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CHRISTOPHE PETIT TESSON/EPA

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Maio de 68: um nada que gerou alguma coisa

O efeito mais expressivo de Maio de 68, tão contestário do legado da “civilização ocidental”, foi a radicalização do projecto moderno dessa mesma “civilização ocidental”. Um ensaio de Miguel Morgado.

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O Nada

Um nada que gerou alguma coisa. Foi assim que, numa mesa redonda comemorativa do Maio de 68 realizada recentemente no CCB, respondi ao desafio, por assim dizer, à queima-roupa da Fátima Bonifácio (coordenadora e moderadora da conversa) que nos pediu uma reposta instantânea a enunciar o pensamento primeiro que nos ocorresse a propósito dos acontecimentos de há cinquenta anos. Rapidamente me dei conta, com o andamento do debate, que esta resposta, pela ambiguidade da expressão e pela deselegância da formulação, se prestava a imensos equívocos.

O “nada” não queria de modo algum sugerir que a insurreição nascera “do nada” — ex nihilo. É verdade que não estavam reunidas as famosas “condições objectivas” da revolução repetidas até à exaustão pelas ladainhas socialistas. A França gaullista era um caso admirável daquilo que hoje consensualmente se reclama como frutos do progresso “económico e social”. Sob praticamente todos os pontos de vista hoje usados para aferir a condição política e social de um país, a França do final da década de 60 era um extraordinário sucesso. Para trás, tinham ficado décadas de convulsão constitucional e crónica instabilidade política. De Gaulle, com a sua estratégia decidida desde 1940 em Londres, conseguira situar a França como uma potência mundial com uma considerável autonomia na definição da política externa e o concomitante prestígio que daí advinha – resultado que era tudo menos óbvio em 1944. Era o Estado membro a ter em conta no encaminhamento (para a frente ou para trás) das comunidades europeias em construção desde a década de 50.

A França de De Gaulle atravessava um período fulgurante de crescimento económico como não houvera antes e não voltaria a haver depois, o que permitira uma redução extraordinária da sua pobreza,

Mas mais do que isso. A França atravessava um período fulgurante de crescimento económico como não houvera antes e não voltaria a haver depois, o que permitira uma redução extraordinária da sua pobreza, sobretudo da rural. A estruturação e dotação de equipamentos do Estado providência francês teve nos dez anos da presidência de De Gaulle um impulso sem precedentes. Basta recordar a enorme expansão dos cuidados de saúde, a redução drástica da taxa de mortalidade infantil, a atenuação sensível das desigualdades sociais, o aumento continuado dos salários reais na globalidade dos sectores produtivos, a emancipação feminina, o acesso à alta cultura e à educação superior a uma escala sem qualquer outra comparação histórica, em suma, a expansão decisiva da segurança e da liberdade das pessoas e a consolidação da estabilidade da nação.

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Esta seria a revolta dos filhos contra a cobardia física e moral dos seus pais durante a II Guerra – no alívio com que receberam o armistício, na facilidade com que colaboraram com a Ocupação, na lealdade a Vichy, na passividade diante das perseguições do regime e do ocupante nazi.

Estes frutos tinham a rejeição política dos partidos e movimentos que propunham a via revolucionária na construção de uma sociedade socialista soviética – embora alguma ambiguidade houvesse no Partido Comunista Francês e no seu braço sindical a CGT, como o Maio de 68 se encarregaria de expor. Mas a juventude que chegava à idade adulta na segunda metade do século XX depreciava estes feitos da República à luz de diferentes níveis de crítica.

Um desses níveis permite-nos perceber melhor a fractura geracional que o Maio de 68 expôs ou criou. Esta seria a revolta dos filhos contra a cobardia física e moral dos seus pais durante a II Guerra Mundial – no alívio com que receberam o armistício, na facilidade com que colaboraram com a Ocupação, na lealdade a Vichy, na passividade diante das perseguições do regime e do ocupante nazi. Mais tarde, a guerra na Argélia com as suas atrocidades, e com a obstinação que reflectia de preservação de um legado colonialista considerado agora intolerável, apenas agravara a mancha moral que caíra sobre os franceses da geração anterior. Assim, o que esta geração conseguira na reconstrução do pós-guerra não podia deixar de estar manchado também.

Exaurida pelos vários processos traumáticos de descolonização, pela sombra de Auschwitz, pelo pesadelo do Vietname, a civilização ocidental manifestava talvez o seu primeiro grande sinal cultural de exaustão. Uma civilização exausta de si mesma.

Tudo isto sendo verdade, não invalida que uma cultura da contestação, que seria uma espécie de criação identitária da juventude nos anos 60, tematizada pela música, pelo cinema, pela arte, pelas transformações da linguagem, pela dissolução filosófica de antigas certezas, tenha sido o contexto gerador dos acontecimentos de Maio, o que vale por dizer a mais banal das proposições – a de que Maio foi um fruto da sua época. Uma época marcada pelas primeiras manifestações de exaustão da civilização ocidental. Exaurida pelos vários processos traumáticos de descolonização, pela sombra de Auschwitz, pelo pesadelo do Vietname, a civilização ocidental manifestava talvez o seu primeiro grande sinal cultural de exaustão. Uma civilização exausta de si mesma. Não por acaso a inspiração nas experiências revolucionárias do Terceiro Mundo (Vietname, Cuba e sobretudo a Revolução Cultural maoísta) ganharam vantagem sobre os restantes modelos alternativos. As margens longínquas do mundo, e descarriladas do processo histórico de modernização ocidental, permitiam basear uma crítica muito mais radical da “civilização capitalista”.

A partir dos anos 60 e de Maio, a juventude converteu-se em antecipação do futuro e, por conseguinte, com prioridade sobre tudo o resto

A civilização ocidental acabaria por nunca mais recuperar a confiança perdida nesses anos, mas ficaria a grande invenção dos anos 60, e na sua proporção, do Maio de 68: a invenção da juventude como sujeito político e agente histórico. Tradicionalmente, a juventude fora “o futuro” – uma verdade material mas pouco mais do que isso. A partir dos anos 60 e de Maio, a juventude converteu-se em antecipação do futuro e, por conseguinte, com prioridade sobre tudo o resto. Doravante, nada mais significativo haveria do que a expressão e a acção da juventude, pois ela era já aquilo que o mundo vai ser. E tudo isto, não sem uma profunda ironia histórica, no momento em que a civilização ocidental estava prestes a envelhecer acentuadamente. Dada a antiquíssima relação entre a autoridade e a idade, a revolta contra a autoridade enquanto tal só poderia ser consumada pela juventude. Por isso, os estudantes puderam contar por eles mesmos como nunca tinham contado antes.

Sartre retirou do Maio de 68 que o intelectual agora devia converter-se numa espécie de carro-vassoura nos caminhos abertos pelos insurrectos, e admirar e apoiar os acontecimentos que decorressem da libertação da pura práxis.

O “nada” a que eu me referia queria assimilar-se por analogia ao sopro de ar que não comporta palavras nem sons, nem tem por propósito apagar uma vela, por exemplo. Um sopro desses, tal como o Maio de 68, não tem propósito, nem tem programa. A esse respeito é sintomática a primeira entrevista de Cohn-Bendit, o mais célebre dos estudantes insurrectos, a Sartre. Este, encerrado numa fidelidade cega ao Partido Comunista Francês, tentava exprimir a Cohn-Bendit o plano da revolução política, provavelmente decalcada de Lenine em 1917. Mas o estudante respondeu-lhe categoricamente que não havia qualquer plano, nem qualquer programa. Sartre julgou que devia dali retirar uma lição: a de que já não cabia ao “intelectual” liderar espiritualmente as massas revoltosas e muito menos indicar-lhe caminhos concretos de acção. Pelo contrário, o intelectual agora devia converter-se numa espécie de carro-vassoura nos caminhos abertos pelos insurrectos, e admirar e apoiar os acontecimentos que decorressem da libertação da pura práxis.

Numa famosa entrevista Cohn-Bendit respondeu a Sartre que não havia qualquer plano, nem qualquer programa.

Todas as revoluções, sobretudo aquelas que imediatamente vieram à memoração dos parisienses nas universidades, tinham sido simultaneamente apolíneas e dionisíacas. Isto é, elas significaram a libertação da energia da multidão e dos indivíduos, a embriaguez na acção, a aclamação da teatralidade. Mas foram sempre, desde o primeiro momento, projectos de ordem; de uma ordem mais justa, mais recta, mais desejável do que a ordem velha agora ameaçada. Porém, o Maio de 68 foi apenas dionisíaco e, em grande medida, foi apenas dionisíaco conscientemente. Se as revoluções do panteão esquerdista tinham sido até então apolíneas, obcecadas como estavam na construção de uma ordem nova segundo as leis imanentes da História e da vida material, já o Maio de 68 optou, ou talvez não tenha tido outro remédio senão ser exclusivamente dionisíaco no seu carácter.

Foi este império de Dionísio que acabou por ser o grande legado imediato dos que testemunharam directamente os acontecimentos de Maio. Por conseguinte, não faz sentido sequer falar do “fracasso” de uma suposta revolução.

É da sua recusa de propor uma outra ordem, ou sequer princípios de ordem alternativos, que advém o seu pendor artístico, erótico, lúdico. Em grande medida, foi neste contraste que esteve a fonte de muitas das tensões entre os movimentos da extrema-esquerda soviética, trotskista ou maoísta, por um lado, e, por outro, o grosso do movimento dos estudantes – e não em supostas críticas ao marxismo em nome de uma liberdade individual, ou dos direitos humanos, que alguns retrospectivamente quiseram projectar.

Foi este império de Dionísio que acabou por ser o grande legado imediato dos que testemunharam directamente os acontecimentos de Maio. Por conseguinte, não faz sentido sequer falar do “fracasso” de uma suposta revolução. Não havia objectivos a alcançar e, portanto, por definição, não havia fracasso a registar. As observações de que se ficou aquém, ou que Maio fracassou, provêm invariavelmente das almas sempre e ainda a rezar pela revolução apocalíptica que faça finalmente inscrever e vingar a cartilha ideológica que se recusam a abandonar. São análises que dizem muito mais de quem as faz do que do significado histórico do maio de 68.

O sentido político-histórico imediato do maio de 68, contrariamente ao de 1789, 1793, 1830, 1848, ou 1871, foi o nada de um sopro que se dilui no ar quando estamos aborrecidos ou enfadados.

Numa palavra, o sentido político-histórico imediato do maio de 68, contrariamente ao de 1789, 1793, 1830, 1848, ou 1871, foi o nada de um sopro que se dilui no ar quando estamos aborrecidos ou enfadados. Ora, aborrecida e enfadada estaria a França, segundo o famoso editorial do Le Monde em Março de 1968. Escrito poucos dias antes de se iniciarem as greves, ocupações e protestos, o editorial de Pierre Viansson-Ponté sugeria algo que Maio viria a confirmar pela boca do próprio Cohn-Bendit. Ou como também confirmava um texto da chamada “Internacional Situacionista” em que se lia: “Não queremos viver num mundo que garante que não morremos de fome pagando o preço de morrermos de enfado”.

A revolta, então, dirigia-se igualmente contra o enfado – o enfado de parecer ser um mero efeito de leis impessoais da história, ou de estar destinado a uma vida confortável mas inexpressiva: com um emprego (provavelmente para toda a vida), uma família, férias pagas, consumindo os infinitos bens produzidos pela máquina indubitavelmente eficiente do capitalismo e uma conduta “normalizada”.

Cohn-Bendit, anos mais tarde, diria de forma clara que a separação entre o movimento dos estudantes e o movimento dos operários se devia a objectivos distintos

AFP/Getty Images

Os estudantes queriam ser agentes da sua própria História e isso era incompatível com o viver a vida tranquila e confortável que os seus pais, na sua grande maioria membros das classes médias e altas da sociedade francesa, viviam. Cohn-Bendit, anos mais tarde, diria de forma clara que a separação entre o movimento dos estudantes e o movimento dos operários – que estariam unidos de algum modo durante o período das greves nas fábricas que paralisariam toda a França – se devia ao facto de os trabalhadores desejarem reformas profundas nas condições de trabalho, ao passo que os estudantes queriam mudanças radicais no modo como se vivia. Os Acordos de Grenelle, que acabaram com as greves apoiadas pelos sindicatos ligados aos partidos do regime, satisfizeram as reivindicações dos trabalhadores. Mas não havia acordos com o governo que pudessem satisfazer na sua radicalidade as reivindicações dos estudantes.

Como diria Sartre, o que movia os estudantes era a ética da “recusa total”. Se, em larga medida, os trabalhadores suavemente se dissolviam no horizonte do quotidiano burguês com genuína satisfação, o Maio de 68 não se compreende sem a recuperação da crítica que marcou a modernidade política na sua fase tardia desde os finais do século XVIII, e que ancorou o ímpeto revolucionário dos totalitarismos de direita e de esquerda no século XX: a crítica do burguês enquanto tipo humano configurador de um modelo de sociedade, isto é, a crítica do indivíduo visto como inautêntico, inexpressivo, normalizado, cinzento, satisfeito com um pequeno prazer de dia e um pequeno prazer de noite.

Atravessado por várias contradições no seu movimento geral, Maio pretendeu ser a revolução da expressividade. O produto da revolução era a conversa – nas ruas, nas assembleias nos edifícios das universidades, nas manifestações, nas barricadas, nos cafés. Não que esse falar procurasse esclarecer os propósitos da insurreição – não os havia. Era um falar próprio de quem se convencera que estivera calado durante demasiado tempo. Ou de alguém que considerava que a única forma de expressão relevante era a expressão sem reservas e exuberante – e sem objecto. Numa parede em Paris alguém escreveu: “Tenho algo a dizer mas não sei o quê”. Era a revolução traduzida ao seu significado mais elementar.

A matriz geral de tudo isto articularia o fundamental dos efeitos culturais e políticos do Maio de 68 nas sociedades ocidentais: o desejo da afirmação absoluta, sem reservas, sem qualificações, sem entraves, da pura subjectividade.

Na realidade, a luta pela expressividade reflectia um desejo mais profundo.  Não se tratava de um mero desejo de “participação”, mas da ocupação por iniciativa e direito próprios do centro do palco da História. Tratava-se da recusa de continuar a ser um espectador passivo, uma peça na engrenagem cujos movimentos repetitivos eram a anulação das possibilidades inerentes à sua humanidade. Tratava-se de fruir o intenso prazer vertiginoso de ser finalmente um agente na História, talvez até o agente da História.

A matriz geral de tudo isto articularia o fundamental dos efeitos culturais e políticos do Maio de 68 nas sociedades ocidentais a partir dos anos 70 até hoje: o desejo da afirmação absoluta, sem reservas, sem qualificações, sem entraves, da pura subjectividade.

Alguma coisa

Maio gerou “alguma coisa” à semelhança da expressão de Siéyès no famoso panfleto sobre o Terceiro Estado nas vésperas da Revolução francesa. Siéyès acusou o Antigo Regime de ter reduzido o Terceiro Estado a “nada”. E dizer que Maio gerou nada é um erro que a consideração da história política e intelectual da Europa e da América do Norte não autorizam. Não só transformou a cultura política da esquerda em geral daí em diante, como forneceu uma lufada de oxigénio à direita política, desde logo em França.

No seu discurso conciliatório e admirável no parlamento francês, o então primeiro-ministro George Pompidou antecipou-se a todos situando entre as causas dos acontecimentos que se viviam esta muito particular: “Deus morreu para muitos”.

Ainda há não muito tempo, durante a campanha eleitoral presidencial de 2007, Nicolas Sarkozy tocou a rebate as hostes conservadoras da sociedade francesa ao condenar o Maio de 68 pelo niilismo moral que fomentou e pelos respectivos danos sociais e políticos. No entanto, Sarkozy estava apenas a tocar numa tecla cujo som era de há muito familiar. O mesmo se passou no conservadorismo americano que nunca mais deixou de ver na anomia moral dos anos 60 um dos seus motes favoritos, e que em grande medida o salvou de um impasse intelectual em que caíra a partir da década de 50. No seu discurso conciliatório e admirável no parlamento francês, o então primeiro-ministro George Pompidou antecipou-se a todos situando entre as causas dos acontecimentos que se viviam esta muito particular: “Deus morreu para muitos”.

Ao aristocratismo do Antigo Regime, Siéyès, depois de dizer que o Terceiro Estado era “tudo”, acabou por reivindicar que o Terceiro Estado fosse “alguma coisa”. Não restam quaisquer dúvidas que o Maio de 68 gerou “alguma coisa” além das suas intenções imediatas – “alguma coisa” que se estendeu por muitos dos caminhos percorridos pelas sociedades europeias. Parte dessa “alguma coisa” diz respeito à transformação política da Esquerda – rumo a uma vocação mais libertária e menos centralizadora – e à cultura política das sociedades em geral.

Aqui, lideraram estas transformações a “micro-política”, isto é, a atenção dada à tarefa de “emancipação” na esfera da vida quotidiana, a acção de resistência à opressão fora do âmbito e jurisdição das instituições estatais e a interpretação da política como a técnica da expansão dos “direitos”. Mas sobretudo um novo esforço de colocar no centro da política, já não a pessoa humana circunstanciada pela Natureza e pela História, mas antes o sujeito abstracto capaz de se criar e reconstruir através do exercício dos seus direitos e na procura da sua autenticidade pessoal e na formação livre da sua “identidade”. Esta construção política tem sido um dos movimentos mais transformadores das nossas sociedades europeias, e que está na origem de tantas mudanças nos nossos “costumes”, na nossa estrutura social e no funcionamento das instituições públicas.

Foi a revolução pelo triunfo da interpretação do ser humano com um ser abstracto susceptível de ser criado e recriado por si mesmo

AFP/Getty Images

A causa de todos estes efeitos, e que, em última instância, determinou o sentido histórico dos acontecimentos de Maio, foi a emancipação da subjectividade indeterminada. Nesse sentido, talvez se possa dizer que o Maio de 68 foi uma revolução propriamente dita – cultural e não política. Foi a revolução pelo triunfo no mundo social e político, familiar e cultural, da pura subjectividade, historicamente indeterminada, e que pretende ser reconhecida inclusive pelo Estado como indeterminada.

No fundo, foi a revolução pelo triunfo da interpretação do ser humano com um ser abstracto susceptível de ser criado e recriado por si mesmo, e de que qualquer desvio a essa interpretação, qualquer “direito da objectividade”, qualificar-se-ia como uma violação do Direito e, em última análise, como opressão e como crime. Com efeito, para que possa reconhecer devidamente a subjectividade indeterminada, o Estado não pode permanecer o mesmo; será transformado gradualmente de múltiplas maneiras para se pôr ao serviço integral da subjectividade indeterminada. Essa é a razão basilar por que todas as formas estão por determinar – por exemplo, as formas políticas não ficam determinadas agora, pois é a “imaginação” que se quer no poder – e a expressão da indeterminação das formas sociais e económicas só não foi mais clara porque o marxismo era “a filosofia do nosso tempo”; era “insuperável” (Sartre).

Daí também a elevação ao estatuto da exemplaridade da vida nas franjas da sociedade burguesa, e a tudo o que escapara à socialização burguesa e à doce, mas profunda, disciplina da sociedade do consumo, da técnica e do capitalismo.

A exigência de uma sociedade transparente a ela mesma, despida de opacidade burocrática, de rigidez aspiracional era acompanhada por uma determinação ideológica do conteúdo dessa transparência e dos seus agentes autênticos que invariavelmente emergiam como a figura do herói revolucionário, do operário consciente da sua classe, do camponês em guerra com o ocidente colonizador. Daí também a elevação ao estatuto da exemplaridade da vida nas franjas da sociedade burguesa, e a tudo o que escapara à socialização burguesa e à doce, mas profunda, disciplina da sociedade do consumo, da técnica e do capitalismo.

Não deixa de ser irónico que um movimento tão contestário do legado da “civilização ocidental” tivesse como efeito mais expressivo a radicalização – dir-se-ia até caricatural – do projecto especificamente moderno dessa mesma “civilização ocidental”.

Muita apologia da originalidade e da espontaneidade, mas dos lugares-comuns do marxismo ninguém estava disposto a prescindir, e isso colocava limites ao que se podia dizer sobre a economia e a sociedade. Em grande medida, a sujeição intelectual ao marxismo que ainda persistia em 68 circunscreveu as possibilidades do movimento dos estudantes. Havia coisas que, apesar de tudo, eram mesmo proibidas. Poucos anos mais tarde, em meados da década de 70, e nalguma medida e paradoxalmente devido ao choque de Maio, o marxismo estaria intelectualmente morto em França, e devidamente enterrado por alguns dos intelectuais que nasceram com Maio ou com outros que o admiraram, como Michel Foucault.

Não deixa de ser irónico que um movimento tão contestário do legado da “civilização ocidental” tivesse como efeito mais expressivo a radicalização – dir-se-ia até caricatural – do projecto especificamente moderno dessa mesma “civilização ocidental”.

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