Discurso de Marcelo Rebelo de Sousa
Pela primeira vez em 45 anos, o Orçamento do Estado não foi aprovado. Não ocorreu num qualquer momento, com um qualquer Orçamento, de um qualquer modo.”
Marcelo Rebelo de Sousa decidiu começar o seu discurso ao país com uma nota sobre o momento excecional vivido “há uma semana e um dia” no Parlamento: pela primeira vez na história da democracia, o Orçamento do Estado fora chumbado na Assembleia. O Presidente da República dividiria a seguir a questão em três dimensões diferentes: o momento em que foi chumbado, as exigências que se colocavam a este Orçamento em concreto e a maioria que infligiu esta derrota a António Costa e ao PS.
Este é um momento decisivo em todo o mundo para a saída duradoura da maior pandemia dos últimos 100 anos e da crise económica e social que provocou.”
Primeiro, o momento. Marcelo recordou a crise profunda que atravessou o país e os efeitos de uma pandemia que abalou os pilares económicos e sociais em Portugal e no mundo. Não é um ano qualquer, insistiu Marcelo. Contida a crise pandémica, este era o tempo em que se exigia um esforço decisivo para reconstruir o país. E aprovar o Orçamento do Estado para 2022 era instrumental nesse caminho de retoma, sublinhou o Chefe de Estado. A maioria do Parlamento entendeu o contrário e isso tem um preço.
Este era um Orçamento para 2022, um ano decisivo para Portugal. Até por coincidir com começo de um período irrepetível de acesso a mais fundos europeus. Numa palavra: era um Orçamento especialmente importante num momento especialmente importante para todos nós.”
Segundo ponto de Marcelo: além do período especialmente sensível em que se encontra o país, este era também o momento de lançar as bases para o futuro, aproveitando uma oportunidade única criada pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para reformar o país. Sem Orçamento aprovado, a execução do plano ficaria sempre em risco, foi lembrando o Presidente da República ao longo dos últimos dias. Não existir Orçamento, governando em duodécimos por tempo indeterminando, por exemplo, não era, aos olhos de Marcelo, uma hipótese sequer a considerar.
Em devido tempo fiz questão de dizer aos portugueses, sabendo muito bem do que falava. Há 25 anos, como líder da oposição, tinha viabilizado três Orçamentos do Estado, de que em larga medida discordava, só porque era um momento especialmente importante para Portugal.”
Marcelo fez uma interrupção no raciocínio para lembrar o seu passado enquanto líder da oposição. Na altura, o social-democrata deu a mão ao então primeiro-ministro António Guterres para garantir que o país preparava a adesão ao Euro. Das palavras do Presidente da República pode retirar-se uma crítica indireta a Rui Rio. Enquanto líder da oposição, o social-democrata não fez um derradeiro esforço de aproximação e fechou a porta ao PS — em boa verdade, foi António Costa quem dispensou o PSD quando, em entrevista ao Expresso, disse que “no dia em que a sua subsistência” dependesse do PSD, este governo acabaria.
Se não foi um qualquer, nem o momento, nem o Orçamento rejeitado, não foi um qualquer, também, o modo de rejeição. A rejeição deixou sozinho o partido do Governo. Dividiu por completo a base de apoio do Governo mantida desde 2015. A rejeição ocorreu logo na primeira votação, não esperou pelo debate na especialidade. Não foi uma rejeição pontual, de circunstância, por desencontros menores. Foi de fundo, por divergências maiores. Em áreas sociais relevantes no Orçamento e para além dele, como a Segurança Social ou a legislação do trabalho. Divergências tão maiores que se tornaram inultrapassáveis. E que pesaram mais do que o percurso feito em conjunto até aqui e sobretudo pesaram mais do que a especial importância do momento vivido”
Terceiro e último ponto de Marcelo Rebelo de Sousa: a ‘geringonça’ morreu em definitivo neste Orçamento. Não porque o Orçamento não acautelava uma ou outra medida em concreto, mas porque os três partidos que compunham a aliança à esquerda — PS, BE e PCP — não conseguiram ultrapassar diferenças estruturais maiores do que o legado que construíram, nem mesmo perante os desafios que o país tem pela frente. O Presidente da República, de resto, aludiu às divergências na Segurança Social e na legislação laboral, onde Bloco de Esquerda e PCP exigiram alterações como o fim do fator de sustentabilidade da Segurança Social, que significa um corte de 15,5% nas reformas antecipadas, e o fim da caducidade da contratação coletiva, linhas vermelhas que António Costa nunca admitiu ultrapassar. Marcelo não o disse, mas pareceu sugerir: se a esquerda não se entendeu agora, é previsível que venha a entender-se no futuro se as “divergências maiores” que “se tornaram inultrapassáveis” subsistirem?
Nada de menos compreensível para o cidadão comum, penso eu, que desejava que o Orçamento passasse. Que esperava mesmo que passasse. Que entendia que já bastava uma crise na saúde, mais outra na economia, mais outra sociedade. E que, por isso, dispensava — estou certo — ainda mais uma crise política a somar a todas elas.”
O puxão de orelhas aos três intervenientes, António Costa, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa. Os portugueses, disse Marcelo Rebelo de Sousa, não compreendem porque é que num momento tão importante para o país e perante um Orçamento tão importante, os três líderes partidários optaram pela crise política à construção de soluções. Muito criticado por ter acenado com o cenário das eleições antecipadas quando o Orçamento não tinha sido sequer discutido, e corresponsabilizado, em parte, pelo escalar de tensão que culminou no chumbo do diploma, Marcelo quis deixar bem claro quem eram de facto os responsáveis.
Ao chamar a atenção para o que estava em causa na aprovação do OE para 2022 fui mais explícito para que tudo ficasse muito transparente e a tempo. Disse que não havia terceiras vias. Não havia a terceira via de manter em vigor o Orçamento do Estado para 2021. Pensando para um ano diverso, com regras diversas, com fundos diversos, que teria de ser aplicado em duodécimos e sem previsível limite de tempo. Quase como se fosse indiferente haver ou não haver Orçamento do Estado para 2022″.
Marcelo insistiu neste ponto: a 27 de outubro, dia em que o Orçamento foi chumbado, ninguém ia ao engano. À esquerda, BE e PCP têm defendido que havia alternativa à dissolução do Orçamento, que poderia passar pela discussão e aprovação de um novo diploma. Ora, o Chefe de Estado recuperou aquilo que disse ainda em meados de outubro: ou era aprovado este Orçamento, ou o país ia a votos. Dar como encerradas as negociações foi uma decisão consciente dos três envolvidos. Todos sabiam qual seria a sua decisão.
Em momentos como este existe sempre uma solução em democracia. Sem dramatizações, nem temores. Faz parte da vida própria da democracia: devolver a palavra ao povo. Todos dispensávamos mais uma eleição. Mas é o caminho que temos pela frente para refazer a segurança e estabilidade.”
Feitas as explicações devidas para sustentar a decisão de dissolver a Assembleia da República, Marcelo tentou depois normalizar o ato de ir às urnas. Se é preciso uma clarificação, pois que se faça essa clarificação para que se encontre uma nova maioria.
Sabemos todos que uma campanha eleitoral, bem como debates, realizados no Natal, o primeiro Natal depois daquele que em boa verdade não vivemos, ou pelo Ano Novo, são a todos os títulos indesejáveis. E podem ser meio caminho andado para um aumento da abstenção. O sensato é apontar para debates e campanha a começar em 2022, mas não em cima do dia de Ano Novo, e ainda assim termos eleições em janeiro, como eu disse desde o primeiro momento, compatibilizando a desejável rapidez com a devida atenção a um período sensível na vida das pessoas.”
Ainda antes de anunciar finalmente a data das legislativas (30 de janeiro de 2022), Marcelo explicou o porquê de o calendário não poder ser tão curto como pretendia a maioria dos partidos, em particular Rui Rio, o mais vocal na defesa de eleições a 9 ou no limite a 16 de janeiro. O Presidente apontou a época festiva como o maior obstáculo à mobilização eleitoral e ao nível de envolvimento com a campanha que se exige num momento em que se vai escolher um primeiro-ministro nestas circunstâncias.
Confio em vós, no vosso patriotismo, no vosso espírito democrático, na vossa experiência, no vosso bom-senso. Como sempre, nos instantes decisivos, são os portugueses, e só eles, a melhor garantia do futuro de Portugal.”
E tudo culminou num apelo à mobilização dos portugueses. Marcelo fez do seu alfa e ómega a garantia de estabilidade política. Como Presidente da República interveio várias vezes e em momentos políticos muito sensíveis para garantir que António Costa tinha condições de governabilidade. E muitas vezes essa intervenção foi tida como excessiva e até criticada pela família política que o apoiou em duas eleições presidenciais. Marcelo sabe que não existe, no horizonte, sinais de que os equilíbrios no Parlamento venham a ser diferentes depois das legislativas: de acordo com todos os estudos de opinião realizados até agora, PS vence sem maioria e continua a depender da esquerda para governar. Se os portugueses faltarem à chamada, o grau de imprevisibilidade será ainda maior.