“Venha para a selfie, senhor primeiro-ministro.” O repto partiu do Presidente da República enquanto convidava António Costa a juntar-se a uma fotografia com a tuna da Universidade de Aveiro, logo no arranque de um longo dia em que andaram lado a lado a fazer um périplo por beneficiários do Plano de Resolução e Resiliência (PRR). Numa relação que tem conhecido altos e baixos, de pressões e bênçãos, Costa definiu o campo de cada um: “O senhor Presidente da República é que é especialista em selfies, faz parte da separação de poderes.”

Foi neste caldo que Marcelo aproveitou a jornada a dois para manter a pressão: mesmo reconhecendo que é difícil executar o PRR a tempo e horas, esta circunstância não pode “tornar o coração do Presidente mais mole e menos exigente”. “A minha função é que o meu coração não fique mais mole e de, de vez em quando, ser duro na exigência quanto à execução”, sublinhou o Presidente da República.

Ao lado, António Costa acenava com a cabeça (“agradeço os alertas”) sem dar demasiado peso aos avisos presidenciais: “Já toda a gente percebeu qual a competência própria do Governo e do Presidente da República —  é como um automóvel, se cada peça desempenhar a sua função o carro anda bem e em segurança.”

É em segurança que António Costa quer chegar à meta, sabendo que a prorrogação do prazo de execução do PRR pode não ser uma realidade e que as contas serão pedidas ao Governo e não ao Presidente da República — que diz ser um “catalisador positivo”). Depois de Marcelo recusar a ideia de que faz “oposição por oposição” e de realçar que o primeiro-ministro pensa “exatamente” como o Chefe de Estado, Costa fez questão de deixar bem claro de quem é a responsabilidade: “Penso mais dez vezes do que o senhor Presidente da República porque se as coisas não correrem bem é a mim que pedem contas.”

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O dia serviu para uma espécie de assinar de pazes, após uma semana atribulada em que Marcelo se referiu ao pacote que o Governo apresentou para a Habitação como “lei cartaz” e “inoperacional”. Quando confrontado com a palavra “cumplicidade” que se sentia no ar, o Presidente da República garantiu que o que existe entre ele e o primeiro-ministro “é uma cumplicidade nacional” porque “os portugueses querem que a execução dos fundos europeus corram bem”.

A acreditar no que disseram ambos, estão os dois na “mesma onda” e ninguém surfa mais do que isso — pelo menos com microfones ligados. Depois de um dia inteiro no terreno a ver projetos com o selo PRR, Marcelo recusa-se a dar notas ao que viu e, apesar de confiante, não deixa de estar preocupado com a “corrida contra-relógio” de um PRR que considera uma “oportunidade única“. Marcelo, aliás, não deixou de recordar que este é o PRR que pode levar Portugal a posicionar-se na “primeira linha do futuro” e, mais importante, a “acelerar a resolução dos problemas sociais de quem ficou para trás”.

Pressão transformada em calendarização. Na visita ao centro multivalências para crianças e idosos que está a ser construído em Lajeosa do Dão, em Tondela, quando se apontava para prazos sem certezas, foi Marcelo a avançar com a proposta: 16 de setembro, o dia do feriado municipal. Não ficou escrito na pedra, mas a  promessa foi firmada perante Presidente da República e primeiro-ministro —  torna-se mais difícil de falhar.

Data definida, hora de presentes — e até a troca de presentes serviu para alimentar recados presidenciais. Ao receber uma besta, Marcelo garantiu que não a usará para apontar ao Governo, acrescentando que vai estar “atento, atento, atento”.

Na resposta, o primeiro-ministro pediu a Marcelo que só a apontasse “para o ar” para não haver perigo. A brincadeira arrancou gargalhadas, e Marcelo, enquanto elogiava o presente, não perdeu a oportunidade para deixar no ar mais uma dica: “Está a ver senhor primeiro-ministro, isto é mesmo adequado: design moderno, criação, execução e depois controlo.”

Rodopio de governantes

Sai ministro, entra ministro. Sai secretário de Estado, entra secretário de Estado. Foi assim todo o dia. Quando Costa e Marcelo chegaram à Universidade de Aveiro já por ali estavam a ministra da Presidência (que o Presidente não viu, o que o levou a quebrar “mais um protocolo” nos cumprimentos), o ministro da Economia e do Mar, a ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e os secretários de Estado da Digitalização e da Economia.

Mas as receções com pompa e circunstância, a que se foram juntando presidentes de câmara (Ribau Esteves, Fátima Borges ou Fernando Ruas) e várias personalidades locais — nomeadamente o vice-presidente do PSD António Leitão Amaro, que marcou presença em Tondela — foram sendo servidas com a chegada de outros governantes ao longo do dia.

Sempre ao lado de Marcelo (que foi convidado do primeiro-ministro), Costa foi dando espaço ao Presidente quando era necessário, colocando-se no segundo grau da hierarquia, mas também distribuiu protagonismos com os governantes, chamando-os a intervir e a dar explicações nas áreas pelas quais estão responsáveis — com vários a ficarem para trás em diversas ocasiões para esclarecer dúvidas ou trocar ideias.

Mas também houve momentos em que se chegou à frente. Em plena construção em Tondela, de colete vestido e capacete na cabeça, Marcelo Rebelo de Sousa elogiou a obra, o terraço “ótimo para ver o futebol”, mandou chamar o arquiteto para lhe perguntar o que o inspirou e mostrou-se encantado com o que vê. “O projeto é muito bonito, tem uma oxigenação reforçada, é bem esgalhado”, atirou, ainda que tenha deixado uma pergunta: “Só para 20 idosos? Por que é que não foi mais?” Dois segundos de silêncio e a necessidade de Costa sair em defesa do projeto: “São as regras, isto são x metros quadrados por pessoa”, disse, enquanto era interrompido pela autarca da região que lhe corrobora a versão.

E no meio de tantas apresentações, António Costa até encontrou o presente ideal para o Presidente da República, assumidamente hipocondríaco: uma máquina para fazer ecografias à distância. “É bom para ter no seu gabinete, senhor Presidente”, apontou Costa, enquanto Marcelo, visivelmente agradado, lançava o desabafo: “Não me diga nada, isto é ótimo. Isto é muito bom, muito bom.”

A contestação que não deu para evitar

Quase ao jeito de campanha, e mesmo no meio do aparelho partidário, houve momentos mais tensos. Durante a visita em Viseu, um professor apelou ao Presidente da República e ao primeiro-ministro que não se esquecessem da situação dos docentes que têm saído à rua em protestos. Deu o seu exemplo pessoal e o da mulher e pediu “cuidado” para as situações que se vivem na educação. “Espero que percebam que os professores não estão a exigir nada que não lhes seja justo.”

Os professores viriam a entrar novamente no percurso com uma manifestação à porta da Stellantis, em Mangualde, sem impacto, tendo em conta que a visita decorreu no interior e com toda a normalidade. Costa, que na véspera tinha dito que não ia considerar o descongelamento do tempo integral da carreira dos professores, manteve-se na mesma págiana.

E a fechar o dia, o anúncio que Costa e Marcelo esperavam: a fábrica anunciou que vai passar produzir quatro modelos elétricos: o Citroën ë-Berlingo, o Peugeot e-Partner, o Opel Combo-e e o Fiat e-Doblò e revelou que espera ser a primeira fábrica automóvel do mundo a conseguir ser “totalmente neutra em carbono” em 2038.