O pacote do Governo para a habitação está em risco de ser travado em Belém. O Presidente da República já desconfiava de algumas medidas e — após olhar para sondagens e perceber que os portugueses são em grande maioria contra as propostas — já não esconde a sua oposição pública ao “Mais Habitação”. Se o programa continuar como está, sabe o Observador, Marcelo Rebelo de Sousa irá concretizar a ameaça que fez no início do mês: pedir ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva de algumas normas do plano, em particular o arrendamento coercivo.

O Presidente começou com uma metáfora frutícola para não se comprometer nas primeiras duas semanas após a apresentação do plano (que comparou a um “melão”), mas começou logo no dia seguinte a preparar uma válvula de escape, quando as críticas de vários setores já se multiplicavam. A 1 de março, já lá estava o aviso com as letras todas: “Eu, nessa altura [em que receber o diploma final], farei naturalmente aquilo que faço sempre: [caso] tenha muitas, muitas dúvidas de inconstitucionalidade ou alguém tem — posso não ser eu a ter muitas, muitas dúvidas, mas alguém ter — para haver certeza do direito, eu peço ao Tribunal Constitucional: ‘Olhe, declare a certeza do direito‘”.

Agora não só o Presidente carregou publicamente nas críticas, como uma fonte próxima do chefe de Estado diz ao Observador que “se o Governo mantiver a ideia do arrendamento coercivo, é mais ou menos óbvio que o Presidente tem de enviar para o Tribunal Constitucional. Aí concretiza a ameaça nesse envio. Não me parece que tenha grande discussão.”

A mesma fonte diz que, além disso, “mesmo quando promulgar ou devolver sem promulgação o diploma, o Presidente não deixará certamente, numa nota, de referir as discordâncias com medidas que possam não ter problemas jurídicos, mas com as quais não concordará, como [a proibição de novas licenças para] o alojamento local“.

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A leitura em Belém é de que esse envio para o Tribunal Constitucional possa ser evitado. “É uma forma de pressão, legítima, ao Governo. Como quem diz: ou corrigem ou, se ficar assim, vai para o Constitucional.”

Os avisos e ameaças entre o benefício da dúvida do melão

No dia seguinte à apresentação das medidas da habitação, Marcelo Rebelo de Sousa mostrava-se cauteloso e dizia: “O pacote de medidas é muito grande, só depois de abrir o melão é que será possível ver se será bom”, afirmou em Podence a 17 de fevereiro.

Nessa mesma ocasião, o chefe de Estado relativizava as opiniões mais negativas e dizia que “é normal que haja críticas”. E logo dava o salto para uma reflexão sobre um duelo ideológica: “Há quem pense que a solução passe por mais Estado, há quem pense que passa pelo mercado e criar novo regime de arrendamento. Vou esperar durante este mês de discussão pública.” Não esperou.

Foi logo a 17 de fevereiro, embora não tenha colocado ênfase, que Marcelo enumerou as suas funções constitucionais: “Umas medidas terão de ir ao Parlamento, outras irão diretamente para a Presidência da República. Não me pronuncio sem saber o que as leis dizem. É muita coisa, tive dificuldade em tomar nota de tudo. O Governo mandou-me as ideias, não as li. Uma a uma, vou examinar cada lei e direi se concordo ou discordo ou se há dúvidas de constitucionalidade“. Primeiro aviso.

Duas semanas depois, não só referia essa possibilidade, como admitia enviar ao Tribunal Constitucional o diploma mesmo que não fosse ele próprio a ter dúvidas. Se outros a tivessem (“pode alguém ter“), o chefe de Estado iria então enviar ao Tribunal Constitucional para ter a tal “certeza do Direito”. Segundo aviso.

A 8 de março, em entrevista à RTP e ao Público, Marcelo Rebelo de Sousa voltava à metáfora frutícola: “Até temos dois melões, o melão do Governo e o do PSD. Só que o do Governo está aberto, o do PSD ainda não está aberto.” E dizia ainda ser de “louvar que ao fim de sete anos de governo, o Governo tenha apresentado um pacote desta dimensão.” Mas, mais uma vez, não excluía recorrer ao Palácio Ratton.

Questionado diretamente sobre a constitucionalidade arrendamento coercivo, dizia: “Se houver um certo tipo de conceitos que são utilizados para limitar o direito de propriedade privada que não estão suficientemente densificados, convém densificar em termos de ficar claro que não atinge a Constituição.” Terceiro aviso.

O endurecer das críticas presidenciais e as sondagens

A crítica mais dura de Marcelo ao programa “Mais Habitação” chegaria, no entanto, na última segunda-feira quando, numa visita à redação da CMTV, o Presidente que “tal como está concebido, logo à partida, o pacote da habitação é inoperacional. Quer no ponto de partida, quer no ponto de chegada”. Classificou mesmo o pacote de habitação como uma “lei-cartaz”, explicando: “São leis que aparecem a proclamar determinados princípios programáticos, mas a ideia não é propriamente que passem à prática.”

Apesar de ir fazendo críticas à exequibilidade das propostas (e não ao conteúdo das mesmas), só mesmo esta segunda-feira houve um ataque presidencial direto à iniciativa do Governo. Quem há semanas louvava o facto de o Governo apresentar propostas na habitação ao fim de sete anos (o que também pode ser visto como uma crítica pelo atraso), agora criticava em parte o Executivo de Costa por ter apresentado algumas das medidas: “[Se] no virar da esquina for convertida em inexequível, significa que se levantaram expectativas que se frustram instantaneamente (…) era preferível não ter levantado as expectativas, pois existindo um problema real e sendo a aparente solução inexequível, era melhor não termos falado nisso”.

O endurecer da posição de Marcelo não terá sido indiferente à opinião dos portugueses. No mesmo dia em que visitou a redação da Cofina, os títulos do grupo tinham publicado uma sondagem, da Intercampus, que dizia que três quartos dos portugueses consideram o arrendamento coercivo caótico e que 60% são contra a medida. Com mais robustez que uma ida à Portugália ou à Santini — um barómetro que já utilizou no passado para medir o pulso aos portugueses — o chefe de Estado terá tido também acesso a sondagens que não são públicas, feitas por uma empresa ‘amiga’, e que terão ido no mesmo sentido: o pacote ‘Mais Habitação’ não é popular.

Marcelo está disponível, porém, a aceitar medidas como aquelas que foram aprovadas no Conselho de Ministros na última quinta-feira: os apoios financeiros às rendas de casa e aos créditos hipotecários. Daí que as tenha promulgado já esta terça-feira. No entanto, não deixou de fazer um reparo, “lamentando” que as estas medidas “não sejam mais alargadas, designadamente por via fiscal, para abrangerem outras situações igualmente muito difíceis”.

PS responde (e Costa também)

Se Marcelo está a pressionar para que o Governo deixe de lado o arrendamento coercivo, é preciso saber se o PS está disponível para deixar cair esta proposta polémica. O Executivo não deu, até agora, sinais de querer abdicar da proposta e até utilizou como argumento o facto de este instrumento já existir em outras circunstâncias.

César pede a Marcelo “equilíbrio” entre críticas e “cumplicidade institucional”

Carlos César contra-atacou Marcelo ao dizer que o Presidente “tem prestado menos cuidado a algo que sempre acautelou nestes anos: o equilíbrio que o Presidente da República deve cultivar do sentido crítico com a cumplicidade institucional”. Apesar deste descuido presidencial, o presidente do PS desaconselha o Executivo a comprar uma guerra entre Belém e São Bento. E fá-lo em cesarês ao aconselhar o Governo a “continuar a trabalhar, e a fazê-lo de melhor forma, e não se envolver em atos ou considerações que afetem esse valor que tanto contribui para a estabilidade da nossa democracia”.

PS vê copo meio cheio nas críticas de Marcelo e não entra em confronto

Sem grandes preocupações de não afrontar Marcelo, António Costa, através do seu gabinete, enviou esta terça-feira uma nota à comunicação social a dizer que “o primeiro-ministro referendou o decreto-lei do Governo que apoia as famílias no pagamento de rendas e prestações de crédito à habitação”, registando que “estas são as primeiras medidas do “Programa + Habitação”, que está em discussão pública desde 16 de fevereiro.”

Naquilo que parece uma resposta direta ao Presidente, António Costa acrescenta que “este Programa contém diversas medidas fiscais que o Governo submeterá à Assembleia da República, que, nos termos da Constituição, tem competência exclusiva para legislar sobre esta matéria, tendo em vista a criação de incentivos fiscais ao arrendamento acessível, a diminuição da tributação em IRS para os senhorios e o desagravamento da taxa de IVA para a construção e reabilitação de imóveis destinados ao arrendamento, entre outros incentivos fiscais.”

Costa diz a Marcelo que o seu plano para a habitação “tem diversas medidas fiscais”

Apesar da resposta ao Presidente em matéria fiscal, isso não significa que Governo não venha a alterar alguns dos pontos mais polémicos do programa, como o arrendamento coercivo. Tem espaço para o fazer até à apresentação final das medidas a 30 de março.