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Na corda bamba entre a Rússia e o Ocidente. É assim que a Geórgia, um país de quatro milhões de habitantes localizado na região do Cáucaso, se encontra depois das eleições deste sábado. A Comissão Eleitoral Central deu a vitória ao partido Sonho Georgiano, que governa o país desde 2012 e que obteve mais de 53% dos votos. O primeiro-ministro Irakli Kobakhidze celebrou a reeleição, que descreveu como um feito “avassalador”. No entanto, a Presidente Salome Zurabishvili contestou publicamente os resultados e convocou uma grande manifestação que teve lugar esta segunda-feira em Tbilisi.
Num vídeo publicado no X (antigo Twitter) logo domingo, a Presidente georgiana, que está em final de mandato, apontou para a existência de uma “fraude em larga escala”. Acompanhada por membros da oposição, Salome Zurabishvili, conhecida pelas suas posições abertamente pró-ocidente e pela sua animosidade com o Sonho Georgiano, avisou que o “futuro” da Geórgia está “em risco” e que foi “roubado”. E apontou o dedo à Rússia: “Não fomos apenas testemunhas, fomos vítimas do que pode ser descrito como uma operação especial russa. Uma nova forma de guerra híbrida contra o nosso povo e o nosso país”.
Tendo-se tornado independente da União Soviética em 1991, a Geórgia e a Rússia têm um passado conturbado. Houve várias disputas territoriais entre os dois países e, em 2008, o Presidente russo, Vladimir Putin, deu luz verde para que tropas russas invadissem duas regiões — a Abecásia e a Ossétia do Sul, que correspondem a 20% do território georgiano. A tensão nunca se dissipou até agora e o Kremlin continua a exercer um forte controlo naquelas duas zonas separatistas. Não é de admirar, portanto, que, na comunidade internacional, os diplomatas de Tbilisi fossem um dos mais ferozes críticos de Moscovo, olhando para a adesão à União Europeia (UE) e à NATO como forma de se proteger de uma invasão total.
As the last independent institution, I cannot recognize these elections – it would legitimize Russia’s takeover of Georgia. Our ancestors endured too much for us to surrender our European future. pic.twitter.com/BqJ5bEleFl
— Salome Zourabichvili (@Zourabichvili_S) October 27, 2024
Contudo, em termos políticos, a tensão em relação a Moscovo foi-se dissipando ao longo do últimos tempos. E há um responsável por isso: o homem mais rico da Geórgia e fundador do Sonho Georgiano, Bidzina Ivanishvili. O ex-primeiro-ministro entre 2012 e 2013 é conhecido pelas suas ligações a Moscovo e pela difusão de teorias de conspiração sobre um “Partido Global da Guerra” — controlado por cidadãos dos Estados Unidos e alguns eurodeputados da União Europeia — que alegadamente querem arrastar Tbilisi para um conflito.
O resultado “avassalador” do Sonho Georgiano nas urnas é uma vitória para Bidzina Ivanishvili — e provavelmente para Moscovo. Pode aproximar a Geórgia da Rússia, ao mesmo tempo que complica as perspetivas de adesão da Geórgia à União Europeia — tem uma recomendação para ser um país candidato — e à NATO. Em contrapartida, a Presidente georgiana promete que fará de tudo para provar que houve “fraude” e espera contar com o apoio do Ocidente.
As acusações da oposição e da Presidente e a defesa do Sonho Georgiano
Para provar que a “operação especial russa” e para a ligar ao Sonho Georgiano, Salome Zurabishvili recordou que aquele partido conseguiu aprovar “leis inspiradas pela Rússia” que violam as “recomendações europeias e obstruem o futuro europeu”. A Presidente da Geórgia aludia à polémica lei dos “agentes estrangeiros”, que instituiu que as Organizações Não Governamentais (ONG) e os meios de comunicação sociais independentes que recebam mais de 20% do seu financiamento de outros países tenham de se registar junto ao governo e serem constantemente monitorizadas pelo poder político.
Nessa altura, Salome Zurabishvili já se insurgia contra essa lei e com a influência russa no governo. Após as eleições deste sábado, a Chefe de Estado ainda foi mais crítica com o Sonho Georgiano. “O que teve lugar não foi uma eleição democrata. Foi uma eleição russa”, atirou a Presidente, acrescentando o que apresenta como provas: “Muitos cidadãos tiveram o seu cartão de cidadão confiscado e foi-lhes negado o direito de votar” e os “emigrantes também não puderam participar, uma vez que os locais de voto não estavam abertos e foram impostos obstáculos adicionais. De 100 mil emigrantes registados, apenas 33 mil conseguiram votar, apesar dos esforços tremendos que tiveram de fazer”.
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Durante esta segunda-feira, a Presidente da Geórgia deu mais detalhes sobre o “controlo russo”. Houve um alegado “sistema sofisticado” de fraude ligado à Rússia que, segundo assegurou, permitiu ao Sonho Georgiano vencer as eleições. Segundo Salome Zourabichvili, a fraude envolveu mesmo o voto eletrónico, utilizado pela primeira vez na Geórgia durante as eleições, que permitiu que o mesmo número de cartão de cidadão correspondesse a “17 votos e 20 votos, em regiões diferentes”.
Os alegados burlões utilizaram ainda “métodos clássicos”, como “compra de votos, pressão sobre os titulares de cargos públicos” e “sobre as famílias dos reclusos a quem pode ser prometida a libertação”, a par de terem “distribuído dinheiro em mini-autocarros à saída dos locais de votação”, denunciou a Presidente georgiana. “Este planeamento, esta sofisticação, este rigor nos alvos ultrapassa aquilo que um governo clássico” consegue fazer “para se manter no poder”, afirmou.
Devido às irregularidades eleitorais, a Presidente georgiana clarificou que, enquanto “última instituição independente” na Geórgia, não podia validar os resultados. “Reconhecê-los seria legitimar o controlo russo na Geórgia. Não vamos aceitar a infiltração russa e esta nova forma de ocupação”, garantiu Salome Zurabishvili.
Já a Rússia rejeita qualquer interferência nas eleições georgianas. Desafiado a comentar o caso, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, refutou as acusações feitas pela Presidente da Geórgia de que Moscovo teria feito uma “operação especial”: “Tornou-se algo normal em muitos países. À coisa mais pequena, acusam imediatamente a Rússia de interferência. Não, não é verdade. Não houve interferência e as acusações são absolutamente infundadas”.
Os observadores internacionais da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), da NATO e da UE denunciaram igualmente que as eleições de sábado na Geórgia foram “marcadas por desigualdades” entre candidatos, “pressões e tensões”, classificando o ato eleitoral como uma “prova do declínio da democracia” na Geórgia.
Os observadores do Parlamento Europeu denunciaram fraudes durante o ato eleitoral e consideraram que o escrutínio marcou “um retrocesso na democracia” para o país que recebeu uma recomendação para se tornar país candidato à UE. “Manifestamos a nossa profunda preocupação com o retrocesso democrático na Geórgia. O desenrolar das eleições é uma prova lamentável desse facto”, afirmaram os observadores, acrescentando que foram alvo de “agressões físicas”.
Em resposta a todas estas acusações, o primeiro-ministro reeleito, Irakli Kobakhidze, em entrevista à BBC, apontou que “irregularidades acontecem em todos os países”. E atirou contra a oposição: “Dizem sempre isso [que falsificamos as eleições]. Disseram em 2016, disseram em 2020 e disseram em 2021. Ganhámos de maneira muito convincente. Há uma grande diferença entre o Sonho Georgiano e o segundo partido com mais votos”, apontou o chefe do executivo.
Na mesma entrevista, o primeiro-ministro recusou a ideia de que a vitória do Sonho Georgiano signifique um afastamento de Tbilisi do caminho europeu. “A integração europeia é a principal prioridade da Geórgia ao nível de política externa para o país, para o nosso povo e para o nosso governo”, definiu Irakli Kobakhidze. “O compromisso [com a adesão] é muito forte. Todas as metas atingidas para a nossa entrada na UE estão a ser atingidas sob o governo Sonho Georgiano”, reiterou.
Com a Rússia, Irakli Kobakhidze não descarta relações económicas. Mas o primeiro-ministro esclareceu que não restabelecerá relações diplomáticas com Moscovo, por causa da ocupação russa de Abecásia e a Ossétia do Sul. “Somos claramente pró-Europa enquanto governo, e temos evidenciado isso através das nossas ações. E, mais uma vez, há ações muito específicas por meio das quais conseguimos levar o país em direção à UE”, declarou o primeiro-ministro à Euronews.
Apesar do discurso público do primeiro-ministro georgiano, certo é que o fundador do partido a que pertence, Bidzina Ivanishvili, mantém uma retórica hostil contra o Ocidente. “A Geórgia e a Ucrânia não puderam entrar na NATO e foram deixadas à porta. Todas essas decisões foram feitas pelo Partido Global da Guerra, que tem uma influência decisiva na NATO e na União Europeia e que vê apenas a Geórgia e a Ucrânia como carne para canhão”, afirmou o homem mais rico na Geórgia, que raramente fala em público, num discurso a 29 de abril.
Bidzina Ivanishvili terá sofrido uma tentativa de assassínio em meados de julho. Acabou frustrada, mas os serviços secretos georgianos investigaram-na. Comentando o caso, o presidente honorário do Sonho Georgiano considerou-o um “ato terrorista”. E relacionou-o com o “Partido Global da Guerra”, que também estará envolvido, diz, em dois outros “atos terroristas cometidos recentemente”: a tentativa de assassínio do candidato presidencial Donald Trump e o facto de o primeiro-ministro da Eslováquia, Robert Fico, ter sido baleado.
União Europeia confirma que Rússia tentou “influenciar as eleições” — e lida com Orbán
Além de Salome Zurabishvili e da oposição, também a União Europeia acusou esta segunda-feira a Rússia de influenciar as eleições parlamentares. “O que é justo dizer é que, sim, a Rússia tentou influenciar as eleições na Geórgia“, disse a porta-voz da UE para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, Nabila Massrali, questionada durante uma conferência de imprensa da Comissão Europeia, em Bruxelas.
A responsável garantiu que a diplomacia da UE está a “acompanhar de perto os desenvolvimentos das eleições”, vincando que “as irregularidades têm de ser esclarecidas e tratadas”. E o presidente demissionário do Conselho Europeu, Charles Michel, reiterou, no X, “o pedido da UE à liderança georgiana em demonstrar o seu compromisso firme ao caminho europeu do país”.
Following the parliamentary elections in Georgia, I intend to put Georgia on the agenda of the informal #EUCO in Budapest.
We note the OSCE/ODIHR preliminary assessment and call on the Central Election Commission and other relevant authorities to fulfil their duty to swiftly,…
— Charles Michel (@CharlesMichel) October 27, 2024
Charles Michel deixava claro que era necessário “diálogo construtivo e inclusivo” entre o espetro político georgiano e avisava que o Conselho Europeu de novembro vai “avaliar a situação” e “delinear os próximos passos nas relações” entre Bruxelas e Tbilisi. Não é, por isso, ainda claro se estas eleições vão mudar o estatuto da Geórgia no que diz respeito à entrada na União Europeia — mas os dirigentes europeus já alertaram que vão estar atentos.
Em sentido inverso aos restantes Estados-membros, o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, deslocou-se esta segunda-feira a Geórgia. Num encontro que está a ser analisado por vários especialistas como uma forma de legitimar a vitória do Sonho Georgiano, o líder do executivo de Budapeste frisou que a “Geórgia é um Estado conservador, cristão e pró-europeu”. E aproveitou para atirar contra Bruxelas: “Em vez de sermões inúteis, eles precisam do nosso apoio ao caminho para a integração europeia.”
Official visit to #Georgia after the elections. Georgia is a conservative, Christian and pro-Europe state. Instead of useless lecturing, they need our support on their European path. ???????????????? pic.twitter.com/xMVQu5aorI
— Orbán Viktor (@PM_ViktorOrban) October 28, 2024
De resto, a União Europeia demarcou-se desta viagem de Viktor Orbán, um dos poucos líderes na União Europeia que mantém uma boa relação com a Rússia. O alto representante para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, Josep Borrell, frisou que “diga o que senhor Orbán diga na sua visita à Geórgia, ele não representa a União Europeia”. “A presidência rotativa do Conselho da UE [assumida pela Hungria] não possui qualquer autoridade em política externa”, explicou ainda.
Entre a Rússia e o Ocidente, estas eleições podem ser determinantes para o futuro da Geórgia. Embora o conflito que ainda mantenha com o Kremlin, o Sonho Georgiano tenta jogar nos dois tabuleiros: não menosprezar por completo Moscovo, ao mesmo tempo que publicamente mantém a intenção de aderir à União Europeia. Mas o jogo é arriscado e pode acabar por prejudicar as aspirações europeias do país do Cáucaso.