“Em Lisboa, 2ª e 5ª DIV [divisões] meios auto todos parados”, lê-se numa mensagem do início da tarde. “1ª divisão INOP [inoperacional] excepto duas viaturas”, refere outra. “3ª DIV (apenas 1 CP [carro patrulha] a rodar”, diz uma outra. Loures, inoperacional; Vila Franca de Xira, inoperacional; Amadora, inoperacional. “Amigos área de Sintra limpa e segura. Tudo INOP”, foram surgindo logo depois, do Porto, Albufeira, Setúbal, Leiria.
Com o passar das horas, multiplicaram-se as mensagens, no “Rumo à Assembleia da República! PSP/GNR”, grupo criado numa rede social, os reportes de carros, equipamentos ou divisões inteiras paradas. Em simultâneo, como o Observador testemunhou ao longo dos últimos dois dias, multiplicavam-se também as sugestões de sabotagem dos carros e rádios que ainda estivessem a operar. E insuflava a adesão ao grupo, que ao final da noite desta terça-feira já reunia quase 16 mil membros, a maioria elementos das forças de segurança insatisfeitos — e abertamente “revoltados” — com o que consideram ser uma “discriminação” face aos inspetores da PJ, para os quais foi aprovado há poucos dias um subsídio de risco de 700 euros.
“Os carros que não estiverem inop, que rolem. Façam 400/500km por patrulha, gastem gasóleo, pneus e afins e cheguem sem autos feitos. O prejuízo está lá e resultados zero”, sugere um dos membros do grupo. “Com areia no depósito param… com pneus furados não andam… nem há dinheiro para os reparar”, assinala outro. “Avaria nas viaturas, queimem meia dúzia de fusíveis. É agora ou nunca”, desafiava mais um membro do grupo. “Esvazia os pneus”, “provocar fugas nos tubos do líquido refrigeração”, exemplificava mais um. “Alguém indica a melhor forma de deixar os Fiat Tipo inop”, perguntava-se a dada altura. O manual de execução vinha logo a seguir: “Deixar os pirilampos ligados e a viatura desligada, vai ficar sem bateria, logo inop, quando o colocarem a trabalhar vai acender bastantes erros, logo inop.” Não foi caso único de instruções. “Citroen elysee, fusível F18 e F19 inutiliza os médios. O F29 inutiliza os limpa para brisas.” Algumas das ideias passavam mesmo por partir de alguns problemas que os carros já têm e agravá-los para que não funcionassem.
Nunca fica claro se, de facto, algum dos membros do grupo pôs as sugestões em prática e se algum carro em condições para responder a uma chamada foi sabotado. Mas as missões eram claras e a urgência também: causar o maior impacto possível.
Boicote aos jogos da Taça, baixa médica, críticas internas: um movimento a tentar crescer
Pouco mais de 24 horas depois do início do protesto encabeçado (sempre de forma informal, da mesma forma que a adesão ao protesto foi absolutamente espontânea e sem intervenção direta de sindicatos — e são 17, só os da PSP — ou movimentos já existentes) por um agente do aeroporto de Lisboa, sucediam-se mensagens de incentivo à união de esforços, quer pelo reporte de carros efetivamente inoperacionais — um problema com muitos anos, na PSP — quer pela reunião de elementos desfardados frente à Assembleia da República, em Lisboa, quer em frente às câmaras municipais de norte a sul do país. E, também, quando necessário, com a sugestão de que fosse dado um “jeito” adicional para que os carros não pudessem sair para a estrada.
Pelo meio, eram atiradas ideias para fazer escalar o impacto do protesto. Chegou a ser ponderado um “boicote” aos jogos de futebol desta terça e quarta-feira, para a Taça de Portugal: os agentes escalados para fazer serviço gratificado não deveriam comparecer, impedindo que as partidas se realizassem. O objetivo falhou. E as críticas subiram de tom dentro da classe. “Eu borrava a minha cara de m**** se amanhã não boicotasse os restantes jogos. Inadmissível. Tudo por causa de uns trocos”, refere uma mensagem. “Infelizmente, os gratificados são a droga dos polícias”, lê-se noutra.
À hora a que o jogo entre o Estoril e o FC Porto começava, já vários elementos do grupo anunciavam estar a caminho dos pontos de concentração marcados para diferentes horários em função do ponto do país. E negociava-se uma hora para, em conjunto, se cantar o hino nacional.
A informalidade do movimento tornava-se evidente até na forma anárquica como os membros do grupo tentavam definir um dia para pôr em marcha uma “paralisação total” no país. Alguém sugeria o dia 19 de janeiro. “Qual 19 qual o quê, que falta de respeito eu e mais camaradas largamos tudo e viemos de longe para aqui estar. Quer dizer vim cá para comer umas bifanas?”, exaltava-se outro. Até a forma de concretizar essa paralisação com o mínimo impacto possível no salário recolhia as mais variadas sugestões: baixa médica? Assistência à família? Falta ao serviço?
“Se houver um acidente com feridos, vamos. Se não houver feridos, não vamos”
“Não temos viatura.” Foi esta frase que se começou a repetir em várias esquadras ao final da tarde desta segunda-feira. Primeiro em Lisboa, depois espalhando-se rapidamente a praticamente todos os pontos do país. Mas este protesto só começou a ganhar voz quando as ocorrências recebidas iam saltando de esquadra em esquadra. “Quando uma esquadra dizia que não tinha carro, eles enviavam para outra esquadra, mas começaram a receber a mesma resposta de todas as esquadras: ‘A nossa também não funciona, não tem pneus, não vou conduzir um carro que não tem condições de segurança”, conta um dos agentes da PSP, que não quis ser identificado, ao Observador.
Menos de 24 horas depois, e fruto deste movimento inorgânico formado fora do radar dos sindicatos — e a PSP é dos setores que conta com mais estruturas sindicais —, Direção Nacional e ministro da Administração Interna falaram sobre o assunto, mas as dúvidas continuam: como é que se resolve um problema que não é novo e, no limite, pode colocar em causa a segurança pública?
Todos os carros que apresentam algum tipo de problema e que, até esta segunda-feira, circulavam normalmente, passaram a ficar estacionados à porta das esquadras e declarados como inoperacionais. As avarias reportadas são várias: mudanças, problemas no motor, pneus carecas, vidros partidos, luzes avariadas — avarias que, no fundo, são também a base de grande parte das multas rodoviárias aplicadas ao cidadão comum. Depois disto e, uma vez que os agentes não são obrigados a utilizar meios que não asseguram a devida segurança, começou a ser dada ordem para que os agentes se desloquem a pé.
O problema da deslocação a pé parece óbvia: os locais onde é necessária a intervenção da PSP não se situam mesmo ao lado das esquadras. “Tendo em conta a atual organização do dispositivo da PSP, é muito difícil fazer quatro ou cinco quilómetros a pé e chegar atempadamente às ocorrências“, explica fonte da PSP. Por isso, a intervenção feita pelos agentes tem, neste momento, uma lógica associada ao nível de perigosidade. “Por exemplo, se houver um acidente com feridos, vamos. Se houver um acidente sem feridos, não vamos”, acrescenta a mesma fonte.
Nos casos em que está em risco a vida humana — situações de violência doméstica, assalto com recurso a arma de fogo ou arma branca, por exemplo —, os agentes abrem uma exceção ao protesto e utilizam os carros que declararam como inoperacionais e que estão estacionados à porta das esquadras. “Mas só nestas situações.”
Em todos os outros pedidos de ajuda, em que não existe um perigo associado à vida humana, a resposta é a mesma: “Não tenho carro, vamos a pé, mas chegamos quando chegarmos”. E, admite fonte da PSP, nestes casos, “é completamente ineficaz a presença da polícia”, já que pode demorar várias horas a chegar.
Há, no entanto, alguns pedidos que, assegura esta fonte, não são atendidos: queixas relacionadas com ruído, abertura de portas ou confusões que não envolvam armas de fogo ou armas brancas são alguns exemplos. “Se as pessoas telefonarem para a esquadra e disserem: ‘Olhe, tenho aqui um carro à frente da garagem’. Nestes casos, não vão.”
Além disso, “há também comunicações que vão deixar de funcionar. Se os rádios não estiverem em conformidade, serão desligados. Se os computadores não funcionam como deveriam, então as pessoas que vão apresentar queixa vão estar uma eternidade dentro da esquadra”.
Apesar destas descrições dos casos em que os agentes não se deslocam aos locais, fonte da Direção Nacional da PSP garante ao Observador que, nas últimas 24 horas, não foram reportadas situações que ficaram por responder.
Carros de Santarém e Leiria enviados para reforçar dispositivo em Lisboa
Os casos de carros parados chegam de vários pontos do país, como Lisboa, Setúbal, Santarém, Porto e Faro, mas fonte da Direção Nacional afirma que só existem carros inoperacionais em Lisboa e em Setúbal e que a situação na capital está a ser reforçada com carros que estão, neste momento, a chegar de Santarém e de Leiria.
Menos de 24 horas depois do início deste protesto, que começou, na verdade, com um agente da PSP a lançar o repto num grupo de Telegram no domingo à noite, o diretor nacional da PSP, Barros Correia, falou sobre o assunto e garantiu que está a ser feito um levantamento de todos os carros que têm problemas e que estão a ser priorizadas as “reparações mais ligeiras”.
Mas os agentes da PSP não deixam o diretor nacional, nomeado em setembro do ano passado, sem resposta: “Todas as esquadras fazem mensalmente ou semanalmente um relatório do estado do equipamento nas esquadras. A Direção Nacional conhece perfeitamente a situação”, dizem.
E acusam também José Luís Carneiro de não estar certo, quando o ministro da Administração Interna, que fez declarações esta terça-feira durante a tarde, garantiu que “nenhuma viatura pode circular sem ter as revisões” em dia e que nunca foi dada indicação para que essa orientação fosse violada.
José Luís Carneiro repete subsídio para “evitar instrumentalização de setores”
O grande motivo que levou aos protestos dentro da PSP está relacionado com o diploma aprovado por Marcelo Rebelo de Sousa, que prevê o pagamento de um suplemento de cerca de 700 euros aos inspetores da Polícia Judiciária. A PSP fala em discriminação dentro das forças de segurança e quer valores semelhantes, mas o Governo diz que esse subsídio também existe para a PSP.
José Luís Carneiro, que falou aos jornalistas durante a tarde desta terça-feira, depois de Barros Correia, repetiu várias vezes que “há um suplemento por serviço nas forças de segurança, que varia entre os 292 e os 1143 euros”. “É muito importante saber que há um suplemento”, disse o ministro da Administração Interna, “para evitar a instrumentalização de setores”.
Mas este suplemento é 20% do ordenado do agente, o que significa que vai variando consoante a remuneração de cada um. Os mais novos, que entraram agora na carreira e cujo ordenado não chega a 900 euros, não ganham muito mais do que 100 euros de suplemento, já tendo em conta os descontos aplicados.
Já depois das declarações de José Luís Carneiro — e perante a onda de críticas dirigidas ao ministro quase em direto no grupo Telegram —, o Observador teve acesso ao recibo de vencimento de um elemento “acabado de sair da escola prática da PSP”. E o documento mostra que o subsídio suplementar no mês de dezembro não foi além dos 182 euros (menos uns cêntimos), consideravelmente abaixo do valor apontado pelo ministro da Administração Interna. “O que criou algum mal-estar é que o ministro acha que a vida dos PSP e GNR vale 100 euros e a vida dos elementos da PJ vale 700 euros”, desabafa um dos agentes.
Formas de luta em avaliação, sem sinal de processos e com diretor nacional “sempre ao lado dos polícias”
Barros Correia, que foi nomeado diretor nacional em setembro do ano passado, sucedeu a Magina da Silva. A escolha do Governo foi recebida com alguma surpresa, apesar de o nome de Barros Correia constar na lista de favoritos para ocupar o lugar. O recém diretor nacional tem um passado ligado às lutas sindicais, fez parte dos serviços sociais da PSP e a sua nomeação foi vista como uma tentativa de aproximar a estrutura de topo aos agentes. “Os polícias sabem que ele reconhece que os polícias têm toda a razão para estar chateados. É um diretor que sabe perfeitamente qual o estado atual da polícia”, refere um dos agentes.
Mesmo em pleno protesto, com carros parados e agentes em manifestação na Assembleia da República ou junto à Câmara Municipal do Porto, Barros Correia não teve uma palavra de condenação. Pelo contrário. “Estou sempre ao lado dos polícias, tenho de estar”, disse esta terça-feira, em declarações aos jornalistas, depois de uma cerimónia em Lamego. “Fico muito satisfeito com aquilo que a PJ conseguiu e que isso tenha acontecido. E todos nós na PSP gostaríamos que isso acontecesse”, acrescentou.
Para já, a Direção Nacional prefere não avançar com inquéritos, mas diz estar a avaliar a situação. Aliás, é o próprio diretor nacional que o diz: “Importa perceber o que aconteceu. Não posso tirar conclusões de um processo que ainda não conheço.” O Observador tentou perceber junto da Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) se existe alguma inquérito em curso, mas não obteve qualquer resposta até à publicação deste artigo.
Para já, o protesto não tem data para terminar. Esta quarta-feira, o ministro da Administração Interna vai estar no edifício da Direção Nacional da PSP, num encontro marcado ainda antes do início destes protestos, mas o tema estará certamente em cima da mesa. Se a situação não mudar, os agentes ameaçam parar no dia 19 de janeiro. Ou num outro, ainda por definir.