Mais de 30 crianças já foram tratadas, em Portugal, com o medicamento Zolgensma, indicado para a atrofia Muscular Espinhal tipo 1. Segundo informação prestada ao Observador pelo Infarmed, o medicamento, que chegou a ser considerado o fármaco mais caro do mundo, já foi administrado a 33 crianças no SNS desde 2019.
Cerca de um terço de todos os tratamentos (dez) foram administrados no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Sete crianças receberam o fármaco no Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Central (que integra o Hospital de São José), seis no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, oito no Hospital de Santo António, uma no Hospital de São João e uma no Centro Hospitalar de Gaia/Espinho.
Numa primeira fase, entre agosto de 2019 e julho de 2021, este fármaco foi administrado em Portugal de forma excecional: ao abrigo de pedidos de utilização excecional (como o que foi feito pelo Hospital de Santa Maria para tratar a bebé Matilde) ou através de Programas de Acesso Precoce. Ao todo, foram tratadas 17 crianças antes de o financiamento ser aprovado. Daí para cá, o fármaco já foi administrado a mais 16 crianças.
Entre os casos que receberam o Zolgensma antes do financiamento público está o das gémeas de nacionalidade brasileira, com atrofia muscular espinhal, que terão sido tratadas no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, sem terem sequer um número de utente do SNS atribuído. Segundo uma reportagem da TVI, emitida na sexta-feira, as duas bebés, que vivem no Brasil, chegaram a Portugal já com consulta marcada naquele hospital, onde viriam a receber o fármaco, que, à época, custava 1,9 milhões de euros ao SNS.
Negociação entre farmacêutica e Infarmed permitiu baixar preço do Zolgensma
Atualmente, e depois da negociação entre o Infarmed e a farmacêutica que produz o medicamento (a Novartis), com vista à atribuição do financiamento público, que decorreu em julho de 2021, o preço do Zolgensma baixou “significativamente”, pelo que, como esclarece fonte oficial do Infarmed ao Observador, já não é vendido pelos cerca de dois milhões de euros a que chegou a ser comercializado em Portugal.
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“O processo de financiamento público do medicamento Zolgensma, para disponibilização nos hospitais do SNS, resultou numa baixa significativa do preço mediatizado nestes últimos dias”, diz o Infarmed. Assim, e uma vez que 16 dos 33 tratamentos foram administrados depois da redução do preço, o SNS terá gasto com este fármaco um valor inferior aos 66 milhões de euros referidos na reportagem da TVI. É, no entanto, impossível saber quanto custa atualmente cada tratamento, uma vez que tanto a autoridade nacional do medicamento como a Novartis se recusam a revelar o valor de comercialização atual.
Sem acesso ao fármaco no Brasil, a mãe das gémeas brasileiras, Daniela Martins, uma luso-descendente a viver em São Paulo, requereu a nacionalidade portuguesa para as filhas e viajou para Lisboa com o objetivo de tratá-las no sistema de saúde português.
A mãe das bebés admitiu que “usou” contactos próximos da nora do Presidente da República (que vive também em São Paulo) para garantir o tratamento das filhas. Nos corredores do maior hospital do país, a história corre há anos. “Sei que se fala nisso”, disse à TVI a presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Norte (que integra o Hospital de Santa Maria), Ana Paula Martins. “A história que corre é que foi por influência do Presidente da República”, admitiu o médico António Levy Gomes, coordenador da Unidade de Neuropediatria do Santa Maria.
Os médicos desta unidade não queriam tratar as crianças, mas terão recebido ordens superiores para administrarem o tratamento às gémeas (com um custo total de quase quatro milhões de euros), em junho de 2020, depois de um email do governo ter chegado ao Conselho de Administração do CHULN, à época presidido por Daniel Ferro. Nessa altura, a direção clínica do Santa Maria terá recebido uma carta dos médicos neuropediatras, onde estes recordavam que tinham vários pedidos para tratarem crianças de outros países com a mesma doença, e que os recursos eram limitados.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre a formação do preço dos medicamentos.
Há doentes de outros países “a sobrecarregarem o SNS”, diz neuropediatra
O dossier de registo de inscrição no Santa Maria desapareceu e, segundo a TVI, o hospital vai abrir uma auditoria interna ao caso. No sábado, o CHULN anunciou também a abertura de um inquérito para averiguar o que se passou em 2019, depois de receber nova carta dos neuropediatras do hospital.
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“Neste caso, o medicamento não foi mal utilizado. Não está em causa que qualquer doente com atrofia muscular espinhal faça o Zongensma. O que está em causa é se doentes de outros países, a serem tratados noutros países, devem vir sobrecarregar, com custos muito elevados, o nosso SNS“, diz ao Observador um médico neuropediatra, que pediu confidencialidade. Para o especialista, “o SNS está a tratar muito mais pessoas do que aquelas para as quais foi desenhado”, inclusive pessoas que viajam para Portugal só para realizarem determinado tratamento, pago pelo SNS.
“Nalguns PALOP, há pessoas com recursos económicos muito superiores à média da população desses países, sendo que essas pessoas não se coíbem de utilizar os nossos recursos”, diz o neuropediatra.
O Zolgensma é um medicamento de toma única, que tem de ser dado até aos dois anos de idade. O medicamento alternativo, já usado, o Spinraza, tem de ser administrado durante toda a vida, de quatro em quatro meses — era este fármaco que estava a ser administrado às duas gémeas brasileiras. Segundo os especialistas, o Zolgensma não é mais eficaz que o fármaco usado anterior. De acordo com o Infarmed, poderá, no entanto, ter uma vantagem económica: apesar do custo inicial, é administrado uma única vez.
Pedido de autorização do tratamento de Alana ainda não chegou ao Tribunal de Contas
No Hospital de Santa Maria, há outra criança, de origem são-tomense, que tem indicação clínica para receber o Zolgensma. Alana nasceu na Maternidade Alfredo da Costa, no final de setembro, e aquando da realização do teste do pezinho a doença foi-lhe diagnosticada. “Em Portugal já estamos a fazer um rastreio neonatal, desde outubro de 2022, desta situação clínica, com objetivo de identificar os quadros pré-sintomáticos, isto é, as crianças que ainda não desenvolveram sintomas, mas cuja alteração genética vai condicionar o aparecimento dos sintomas a curto prazo”, explica ao Observador o médico neuropediatria Filipe Palavra, do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, que sublinha a importância do diagnóstico precoce nestes casos.
O problema é que Alana ainda não teve acesso ao Zolgensma, e está a ser tratada com Spinraza. Ao Observador, o Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Norte garante que o processo de pedido de autorização de despesa está a ser finalizado, de modo a ser enviado para o Tribunal de Contas. O TdC confirma, por seu lado, que não recebeu, até ao momento, qualquer pedido relacionado com o Zolgensma. Desde junho de 2023 que todos as despesas com valor superior a 75o mil euros exigem visto prévio daquela entidade, uma exigência que, nos casos dos medicamentos, é criticada pelo presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares.
“Nestes casos, faz sentido um mecanismo de exceção, em que o Tribunal de Contas pudesse auditar à posteriori”, realça ao Observador Xavier Barreto, lembrando que “há medicamentos que têm de ser de administrados de imediato, são life-saving“.
De acordo com o neuropediatra Filipe Palavra, o processo que envolve a administração do Zolgensma é “complexo”. “Precisa de uma boa coordenação de todos os agentes implicados. Este é um medicamento aplicado por via endovenosa, sendo que primeiro é preciso verificar se a criança tem condições para receber o medicamento; tem de ser feita uma monitorização posterior, para garantir que não causa nenhum problema adicional. Há médicos, enfermeiros e farmacêuticos, no fundo, uma equipa multidisciplinar que está por trás”, sublinha.
Diagnóstico antes dos primeiros sintomas é crucial, diz neuropediatra Filipe Palavra
O especialista, que já acompanhou doentes com atrofia muscular espinhal (AME) no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, ressalva que “há requisitos prévios de administração”. Nem todas as crianças podem ter acesso ao fármaco. “O medicamento consiste na introdução de um vírus carregado com um gene específico que está em falta. A AME é uma doença genética causada pela falta do gene SMN1. Com uma única administração, carregamos o gene em falta nas células implicadas na doença. Imagine que a criança já teve contacto com um vírus parecido com o que vamos administrar: vai ter anticorpos contra esse vírus e, por isso, esses anticorpos vão neutralizar o vírus. Tem de ser feita uma triagem prévia”, diz o médico.
Filipe Palavra adianta que, no CHUC, já foram tratados dois doentes com Zolgensma, com “uma taxa de sucesso bastante interessante”. “Estes casos tiveram respostas positivas ao medicamento”. O neuropediatria realça que “este medicamento consegue reduzir ou minimizar os efeitos desta doença, que é absolutamente devastadora”. Sem tratamento, as crianças com esta doença morrem ao fim de dois anos, diz.
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No entanto, mesmo administrando o fármaco, é crucial o momento em que a criança recebe o tratamento. “O sucesso de qualquer um dos tratamentos depende sempre do momento em que é administrado. A AME é uma doença degenerativa, e quanto mais cedo se diagnosticar, mais eficaz será o tratamento. Se identificarmos a alteração genética antes de quaisquer sintomas relacionados com a doença (falta de força muscular, paralisia dos membros), a probabilidade de melhoria clínica é muito significativa”. Se, pelo contrário, “tiverem decorrido muitos meses desde a manifestação da doença, qualquer um dos medicamentos acaba por ter uma eficácia menor”, sublinha Filipe Palavra.
Matilde foi a primeira criança a receber o Zolgensma em Portugal, em 2019. À época, a família lançou uma recolha de fundos para tentar angariar os dois milhões de euros necessários para tratar a bebé. Matilde acabou por ser tratada no Hospital de Santa Maria através de um pedido de utilização excecional, ficando o custo a cargo do SNS.