Uma investigação da TVI refere que Marcelo Rebelo de Sousa terá facilitado o acesso de duas gémeas vindas do Brasil a um tratamento para a atrofia muscular espinal que tinha sido diagnostica a ambas. O Presidente da República nega interferência no processo, mas a suspeita levou a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) a abrir um inquérito sobre as condições que levaram ao tratamento das duas crianças, filhas de uma lusodescendente que vivia no Brasil.

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O caso remonta a 2020, quase um ano depois do tratamento de Matilde, a bebé com atrofia muscular espinhal tipo 1 que mobilizou o país numa gigantesca campanha de angariação de fundos por aquele que era, na altura, o medicamento mais caro do mundo. Que medicamento é este e o que tem de tão especial?

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O que é a atrofia muscular espinal?

A atrofia muscular espinal é uma doença genética rara e progressiva que leva à morte dos neurónios motores localizados na espinal medula. Para se poder manifestar, a criança terá de herdar um gene da mãe e outro pai, mesmo que estes se apresentem saudáveis. Esta doença degenerativa vai afetar os músculos que a criança usa para respirar, comer, gatinhar ou andar.

O que acontece na célula é que os genes SMN1 estão ausentes ou defeituosos e, como tal, não conseguem transmitir as instruções para a produção de uma proteína específica. Sem essa proteína ou com uma quantidade insuficiente, os neurónios motores (que levam a mensagem da espinal medula aos músculos) deixam de ser capazes de desempenhar as suas funções e acabam por morrer. O resultado é a perda de força, a atrofia muscular e a paralisia progressiva. A causa de morte mais comum, antes de existir tratamento, eram as complicações respiratórias.

Nas células existe um gene de recurso, o SMN2, que tem as instruções para produzir a mesma proteína, mas é responsável apenas por cerca de 10% da proteína necessária.

Como é feito o tratamento?

O medicamento Zolgensma (cujo princípio ativo é onasemnogene abeparvovec) é um tratamento de toma única para crianças até aos dois anos de idade que sofram de atrofia muscular espinal (antes da doença ter provocado lesões muito graves).

A terapia é dada por via intravenosa (diretamente na corrente sanguínea), num procedimento que dura cerca de 60 minutos. O gene saudável que pretende substituir o SMN1 doente está inserido dentro da cápsula de um adenovírus inativado que funciona como veículo para entrar nas células.

Os efeitos do tratamento só começam a ser visíveis ao fim de um mês e as crianças devem ser acompanhadas durante três meses.

Bebés Matilde e Natália já tomaram o medicamento para a atrofia muscular espinhal

Existe alguma alternativa para este medicamento?

Em Portugal, está também aprovado para o tratamento atrofia muscular espinal o medicamento nusinersen, vendido com o nome comercial Spinraza. Este medicamento atrasa a progressão da doença, mas tem de continuar a ser tomado ao longo da vida.

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O tratamento com Spinraza é feito com quatro injeções na coluna nos primeiros dois meses de vida e, depois, uma de quatro em quatro meses para o resto da vida.

Foi um avanço significativo. Antes do Spinraza, a doença era fatal e normalmente os doentes morriam antes dos dois anos de idade. Tinham de fazer ventilação 24 horas por dia. Hoje temos crianças que já se conseguem sentar, que era uma coisa impensável. Continuam a precisar de cuidados fundamentais, como a fisioterapia, cuidados de ventilação, mas conseguimos mantê-las connosco”, disse Maria Manuela Almeida Santos ao Observador em 2019, então presidente do Colégio da Subespecialidade de Neuropediatria da Ordem dos Médicos.

Quando é que o medicamento entrou no mercado?

Em maio de 2019, a agência norte-americana do medicamento (FDA, Food and Drug Administration) foi a primeira a aprovar o medicamento Zolgensma da farmacêutica Novartis. Apesar de os ensaios com o medicamento terem sido feitos para crianças até aos dois anos, a aprovação da FDA incidia sobre crianças até aos seis meses.

Um ano depois, em maio de 2020, a Agência Europeia do Medicamento (EUA) concedeu uma autorização condicional de comercialização do medicamento que foi convertida em autorização plena em maio de 2022.

Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre a formação dos preços dos medicamentos.

Como se determina o preço de um medicamento?

Porque é que o Infarmed aprovou o financiamento público do Zolgensma?

No relatório de avaliação de outubro de 2021, o Infarmed reconhece os benefícios terapêuticos de Zolgnsma (onasemnogene abeparvovec), mas com os dados disponíveis não pôde concluir que fosse melhor do que Spinraza (nusinersen), em termos terapêuticos. A vantagem, que aparece refletida no relatório, é que “o custo da terapêutica com onasemnogene abeparvovec é inferior ao custo da terapêutica com nusinersen”.

“De acordo com as conclusões da avaliação farmacoterapêutica e farmacoeconómica, e atendendo aos resultados da minimização de custos e do impacto orçamental, que foram considerados aceitáveis, depois de negociadas condições para utilização pelos hospitais e entidades do Serviço Nacional de Saúde, tendo em atenção as características específicas do medicamento e da doença em causa, admite-se a utilização do medicamento em meio hospitalar“, refere o relatório do Infarmed.

Não se sabe quanto é que Portugal estará a pagar pelo medicamento. Por norma, os valores na Europa são inferiores aos dos Estados Unidos (onde existe a referência dos dois milhões de euros), mas o valor cobrado a cada país é resultado de uma negociação direta com o detentor da autorização de introdução no mercado.

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Qual o preço do medicamento?

Quando foi aprovado no mercado norte-americano, o preço estimado para o tratamento de toma única era de 2.125 milhões de dólares (cerca de dois milhões de euros). Na altura, o Zolgnsma foi considerado o medicamento mais caro do mundo. No caso do tratamento com o Spinraza, o valor total é impossível de prever de forma universal, uma vez que pressupõe a toma continuada ao longo do tempo de vida de cada doente. Neste caso, os valores distribuem-se entre os 750 mil dólares (cerca de 680 mil euros) para o primeiro tratamento e os 375 mil dólares (cerca de 335 mil euros) nos anos subsequentes.

Atualmente, o Zolgnsma já não será o medicamento mais caro. Um levantamento de julho deste ano do site Pharma Manufacturing coloca-o em quinto lugar, apesar de o custo continuar a rondar os 2,5 milhões de dólares. Os outros quatro tratamentos que constam da lista dos mais caros também são terapias genéticas. Em primeiro lugar está o tratamento da hemofilia B em adultos, com um custo de 3,5 milhões de dólares por dose (cerca de 3,26 milhões de euros).