os preços já revistos para cima da tarifa regulada a partir do mesmo mês, multiplicando a poupança de cada cliente pelo universo de consumidores que está no mercado livre e pode voltar à tarifa. Se forem todos, a poupança anual será de 630 milhões de euros, se for metade (o cenário que Medina usou para avançar com os 815 milhões de euros) serão 315 milhões de euros. Mas num ano e não até ao final do ano.
As contas, que como Medina explicou mais tarde aos jornalistas, foram feitas pelo secretário de Estado da Energia, João Galamba, servem para reforçar os argumentos que explicam a resistência dentro do Governo à taxação de lucros inesperados na energia (banca e distribuição foram setores também referidos pela oposição).
Em vez de taxar depois e com resultados incertos — “suspeito que não há nenhum país que esteja já a usufruir dessa tributação” — com a exceção de Portugal onde “os consumidores estão a beneficiar na eletricidade”. Logo, conclui, “estamos a ir mais longe reduzindo esses lucros antes deles serem apurados”. Tal como Costa, também o ministro das Finanças reconhece que este debate não está fechado, mas insiste “faremos as intervenções no sítio em que a tributação for efetiva e contribuir para o sentido de justiça e equilíbrio das contas públicas”. E porque “queremos fazê-lo com eficácia”.
Os ganhos na receita do IVA que serão todos devolvidos às famílias
Debaixo do fogo cruzado da oposição e até com o Presidente da República a admitir que o pacote de apoio às famílias soube a pouco, o ministro das Finanças foi preparado para o Parlamento com contas para mostrar que o Governo se prepara para devolver tudo o que vai cobrar a mais por conta da inflação. Pelo menos no IVA — o imposto que mais engorda com a subida dos preços.
Os gráficos mostrados por Fernando Medina aos deputados da comissão de Orçamento e Finanças não são as projeções das Finanças para o comportamento deste imposto, mas sim um exercício feito a partir da cobrança adicional de IVA registada até julho face à meta inscrita no Orçamento para 2022. E partindo de um cenário “otimista” de que o crescimento da economia e da cobrança fiscal se manterá até ao final do ano. Nestes pressupostos, o Estado vai arrecadar mais 2.480 milhões de euros que o estimado, o que corresponde grosso modo aos 2,4 mil milhões de euros dos apoios anunciados no pacote anti-inflação na semana passada.
E quando vários deputados lembraram que um dos apoios mais vastos do pacote — o aumento extraordinário das pensões — é uma antecipação de parte do aumento previsto para 2023 (e que terá impacto negativo na atualização das pensões a partir de 2024) — Fernando Medina respondeu (ao deputado do PSD, Hugo Carneiro). “O Sr deputado desvaloriza isso, mas nenhum pensionista desvalorizará quando entrar na sua conta meia pensão”.
Da mesma forma, defendeu Medina, que as outras medidas transversais anunciadas, e que a oposição “desvaloriza” vão “fazer a diferença na vida das famílias”, apesar de Bruno Dias do PCP ter atirado que a prestação única de 125 euros para quem ganha até 2.700 euros brutos cobre apenas o primeiro de vários aumento de prestação de crédito à habitação por causa da subida das taxas de juro. Os apoios que António Costa prometeu na entrevista da segunda-feira ainda estão a ser avaliados e não parecerem ser para já.
“Este programa vale um ponto percentual do PIB. Se não o fizéssemos o défice seria de 0,9% em 2022 em vez de 1,9%, mas decidimos manter a meta” porque as contas certas “também são um objetivo importante para as famílias e para as empresas” porque reduzindo o défice e a dívida (cuja trajetória vai continuar a crescer em 2023 segundo ficará previsto no próximo OE) é o “maior apoio que podemos dar às famílias e empresas”.
É certo, reconheceu o ministro das Finanças, que o Estado vai arrecadar mais receita por vias para além do IVA. Há mais contribuições para a Segurança Social porque há mais pessoas empregadas e a retoma da economia trará mais IRS e mais IRC. Mas também está a ter mais despesa, notou. Só o impacto da inflação nas despesas do Estado com energia aumentaram mil milhões de euros, avançou.
Fernando Medina reforçou que a economia vai crescer mais de 6% este ano, o maior crescimento da zona euro e da UE garantiu, mas também contrariou os que acusam o Governo de só agora estar a responder à inflação. “Só na resposta à inflação estamos a mobilizar mais de 4.000 milhões de euros”, uma conta que engloba as medidas adotadas desde o início do ano com especial enfoque para a energia, apoios aos combustíveis e às tarifas elétricas.
Os tabus do Governo. Aumento de apoios sociais em 2023 e de pensões em 2024
A polémica estalou logo depois de o Governo ter anunciado um bónus de meia pensão pago de uma só vez já em outubro mas, em contrapartida, ter revelado que a atualização das pensões em janeiro será limitada face àquilo que a lei prevê, o que, se nada for feito, implica que a partir de 2024 os pensionistas fiquem a perder (face ao que poderiam receber se o Executivo não tivesse mudado as regras).
Na audição desta terça-feira, a ministra do Trabalho e da Segurança Social manteve o argumento que tem sido usado pelo primeiro-ministro e reiterou que não haverá corte das pensões — somando o apoio extraordinário de outubro com a atualização de 2023, os pensionistas ganham o mesmo do que se não fosse suspensa a fórmula automática. Na audição paralela, o ministro das Finanças também endereçou o tema. “No que toca às pensões, não há nenhum artificio, nenhum truque do que o deputado e o seu partido referem. Não há perda poder de compra face ao ano de 2023”, respondeu ao deputado social-democrata Hugo Carneiro.
Mas a questão é a partir de 2024. Sendo a atualização de janeiro mais limitada, e uma vez que essa atualização é permanente, os pensionistas ficam a receber menos do que receberiam se a regra se mantivesse. O Governo está alinhado nas respostas que tem dado sobre o tema, e Mendes Godinho também tirou a cartada da sustentabilidade da Segurança Social, quando questionada sobre o tema. Repetindo que o Governo não quer tomar decisões “precipitadas” e “não refletidas”, disse mesmo que quer “garantir que não estamos hipotecar nem gerações atuais nem futuras”.
Como o Governo tem dito, a decisão de 2024 será tomada em 2023, tendo em conta a evolução da economia, do sistema da Segurança Social e das conclusões dos peritos designados pelo Governo para, numa comissão de trabalho, discutir a diversificação das fontes de financiamento da Segurança Social. “O que será feito [para 2024] é uma avaliação em função da evolução de 2023, com o contributos da comissão para a diversificação das fontes de financiamento”, para com essa informação possamos “em 2023 determinar o que acontece em 2024”, sublinhou.
Nas contas do Governo, avançar com o aumento automático tal como dita a lei — o que levaria a aumentos entre 7,1% e 8% — geraria uma quebra de 13 anos na capacidade do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS), conhecido como a “almofada” do sistema de pensões caso o sistema entre se torne deficitário. Ao invés, as atualizações propostas variam entre 3,43% e 4,43%, consoante o escalão de rendimento.
Esta não será a primeira vez que o Governo suspende a regra da atualização das pensões. Como o Observador já escreveu, é a quinta vez que a lei da atualização das pensões não é aplicada para travar um aumento: aconteceu em 2011, 2012, 2013 e 2015. Já, pelo menos, em 2010, 2014 e 2021 não foi aplicada para evitar uma descida.
Ana Mendes Godinho estima que se a regra não tivesse sido adaptada nos últimos anos, os pensionistas teriam tido aumentos muito inferiores (6,1%) ao que efetivamente tiveram (14,1%). Esse dado foi avançado na resposta à provocação da deputada do PSD Emília Cerqueira, que deu, em tom irónico, as boas-vindas ao Governo à discussão sobre a sustentabilidade do sistema de pensões.
Mendes Godinho não a deixou sem resposta: “Não aceito lições do PSD” quanto à sustentabilidade da Segurança Social, “a História fala por si”, uma frase que levantou vários protestos dos deputados social-democratas. “Os únicos anos em que houve diminuição das pensões pagas”, respondeu Mendes Godinho, “foram anos de governação do PSD em que nessa altura o PSD decidiu não aplicar a fórmula para cortar e pagar menos”. Já o Governo, argumenta, tem adaptado a fórmula para “quando não consegue responder ao momento em que vivemos”.
Do Bloco, José Soeiro quis saber como calculou o Governo que a “almofada” das pensões perderia 13 anos caso a fórmula de atualização se mantivesse. Mendes Godinho chegou a dizer que se baseou em “cálculos” que “o senhor deputado também poderá fazer”, o que motivou risos dos deputados, entre eles, o bloquista. Mendes Godinho continuou, indicando que os cálculos foram feitos por um “organismo público”. “Qualquer cálculo feito por um organismo com base numa fórmula, é de todos, não é meu, será sempre, naturalmente, também seu”. Mas qual o cálculo? Não disse.
E o indexante que serve de referência a prestações sociais? Ministros não dizem o que vão fazer
A pergunta já tinha sido colocada pelo deputado do PCP Alfredo Maia, mas Mendes Godinho não lhe deu resposta. O deputado do Bloco, José Soeiro, voltou a ela, uma e outra e mais outra vez, insatisfeito com as respostas que a ministra lhe ia dando: afinal, o que vai o Governo fazer em relação ao Indexante de Apoios Sociais (IAS), que serve de referência para a atribuição e o cálculo de várias prestações sociais, como o subsídio de desemprego, o limite mínimo do subsídio de doença ou o montante das prestações por morte ou despesas de funeral?
A fórmula da lei faz depender o IAS da inflação e do crescimento da economia, tal como no caso das pensões. Com a inflação em máximos, poderia significar aumentos históricos do IAS. Mendes Godinho nunca indicou o que iria fazer, se vai manter a fórmula ou alterá-la e como. E remeteu para o Orçamento do Estado, cuja proposta será apresentada só em outubro.
“O valor de atualização do IAS será apresentado como sempre no momento em que tradicionalmente é apresentado”, a apresentação do próprio Orçamento do Estado. “É preciso ter cálculos quanto a prestações sociais“, indicou.
José Soeiro insistiu, queria uma resposta mais específica. Mendes Godinho não lhe fez a vontade: “Todos os anos há uma portaria conjunta do ministério de Finanças e do Trabalho para determinação do IAS, é isso que vai acontecer, como sempre aconteceu”. Mas deixou indiciar que o Governo poderá limitar, também aqui, o efeito da inflação.
“Vivemos tempos mesmo extraordinários e em tempos extraordinários temos de ter capacidade de ponderação e sangue frio necessário para saber as medidas mais adequadas a qualquer momento. Não é através de decisões imediatistas sem avaliação global que as coisas se decidem”, afirmou.
O tema também foi abordado na audição de Fernando Medina, com o ministro das Finanças a atirar a divulgação da decisão para mais tarde, até porque o Governo ainda está a avaliar. “Mas o Governo tem feito e continuará a fazer o máximo que pode na proteção das camadas mais vulneráveis”, assegurou.