“Les non-vaccinés, j’ai très envie de les emmerder”, “Os não vacinados, quero irritá-los.” A frase já deu volta ao mundo e deixou França em alvoroço. Com a presidência europeia nas mãos e as eleições francesas já em abril, o que é que Emmanuel Macron pode fazer para assegurar o seu futuro político?
“Não foi um desastre para Macron, de forma alguma. Acho que o fez parecer mais forte”, diz ao Observador Andrew Smith, especialista em Política Francesa, da Universidade de Chichester.
A estratégia de Macron para controlar a pandemia: “Irritar os não vacinados”
A frase da polémica foi dita em entrevista ao jornal Le Parisien, que colocou ao Presidente perguntas dos leitores, e Smith diz que nada teve de ‘gaffe’ ou improviso. Houve até, acredita, uma referência histórica: “Estava a fazer eco das palavras do presidente [Georges] Pompidou [Arrêtez d’emmerder les Français], em 1966, quando ele se dirigiu ao jovem Jacques Chirac. Na altura, estava a falar de cortar regulamentações, restrições, que estavam a irritar os franceses”.
Nesta entrevista, no dia 4 de janeiro, Macron falava sobre alterações ao certificado de saúde que limitariam a vida de quem não se vacinou. “Numa democracia, os piores inimigos são a mentira e a estupidez. Estamos a fazer pressão sobre os não vacinados, limitando, tanto quanto possível, o seu acesso a atividades da vida social”, disse.
Smith acredita que esta foi uma estratégia bem sucedida de passar para os não-vacinados a responsabilidade pela frustração que as restrições anti-Covid causam à maioria das pessoas. “A mensagem dele é a de que a saída desta crise é a vacinação, e que a minúscula minoria que não quer aderir a isso são as pessoas que estão a forçar essas restrições e a impor frustrações aos outros”, explica o historiador.
De acordo com dados do governo francês, 92% das pessoas com mais de 12 anos tomaram pelo menos duas doses da vacina.
A frase, num país com tradição contestatária, veio engrossar o número de pessoas nas ruas: no sábado passado, mais de 100 mil protestaram contra o passe sanitário e vacinas, quatro vezes mais que aquelas que tinham participado na manifestação anterior, a 18 de dezembro.
Covid-19. Mais de 105.000 protestaram em França contra passe e vacinas
Mas Smith desvaloriza: “Nas sondagens, desde que isto aconteceu, vimos que a popularidade de Macron se manteve estável, continua a ser o candidato mais popular. Desde que fez esses comentários, cerca de 200.000 pessoas vacinaram-se [no espaço de cerca de uma semana] pela primeira vez, foi um valor recorde, que não acontecia desde setembro passado. Não acho que tenha sido uma coisa terrível. Dominou a atenção dos media”.
De facto, uma sondagem da Odoxa-Backbone Consulting, encomendada pelo jornal Le Figaro, revela que 59% dos franceses concorda com Macron, ainda que não apreciem o uso de linguagem vulgar. Nas sondagens presidenciais, o governante também não parece ter sido muito prejudicado, continuando à frente nas preferências.
O especialista em Política Francesa diz que esta controversa frase faz também parte de uma estratégia eleitoral, tendo em vista as eleições de abril. “Ele está no Palácio do Eliseu, é Presidente, é o candidato da continuidade. Mas quando diz coisas deste género, numa forma mediática muito contemporânea, domina as notícias, apresenta-se como ousado, alguém que corre riscos. Faz com que pareça desafiante e novo, como sendo alguém pela mudança, mais do que se calhar é como Presidente no poder”, explica.
Em conclusão, Smith diz que “isto é Macron a tentar agitar as coisas, a mudar de Presidente Macron para candidato Macron”.
Irritados? ‘Quel dommage’
Do lado da oposição, a controversa frase foi recebida com indignação, e levou mesmo à suspensão dos trabalhos no Parlamento, na quarta-feira passada, quando a Assembleia Nacional ia discutir o passe de vacinação — que, entretanto, já foi aprovado pelo Parlamento, mas tem ainda de passar pelo Senado.
Jean-Luc Mélenchon, o líder do partido de esquerda França Insubmissa que é pela terceira vez candidato à presidência, acusou Macron de ter usado uma linguagem “terrível” e manifestou-se contra as alterações à lei em vigor: “É evidente que o passe de vacinação é um castigo coletivo contra as liberdades individuais”.
Já Marine Le Pen, líder do partido de extrema-direita Frente Nacional, acusou-o de estar “a transformar os não-vacinados em cidadãos de segunda classe”, disse que a sua linguagem não era “digna do cargo” e que um Presidente “não devia dizer este tipo de coisas”.
“Nenhuma emergência sanitária justifica tais palavras”, apontou, por sua vez, Bruno Retailleau, presidente do partido Os Republicanos, no Senado. “Emmanuel Macron diz que aprendeu a amar os franceses, mas parece que gosta especialmente de os desprezar.”
Andrew Smith diz que, apesar do ruído político, Macron sai pouco ferido. “A oposição pode dizer ‘Oh meu Deus’, dizer que foi mal educado, que é chocante e tal, mas isso até o faz parecer mais forte, fá-lo parecer como uma pessoa que faz e não uma pessoa que diz ‘não gosto da maneira como fazes as coisas’”, comenta.
O especialista em Política Francesa lembra que as pessoas visadas pelo comentário de Macron ao Le Parisien não se encaixam no eleitorado do Presidente, nem sequer no indeciso, e por isso, por mais violentas que sejam e consigam captar a atenção pública, não prejudicam as perspetivas eleitorais de Macron.
“Esses são os eleitores de Le Pen e Zemmour. Se ele irritar essas pessoas, ‘quel dommage’, que chatice, essas pessoas nunca iam votar nele, de qualquer forma. Se os irritar e isso for popular entre os seus apoiantes, ainda melhor”, comenta.
Isso não significa que Macron não vai enfrentar dificuldades nas presidenciais de abril. Uma sondagem divulgada esta quarta-feira continua a dar-lhe vitória à primeira volta, mas aponta para um possível empate com Valérie Pécresse, candidata dos partido Os Republicanos.
“Macron fala sempre de ser ‘En même temps’: diz que é da esquerda suave do Partido Socialista e da direita suave d’Os Republicanos. Tem uma posição muito centrista. Valérie Pécresse está a tentar uma aliança semelhante. Se Macron enfrentar Pécresse, o resultado pode ser renhido e pode haver mais abstenção. Com Le Pen ou Zemmour, as pessoas correm às mesas de voto para defender a República. Mas se a escolha for entre dois sabores diferentes da direita centrista, acho que as pessoas podem ficar mais em casa”, diz o historiador da Universidade de Chichester.
O “trimestre” da presidência francesa da União Europeia
A pandemia e as presidenciais não são as únicas questões políticas a ocupar Emmanuel Macron. No início de janeiro, França assumiu, por um semestre, a presidência do Conselho da União Europeia. E, mais uma vez, não faltam os que acham que irá instrumentalizar o cargo para melhorar as suas perspetivas eleitorais.
“Outros líderes europeus estão a preparar-se para Macron ser hiperativo na presidência do conselho”, escreve a emissora Voice of America.
A presidência arrancou logo com polémica, quando a bandeira da União Europeia foi içada por baixo do Arco do Triunfo, um monumento que homenageia os que lutaram e morreram por França durante a Revolução Francesa e as Guerras Napoleónicas.
A bandeira, em substituição da tricolor francesa, gerou acusações da oposição. Le Pen disse ser “uma provocação que ofende os que lutaram por França”, Zemmour chamou-lhe “uma afronta”.
Valérie Pécresse chegou mesmo a defender que a presidência francesa da UE fosse adiada até depois das eleições nacionais. “É um erro. Está a fazê-lo pelos seus próprios interesses, não pelos de França”, comentou.
Sebastien Maillard, diretor do Instituto Jacques Delors (vice-presidido pelo português Carlos Moedas), acredita que Macron pode, de facto, beneficiar desse palco: “Politicamente, acho que é bom para Macron que se destaque como o principal líder europeu, nesta fase. Se for encarado como um líder europeu respeitado pelos seus homónimos, isso pode ajudar a fortalecer a sua posição como chefe de Estado confiável e influente.”
O presidente deste ‘think-tank’ europeu alerta, no entanto, para uma dificuldade de calendário: com as presidenciais em abril, o semestre de presidência europeia acaba por se transformar num trimestre — isto para conseguir dele extrair algum benefício na política nacional.
“Tem de conseguir resultados antes da primeira volta das presidenciais francesas. Antes de 10 de abril tem de ter resultados concretos. E já não falta muito. Pode ter a melhor presidência europeia de sempre, mas para ele o prazo não é 30 de junho, o seu verdadeiro objetivo político é ter resultados antes de 10 de Abril. Chamamos-lhe o trimestre da presidência europeia”, explica.
Os planos da presidência francesa da União Europeia são ambiciosos: a criação de salários mínimos no espaço europeu, a regulação de grandes plataformas digitais e a criação de um imposto de carbono sobre produtos importados para a Europa, tendo em conta o seu impacto ambiental.
“O plano mais ambicioso é o CBAM, o Mecanismo de Ajustamento das Emissões de Carbono, porque é algo que não é fácil para todos os países aceitarem, e faz parte deste pacote que a comissão quer que avance antes de 2025. Tecnicamente, é o mais difícil. É realista, mas precisa de muita vontade política”, diz Sebastien Maillard.
Em termos gerais, trata-se de um mecanismo que impõe taxas a produtos de elevada pegada carbónica provenientes de fora da UE, já que neste momento as regulações incidem apenas no que produzido internamente. O objetivo é combater a chamada ‘fuga de carbono’, ou seja, a deslocação das indústrias emissoras de gases com efeito de estufa para fora da UE, a fim de evitar regimes mais rigorosos.
Maillard destaca também a importância do “enquadramento dos salários mínimos”, um padrão mínimo salarial, adaptado ao custo de vida de cada país, para todos os trabalhadores europeus. Na União Europeia, os salários mínimos variam entre pouco mais de 300 euros, na Bulgária, até mais de 2.100, no Luxemburgo.
“Não se trata de um único salário mínimo europeu, mas que os salários mínimos nacionais evoluam num enquadramento europeu, sejam impulsionados por uma certa pressão europeia. Foi algo que evoluiu durante a presidência eslovena, mais rápido do que os franceses esperavam. Esperam que nos próximos meses consigam fechar esse acordo”, explica o presidente do Instituto Jacques Delors.
“Aquele [plano] que é mais difícil para Macron tem que ver com assuntos externos: fazer com que a Europa se faça ouvir na arquitetura de segurança do continente, que está a ser agora discutida na NATO e também entre a Rússia e os Estados Unidos. A União Europeia teve dificuldade em ter uma voz ativa nestas discussões. Isso é algo difícil para Macron impor”, acrescenta Maillard.
NATO reúne-se com Ucrânia dia 10, dois dias antes de encontro com Rússia
Em termos de segurança, Macron defende ainda uma reforma do espaço Schengen, para “melhor proteger as fronteiras da Europa” face às crises migratórias — uma questão que também deverá assumir importância durante a campanha presidencial francesa.
Macron, o novo líder da Europa
França e Alemanha sempre foram vistos como os países fortes da União Europeia, e são conhecidas as boas relações entre Macron e Angela Merkel. Mas Sebastien Maillard não tem dúvidas de que a saída ex-chanceler alemã vem beneficiar o Presidente francês: “Desde que a Merkel saiu que Macron se tornou o principal líder europeu, de facto. Principalmente com Olaf Scholz ainda tão recente no cargo.”
Para o presidente do Instituto Jacques Delors, Macron fica com o melhor de dois mundos: assume-se como o grande líder da Europa e conta com o apoio do novo governo alemão, com quem tem boas relações.
Num plano mais prático, Macron enfrenta também os desafios de uma presidência em plena pandemia, com a variante Ómicron em expansão em toda a Europa. Na semana passada, membros da Comissão Europeia deslocaram-se a Paris para um jantar do Palácio do Eliseu, para assinalar o arranque da presidência francesa da UE, mas há sempre o risco de eventos futuros, alguns bem mais decisivos, serem suspensos.
Apesar disso, o plano estratégico francês não inclui medidas sobre a pandemia. “Não tem nada a ver com questões de saúde. Não é suposto isso estar no centro da presidência francesa da UE, não é o que Macron tinha em vista. É mais encarado como uma questão nacional. Não é como durante a presidência alemã, quando [a Covid-19] era totalmente nova, e realmente era uma questão europeia”, diz Maillard.
Mas, esteja ou não no programa de Macron, a verdade é que a pandemia continua a dominar a vida dos europeus — e os franceses não são exceção. “É difícil para Macron pôr a presidência europeia em primeiro lugar porque a Covid está em todo o lado. Os franceses estão preocupados sobre como vão pôr os filhos na escola, ou que tipo de teste devem fazer para saber se têm o vírus, ao invés de pensarem em como a França está a gerir a sua presidência da UE”, lembra Sebastien Maillard. “É como estar a chover e quereres não te molhar. Mas ele acha que a tempestade vai passar por si, quando a vaga de Ómicron acabar, e que com a primavera entramos noutra fase.”